Victor Hugo, glória da raça latina, dizia que o herói é apenas uma variedade de assassino.

Dependendo do posicionamento e da eventual paixão do observador, o herói pode ser visto como bandido e vice-versa.

E não há dúvida alguma que a circunstância pode criar tanto um quanto o outro.

Tudo isso vem a propósito da verdadeira canonização de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, logo no alvorecer da República, e da injustificável execração do Imperador D. Pedro II e de sua família, por parte daqueles que implantaram o novo regime no Brasil.

No dia 16 de novembro de 1889, o governo provisório da recém-fundada República enviou mensagem ao Imperador deposto, em que dizia entre outras coisas:

“Em face desta situação, pesa-nos dizer-vo-lo e não o fazemos senão em cumprimento do mais custoso dos deveres, a presença da família imperial no país, ante a nova situação que lhe criou a resolução irrevogável do dia 15, seria absurda, impossível e provocadora de desgostos que a salvação política nos impõe a necessidade de evitar.

Obedecendo pois às exigências do voto nacional, com todo o respeito devido à dignidade das funções públicas que acabais de exercer, somos forçados a notificar-vos, que o governo provisório espera do vosso patriotismo o sacrifício de deixardes o território brasileiro, com a vossa família, no mais breve tempo possível.

Para esse fim se vos estabelece o prazo máximo de vinte e quatro horas, que contamos não tentareis exceder”.

Apesar dos respeitosos termos constantes desse trecho da mensagem enviada a D. Pedro II e, nem poderia ser diferente, o texto deixava a nu uma verdadeira bofetada com luva de pelica.

Como exigir-se de uma família radicada no país desde o nascimento, onde tinha ela raízes, patrimônio, interesses pessoais, pertences, biblioteca, arquivos, objetos de estimação, que esta mesma família deixasse inopinadamente sua terra no prazo exíguo de 24 horas, levando-se em consideração, que nenhum de seus membros havia esboçado qualquer reação ou resistência ao golpe de 15 de novembro?

Como prova da dignidade conformada da Família Imperial, leia-se a resposta altiva e elegante do Imperador aos que o intimavam de forma tão impertinente:

“À vista da representação escrita que me foi entregue hoje às 3 horas da tarde, resolvo, cedendo ao império das circunstâncias, partir com toda a minha família para a Europa, amanhã, deixando esta pátria de nos estremecida a qual me esforcei por dar constantes testemunhos de entranhado amor e dedicação durante quase meio século, em que desempenhei o cargo de chefe do Estado.

Ausentando-me pois, eu, com todas as pessoas da minha família, conservarei do Brasil a mais saudosa lembrança, fazendo ardentes votos por sua grandeza e prosperidade.

Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1889.

Pedro de Alcântara”.

E, como é sabido, o Imperador, cumprindo rigorosamente o ridículo prazo que lhe fora assinalado, viajou para a Europa com sua família a bordo do sinistro Alagoas.

Mas não parou aí a iniqüidade dos novos responsáveis pelos destinos do Brasil.

Por causa de uma simples quartelada, aquele que deveria merecer a eterna veneração e gratidão de todo os segmentos da sociedade brasileira, inclusive do novo contexto oficial, sofria essa covarde e nefanda execração dos novos donos do poder, sob o olhar indiferente de um povo amorfo e inerte.

Ainda em 1889, o decreto 78 A, de 21 de dezembro, baniu do território brasileiro o ex-Imperador e toda sua família. Covardia à distância. Por que não o fizeram no calor da revolução?

E apesar do disposto no artigo 72 § 10 da Constituição Federal de 24 de fevereiro de 1891, que autorizava, em tempo de paz, qualquer pessoa a entrar no território nacional ou dele sair com a sua fortuna e bens, quando e como lhe conviesse, independentemente de passaporte, a Família Imperial nunca foi autorizada pelos governos republicanos brasileiros a exercitar esse direito ditado pela Carta Magna da Nação. Somente em 1922, graças ao espírito coerente, viril e justiceiro de Epitácio Pessoa, é que essa ignomínia foi banida desta acolhedora terra de Santa Cruz, borrando-se de vez a aberração que constrangia os melhores sentimentos nacionais.

Enfim, como disse muito bem o desventurado monarca, “o império das circunstâncias”, lançou ao rol dos execrados, aquele que deveria ter sido sempre alçado ao panteão dos grandes da Pátria.

Não nos esqueçamos que Deodoro, naquela madrugada de 15 de novembro, Frederico 11, no calendário positivista, deu vivas a D. Pedro II, antes de saudar a República, já acossado pela turba que em torno dele bradava pelo novo regime.

Isto significa que no fundo não se confundiam na mentalidade nacional a figura do Imperador e o regime político que ele representava. Essa realidade não passou desapercebida ao espírito atento e perspicaz de Mestre Câmara Cascudo, ao abordar o tema na sua justiceira obra sobre o Conde d’Eu.

Mas na hora do linchamento político, a tradicional forma de governo vigente no país, barafustou a consciência pública, e foi tanta a poeira levantada que, do todo caótico, não foi possível resgatar ilesa a pessoa veneranda do monarca.

Esse capítulo estranho da história pátria, insólito mesmo, até atípico, se comparado com situações congêneres em outros paises, nos remete ao caso daquele cidadão, que depois de viver muitos anos, ao lado de u’a mulher, um dia cansado da monotonia e da mesmice da relação, até mesmo da estabilidade dela, sem qualquer motivo grave ou relevante, resolve abandonar a mulher, sem bulhas nem matinadas, para experimentar um novo e grande amor, ainda que em meio a turbulência, desencontros, desatinos e fracassos.

Ao fim e ao cabo, trocamos cinqüenta anos de monótona estabilidade, de crescimento e progresso com lastro e estrutura, de programas para surtirem efeito a longo prazo, de paz, de concórdia, de ordem, de respeito, de hierarquia, pela desorganização da máquina governamental, pelos golpes de Estado, pelo caos econômico-financeiro, pela inflação, pelos atentados, pelo casuísmo, pela subversão de valores, pelo desrespeito, pelo imediatismo, pela crescente ameaça de esfacelamento da unidade nacional, que o Império se incumbiu de construir, num tempo de precárias e difíceis comunicações internas.

Rei morto, rei posto.

Enquanto as circunstâncias reduziam D. Pedro II de protagonista de uma grande cena a infeliz banido de sua própria pátria, traziam elas à tona da consagração oficial e popular aquele que passou à História com o título de Fundador da República Brasileira.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães nasceu em Niterói a 18 de outubro de 1836. Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães, português, era seu pai e Bernardina Joaquina da Silva Guimarães, gaúcha, era sua mãe.

Benjamin Constant passou uma parte de sua infância em Macaé, Magé e Petrópolis, onde o pai estabeleceu-se com uma padaria.

Daqui o menino mudou-se com a família para Minas Gerais, onde Leopoldo Henrique foi administrar uma fazenda do Barão de Lage.

Mas a 15 de outubro de 1849, o pequeno Benjamin perdia o pai, que foi sepultado na capela de São José do Paraibuna. A mãe, não suportando o choque e os sofrimentos subseqüentes, tendo cinco filhos para sustentar e educar, enlouqueceu.

Apesar dos pesares, Benjamin Constant logrou matricular-se na Escola Militar do Rio de Janeiro, a 28 de fevereiro de 1852, no mesmo ano em que Caseros selava a derrocada do tirano Rosas.

Também em 1852, a 1º de abril, Benjamin assentava praça.

O novo aluno da Escola Militar, ao adentrá-la, já encontrou ali lançadas as bases da doutrina positivista.

Quando Augusto Comte, em linguagem de seu apostolado, transformou-se, em 1857, já os postulados de sua filosofia, faziam brilhante carreira entre nós.

Em 27 de março de 1858, matriculou-se Benjamin Constant no 2º ano da Escola de Aplicação do Exército para concluir o seu curso e a 22 de janeiro de 1859, era desligado dela, para continuar seus estudos na Escola Central.

Em 1860, recebeu o grau de bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas.

Sempre estudioso e lutando com as dificuldades de um menino órfão e pobre, matriculou-se a 8 de janeiro de 1861 no curso de Engenharia Civil, mas, no ano seguinte, por excesso de faltas, foi desligado da Escola.

A 19 de novembro de 1861, entrou para o Observatório Astronômico, como praticante e dali saiu cinco anos depois para fazer a campanha do Paraguai.

Nesse ínterim, em 1863, foi nomeado lente de Matemática do Instituto dos Meninos Cegos e casou-se, a 16 de abril, com Maria Joaquina da Costa, com quem desfrutou de enorme felicidade.

Em 21 de fevereiro de 1872, Benjamin Constant ingressou no magistério da Escola Militar do Rio de Janeiro, como coadjuvante do curso superior.

Nesse mesmo ano recebeu as condecorações de Oficial da Ordem da Rosa e de Cavaleiro da de Aviz.

Passou a ser professor da Escola Normal em princípios de 1880, desde que esta foi criada.

Abraçando a campanha republicana, de que foi incontestavelmente um de seus principais arautos, pregava desassombradamente suas doutrinas na tribuna, na cátedra e onde mais coubesse.

Líder da juventude de seu tempo, como toda juventude sequiosa por novidades, por mudanças, ainda que por inconseqüente entusiasmo e índole incendiária, Benjamin Constant tornou-se o porta-voz desses anseios irrequietos que explodiram naquele 15 de novembro de 1889, num clima de ordem e tranqüilidade que contou indubitavelmente com a apatia, quase indiferença do povo do Rio de Janeiro e de resto de todo o país.

Formado o Governo Provisório da República, Benjamin Constant nele tomou parte como Ministro da Guerra.

Adoecendo aos 55 anos incompletos, cedo encontraria o caminho da tumba, já que transformou-se a 22 de janeiro de 1891, quando a Assembléia Nacional Constituinte estava prestes a concluir o seu trabalho.

O grande prócer da República não poderia encontrar melhor momento para desencarnar. A mesma ocasião que faz o ladrão, faz o herói.

Mas antes de fixarmos os aspectos dessa canonização emocional, vejamos a síntese do perfil de Benjamin Constant, feita por Teixeira Mendes, Apóstolo da Humanidade, na sua massiça obra que se intitula: “Benjamin Constant – Esboço de uma Apreciação Sintética da Vida e da Obra do Fundador da República Brasileira”.

Está à pág. 223 da edição de 1936 da Imprensa Nacional:

“Pondo-se à testa do movimento insurrecional, Benjamin Constant praticou um rasgo de corajoso civismo, porque não possuía as nossas convicções.

A sua vida não lhe permitira assimilar a Religião da Humanidade, pelas circunstâncias que expusemos. Não podia depositar em nós a indispensável confiança para seguir os nossos conselhos. Nem conhecia a situação do país para olhar para o nosso futuro com a segurança com que nos encarávamos. Ele só via o presente convulsionado e a Pátria solicitada em direções encontradas pelas forças progressistas e retrógradas peculiares à revolução moderna. Na suprema direção se lhe antolhava um governo que na sua frase pretendia fazer “do cadáver moral da nação, o pedestal de sua triste glória”. Em torno de si viu a sedição militar degradando a classe a que se ufanava de pertencer, tornando aqueles que deviam ser sentinelas da dignidade pátria, em ignóbeis executores de mesquinhas paixões”.

No conceito de Teixeira Mendes, intelectual de escol, positivista doutrinário, republicano coerente e sério, Benjamin Constant não tinha qualquer visão de estadista e que a República é obra de ressentidos, sendo o seu Fundador, um deles.

Tão logo bateu no Congresso Constituinte a notícia da morte de Benjamin Constant, começaram os elogios fúnebres, os votos de pesar, os discursos inflamados, os projetos de homenagem ao patriarca do novo regime.

Na sessão de 24 de janeiro de 1891, o Congresso Nacional, avocando a si, excepcionalmente, todos os poderes e direitos que lhe conferia a soberania brasileira nele depositada, indicava:

Art. 1º – Fica declarado dia de luto oficial o do falecimento do General Dr. Benjamin Constant, patriarca da República Brasileira;

Art. 2º – Que no primeiro aniversário da Proclamação da República, sejam feitos solenes funerais em nome da Nação, em honra ao grande homem;

Art. 3º – Que seja criado em panteon em honra dos grandes homens da Pátria Brasileira onde serão inumados os que assim bem merecerem, da Pátria, conforme decretarem os futuros Congressos, sendo desde já indicado o Dr. Benjamin Constant;

Art. 4º – Que se decrete uma pensão à viúva e às filhas de Benjamin Constant;

Art. 5º – Levanta-se a sessão de hoje, consagrando-a em honra e homenagem à memória de Benjamin Constant.

No mesmo dia 24 outra indicação:

Art. 1º – Será adquirida a casa em que faleceu o grande patriarca Benjamin Constant, e nela será colocada uma lápide comemorativa.

§ Único – Será concedido à viúva do grande cidadão o usufruto dela durante sua vida.

E vieram outros projetos, indicações, moções e votos.

Completando esse quadro apoteótico e meramente circunstancial, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, nas disposições transitórias dispôs:

Art. 8º – O Governo Federal adquirirá para a Nação a casa em que faleceu o Dr. Benjamin Constant Botelho de Magalhães e nela mandará colocar uma lápide em homenagem à memória do grande patriota – o fundador da República.

§ Único – A viúva do Dr. Benjamin Constant terá enquanto viver o usufruto da casa mencionada.

Convenhamos que o chamado Patriarca da República não podia ter morrido em momento mais apropriado.

Tivesse ele vivido alguns anos mais, de modo a enfrentar, por exemplo, a fúria do jacobinismo florianista e ele, apesar de todos os seus eventuais méritos, teria tido o seu nome lançado no rol dos rejeitados e esquecidos, conforme aconteceu com Wandenkolk, Custódio José de Melo, Saldanha da Gama, Demétrio Ribeiro e o próprio Marechal Deodoro.