O PLANO DE KOELER

Guilherme Pedro Eppinghaus

A escolha do tema foi imposta pela dúvida levantada sobre o alvorecer da história de Petrópolis.

Se, por vezes, escritores tratam com benevolência figuras e fatos da história, fugindo assim à realidade, outros há que aplicam a malevolência, praticando um mal por vezes irreparável. A história de Petrópolis sofreu, lamentavelmente, os efeitos da malignidade, a que interesses inconfessáveis davam campo e medraram os males como cresce a erva daninha.

A própria chegada dos colonos foi manchada por correspondência atribuída ao Pastor Stroele e publicada. Nela não foram poupadas as autoridades brasileiras, nem houve moderação ao descrever inverdades que atingiram Koeler, os colonos e suas famílias.

O plano de Koeler foi também criticado, houve referências a planos anteriores que fracassaram, não houve restrições na aplicação da maldade e inúmeras inverdades foram inventadas.

É indispensável que sejam expurgados os erros, inclusive os consequentes de comentários referentes a esta ou aquela imprevisão, feitos apressadamente.

Só a análise tranquila coloca tudo nos devidos lugares, e é o que neste conjunto de apreciações será tentado, com as deficiências e falta de autoridade que o culto e distinto auditório suprirá, com a benevolência que o caracteriza.

Falar sobre a data que hoje comemoramos seria repetir o que muitos ilustres historiadores já descreveram, como resultante de suas pesquisas e dos conhecimentos legados também através das recordações dos velhos colonos e seus descendentes. Entretanto, dentro dos limites razoáveis, é bom referir que, depois das acidentadas travessias dos imigrantes, tem início o trabalho concreto das realizações.

Como muito bem escreveu Alcindo Sodré, no capítulo “Quando Petrópolis amanhecia”, publicado em 1950 na Revista do Instituto Histórico de Petrópolis: ­ “Petrópolis nasceu com a construção do Palácio Imperial”.

O Major Koeler concebera o plano que serviria de orientação à formação e desenvolvimento da cidade que hoje conhecemos como original entre os demais. Ao examinar as realizações que obedeceram o projeto, os documentos que regularam o crescimento com as condições de uso e a legislação geral então vigente, conclui-se que o plano previa, com antevisão de mais de um século, a dilatação horizontal da cidade, expandindo-se pelo vale do rio Piabanha e seus afluentes para montante e, em futuro para ele ainda remoto, para jusante do maior rio que banha o Município.

É de admitir-se ­ é, aliás, certo que, não fora o acidente ocorrido em 1847 que teve como conseqüência a morte de Koeler, no dia 21 de novembro, prosseguiria este no estudo e, quanto possível, no encaminhamento da expansão pelo mesmo sistema, completando deste modo a planta que iniciou e muito adiantou.

Koeler idealizou, também estribado na exigência contratual de 1843, contida no Decreto de arrendamento, a constituição de uma colônia agrícola. S.M. D. Pedro II, embora não fosse glutão, nem por atavismo, previu a necessidade de não só abastecer o povoado, mas, ainda, de garantir consumo próprio das colônias e elementos de trabalho nas áreas intermediárias, pois nelas se instalariam os artesãos das obras a realizar.

De acordo com o que fora contratado, Koeler fundou a divisão no princípio básico da circundação das áreas de consumo local pelas de produção em relação ao previsto centro urbano. Koeler aproveitou a circunstância incalculável de terem vindo artífices de todos os gêneros, para cumprir também o dispositivo da segunda exigência, que dizia respeito à construção do Palácio de veraneio da Família Imperial. Pelo respeito que dispensava ao cumprimento das obrigações assumidas e pela importância da obra, deu início desde os primeiros passos, à construção desse Palácio.

Em todas as obras foram de pronto aproveitadas as habilitações dos colonos recém-chegados; entre eles havia conhecedores do aproveitamento de toda a sorte dos ainda restritos recursos locais, entre eles o granito, madeiras, argilas, areia e outros, que a natureza oferecia com abundância e boas espécies.

Na circunvizinhança da primeira obra projetada foram erguidas as residências e os palácios, por sequência das exigências mais imediatas. Foram, por outro lado, reservadas as áreas para construção da Matriz, Quartel de Bragança, praças, administração e as faixas para ruas, estradas, caminhos e canais.

A mais segura prova do acerto com que Koeler elaborou o plano sob o ponto de vista urbanístico é tirada no confronto da planta original de 1846 com a regulamentação posterior, que foi impressa nos títulos de aforamento e subscrita em 1-4-1846 por José Maria Velho da Silva, cujas instruções mereceram forma para execução do Decreto Imperial de 16-3-1843, que manda aforar terras em Petrópolis. O primeiro ponto importante observado na pesquisa contém a arguição relativa ao tempo e ao modo empregados por Koeler, face ao volume da realização, ou melhor, quando e de que modo conseguiu Koeler tanto em tão pouco tempo?

Antes do trabalho de gabinete, foi necessário, e isto é indiscutível, a obra material e gigantesca de conhecimentos dos vales pelo talvegue, da orografia pelas cumiadas e a formação geológica da área em estudo. Não foi simplesmente olhando e sentindo os acidentes topográficos, mesmo porque as cabeceiras, e na maior parte os rios e córregos, tinham suas superfícies cobertas de densas matas. Necessário foi o levantamento, incluindo altitudes e pesquisa da formação das estruturas rochosas e os revestimentos de terras onde se mantinham as florestas exuberantes. Com que recursos e equipamento contava Koeler para tudo isto, é ponto ainda não conhecido de todo.

É fora de dúvida que o levantamento foi feito, bastando olhar para a planta e ler o regulamento da povoação. Com que instrumentos contou Koeler? Não há referência, nem foram encontrados elementos que esclareçam o detalhe; provavelmente o emprego da bússola, podômetro e aneróide nos reconhecimentos expeditos; o taqueômetro e nível nos levantamentos e talvez o clinômetro nas seções. Os trabalhos de levantamento, desenho e projeto, feitos simultaneamente, iniciados depois de 16-3-43, data do Decreto que determina o aforamento, ficaram esboçados no correr de 1846. A planta contém rios e afluentes, ruas e praças, estradas e caminhos, os prazos em que foram subdivididos os quarteirões, os terrenos reservados à construção da Matriz, do Palácio Imperial, à administração, etc., tudo dentro da área levantada e desenhada em escala. Com detalhes podem ser visto no desenho os cursos dos rios Piabanha, o principal, e os afluentes:

1) O Avé-Lallemant, que corta parte alta do Bingen, paralelamente à Rua Darmstadt, conflui na margem direita do Piabanha;

2) O Alpoim, que corre pelo vale do Ingelheim paralelamente à Rua do mesmo nome;

3) O Paulo Barbosa, pelo vale do Quarteirão Mosela ao logo a Rua que tem este nome;

4) O Simonsen, que conflui na margem esquerda do Paulo Barbosa, desce pelo vale da contra-vertente da Rua Kopke, mais tarde cognominado Quarteirão das Bananeiras;

5) O Almeida Torres, que conflui na margem direita do rio Quitandinha, hoje canalizado ao longo da anteriormente denominada Rua de Joinville ­ hoje Ipiranga;

6) O Lomonosoff, afluente da margem direita do Palatino, canalizado ao longo das Ruas João Caetano e Benjamin Constant, desaguando na Rua Caldas Viana, antigamente denominada Toneleros e Porciúncula;

7) O Palatino, que atravessa o Palatinado Superior, conflui no Quitandinha no local conhecido como Bacia, no centro da Rua do Imperador, hoje Avenida 15 de Novembro, onde está situada a Praça D. Pedro II, cuja denominação já foi Imperador e Dom Pedro de Alcântara;

8) O Limpo, que corta em parte o Quarteirão Palatinado Superior, conflui na margem esquerda do Palatino, no início da Rua Augusto Severo;

9) O Gusmão, conflui no Palatino no local onde foi projetada a Praça de Woerstadt;

10) O Ribeiro, atravessa a parte alta do Quarteirão Castelânea, conflui no rio Aureliano, pouco acima da barra do Verna;

11) O Verna, que conflui na margem esquerda do rio Aureliano;

12) O Aureliano, que conflui na margem direita do Quitandinha, corre ao longo das Ruas Sargento Boening, Cardoso Fontes e Saldanha Marinho, desaguando no local conhecido por Duas Pontes;

13) O Theremin, afluente da margem direita do Saturnino;

14) O Saturnino, afluente da margem direita do rio Quitandinha;

15) O Quitandinha, atravessa os Quarteirões Siméria, Renânia Central, Renânia Inferior e a Vila, conflui no Piabanha na projetada Praça de Coblenz, no Palácio de Cristal;

16) O Cavalcanti, que tem confluência na margem esquerda do rio Quitandinha, na projetada Praça de S. Goar.

Como se verifica são 16 os afluentes e mais o principal, portanto 17 os cursos de rios e córregos levantados e desenhados. Outros, que constam em outras fontes de informação, não chegaram a ser representados na planta original. Sobre essa base, isto é, ao longo dos vales, foram projetados os acessos aos prazos. Estes foram divididos em 4 classes, 1ª, 2ª, 3ª e 4ª a partir da Vila, que foi destinada ao centro urbano.

O modo pelo qual foram distribuídos e fixados os direitos e deveres dos foreiros, foi especificado na já referida Portaria de 20-3-1847 que alterou a de 1-4-1846. Já havia, portanto, nesta data, instruções para execução do Decreto Imperial de 16-3-1843.

Fica assim examinado o primeiro ponto de importância, relativo ao tempo e ao modo empregados por Koeler no seu plano.

Pelas dificuldades próprias dos recursos na época disponíveis, o tempo gasto, foi mínimo para a qualidade do trabalho feito.

O segundo ponto também importante pode ser examinado nas instruções alteradas pela Portaria de 20-3-1847, cujos detalhes as aproximam dos de um Código de Posturas e podem ser considerados como o limiar para o primeiro código que data de 31-3-1893. Por ele fica comprovado o que Koeler pretendia atingir.

Mas voltando ao disposto nas instruções, pelo seu Art. 2º, os prazos de 1ª classe se destinariam à povoação próxima ao Palácio Imperial, com frente para ruas e praças, tendo 5 até 10 braças de testada e 70 de fundo.

Pelo Art. 3º, os prazos de 2ª, isto é, os próximos da povoação e os colaterais à estrada geral, com exceção dos reservados à 3ª classe, pagariam o foro de 15 réis por braça quadrada superficial. Este valor unitário corresponde à metade do foro de 1ª classe. Pode-se concluir assim que sua importância diminuía na proporção do afastamento em relação ao centro urbano, considerado mais nobre pelo valor das residências e das casas comerciais.

Pelo Art. 4º, os prazos de 3ª classe, terrenos colaterais à calçada já existente no alto da serra, com 15 braças de frente e até 100 de fundo, pagariam foro de 100 réis por braça superficial.

Pelo Art. 5º, em toda parte restante e principal da fazenda, a divisão era feita em quarteirões de 30 a 200 prazos, maiores que os anteriores. Nestes, que eram os mais próximos da povoação e do alto da serra, a divisão foi prevista de um modo geral com 5.000 braças, e os mais longínquos até 15.000 braças superficiais pagando o foro de 5 réis.

Observemos esses detalhes e mais os contidos no Art. 6º, que condicionava a reserva nos altos das montanhas e colinas das matas necessárias à conservação das águas, além das destinadas às edificações imperiais, edifícios, praças, ruas, caminhos, pontes e cemitérios, entendido por edificações imperiais e edifícios, as obras destinadas a serviços públicos, como represas, mirantes, pavilhões e outras.

A dedução lógica do conteúdo especificado é de que Koeler teve profunda preocupação com a devastação das matas, erosão nas encostas e suas consequências danosas com o escoamento das grandes precipitações pluviométricas, que já na época se faziam sentir com as chuvas de verão, mesmo sem os resultados altamente prejudiciais dos tempos que correm, aliás, previstas por Koeler, que pretendeu preveni-las com a regulamentação anteriormente referida. Atentando para as dimensões dos lotes, principalmente para sua profundidade, preservação das matas e restrições ao uso do alto das montanhas, quis Koeler evitar a corrida da capa arborizada.

Foi a subdivisão em profundidade, processada muito posteriormente, a causadora dos ferimentos nas montanhas, motivo das corridas de terras, vulgarmente conhecidas por barreiras, porque de um modo geral os terrenos íngremes têm estrutura rochosa cuja contextura impermeável permite a formação de um plano de escorregamento, tanto mais grave quanto mais inclinado.

É do disposto pelo § 7º do Art. 15 que cresce de valor a medida preventiva, quando especifica: ­ “Não é permitida alienação parcial do prazo, senão em proporções de 5 braças de frente com fundo total respectivo, precedido ainda de licença, portanto dependente da aprovação do Superintendente”. Assim era encarecida a questão da divisão dos prazos; não havia seccionamento em profundidade. Era a proteção natural das encostas o ponto crucial visado.

Muitos outros pontos relevantes foram também encarados com seriedade, competência e descortínio.

Parece irrisório, mas é fundamental, quando, no Art. 8º, ficou especificado que “só serão aforados a pessoas conhecidas, de boa conduta e que ofereçam garantias de edificar e cultivar, nunca mais de um prazo ao mesmo indivíduo, exceto quando se obrigue a alguma empresa de notória utilidade pública”. “Todavia o que possuir um prazo de 1ª, 2ª ou 3ª classe pode obter mais 1 de 4ª”. Donde se infere que Koeler prevenia a presença de “maus elementos” e previa a penetração da propriedade de recreio na zona rural.

Não era, por outro lado, infenso ao crescimento vertical moderado, limitando a altura das construções em função da largura dos logradouros, dando-lhes pé direito mínimo de acordo com a utilização.

Nas ruas, estradas e caminhos, além das larguras mínimas, foram determinadas as declividades máximas.

O Plano de Koeler tem muito de bom, tem muito de humano, nele foi observada a face social, foram examinados os princípios de higiene, o turismo e o fenômeno da ordem e do progresso..