O ATENTADO

Joaquim Eloy Duarte dos Santos, associado titular, cadeira n.º 14, patrono João Duarte da Silveira

Atentados contra a vida, em todo o Mundo, têm sido uma constante na história dos povos. Reis, imperadores, presidentes, lideres religiosos, artistas, ídolos, lideranças, somam-se aos milhares. Fatos delituosos contra cidadãos comuns ganham notoriedade durante certo tempo e acabam no esquecimento adiante, no desabrochar de novas gerações.

A História registra nos documentos e narrativas, os fatos e feitos envolvendo autoridades e cidadãos notáveis, principalmente as da área política, quando assassinadas em ocorrências de forma pública e espetacular. E, também, delitos que deixam dúvidas, que geram especulações, adoçam as massas com interpretações e fantasias, para deleite dos caçadores de escândalos e de nebulosidades históricas.

São clássicos os assassinatos dos romanos Caio Júlio Cesar (44 a.C.) e Cláudio (10 a.C.), na Roma do poder e da corrupção; célebres o do Chanceler da Inglaterra Tomás Beckett (1170); do poeta e dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1593) e do revolucionário francês Jean-Paul Marat (1793); damos em salto para o século XIX, com progressivos crimes de eliminação por assassinato de pessoas importantes e influentes, como os presidentes norte-americanos Abraham Lincoln (1865), James Garfield (1881) e William McKinley (1901); o arquiduque Francisco Ferdinando, sucessor do trono do Império Austro Húngaro (1914); o governador da Louisiânia (USA) Huey Pierce Long (1935); o revolucionário russo Leon Trotski (1940); o líder espiritual da Índia Mahatma Mohandas Gandhi (1948); o presidente norte-americano John F. Kennedy (1963) e seu irmão, o senador Robert Kennedy (1968); o nacionalista negro e líder muçulmano Malcolm X (1965); o líder de campanhas por direitos civis nos Estados Unidos Martin Luther King (1968); o ator de cinema Sal Mineo (1976); o Príncipe Real Britânico Lorde Mountbatten (1979); o músico, cantor e compositor John Lennon (1980); o Presidente do Egito Anuar El-Sadat (1981); a Primeira Ministra da Índia Indira Gandhi (1984); o 1º Ministro de Israel Yitzhak Rabin (1995); o figurinista e estilista de moda Gianni Versace (1997) e muitos outros. (1) Podemos acrescentar, ainda, o Rei D. Carlos de Portugal, o cineasta e poeta italiano Píer Paolo Pasolini, o senador Pinheiro Machado, no Brasil, etc.

No Rio de Janeiro, na rua Toneleros, ano de 1954, ocorreu um assassinato, de natureza política, morrendo o Major Rubens Vaz, por erro de pessoa, já que o visado era o jornalista Carlos Lacerda, em crime que resultou, nos desdobramentos, no suicídio do Presidente Getulio Vargas.

A sanha assassina não conseguiu abater alguns presidentes norte-americanos, que sofreram atentados como Andrew Johnson, Jefferson Davis,Theodore Roosevelt, Franklin Delano Roosevelt, Harry S. Truman, Gerald Ford, Richard Nixon, Ronald Reagan e Bill Clinton. No século XX dois papas sofreram atentados: Paulo VI e João Paulo II; também políticos franceses como Charles De Gaule, Jacques Chirac e a Ministra Britânica Margareth Thatcher; não esqueçamos o malogrado atentado contra Adolph Hitler, que se tivesse sucesso, teria mudado o curso da 2ª Guerra Mundial, e outros. (2)

(1) Spignesi, Stephen J, Tentativas, Atentados e Assassinatos que estremeceram o mundo, São Paulo: M Books do Brasil Editora Ltda. 2004. A obra contém narrativas de 27 assassinatos consumados e 75 tentativas.

(2) Ibidem. Op. Cit.

E o Brasil também teve o seu atentado a um Chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.

É um fato que pouco mereceu atenção no todo da História do Brasil, esquecido ou tratado com indiferença nas obras biográficas. Um fato menor, desenlace gorado pela imperícia do atirador, que não atingiu o Imperador, seus acompanhantes e mesmo transeuntes. O fato aconteceu à noite, em via pública, na direção da entrada principal de um teatro, no Rio de Janeiro.

Investiguemos o atentado.

Na noite de 15 de junho de 1889, o Imperador D. Pedro II , acompanhado da Imperatriz D. Teresa Cristina, da Princesa Isabel e esposo Conde D´Eu e o jovem D. Pedro Augusto, compareceu ao Teatro Sant´Ana, Praça da Constituição, centro do Rio de Janeiro, para um concerto da violinista Giulietta Dionest. (3)

(3) O Imperador D. Pedro II prestigiava os espetáculos encenados na Corte, sempre acompanhado pela Imperatriz D. Teresa Cristina e amigos mais chegados.

Após o espetáculo, lá pelas 23 horas, o Imperador saiu do teatro, pela porta principal, encontrando, como sempre ocorria em tais ocasiões, muitas pessoas a saudá-lo e cumprimentá-lo. Ao atingir a calçada, ouviu, partindo do meio daquele povo:

– Viva a República!

Não fora a primeira vez que ouvira e pouca importância emprestou ao grito. Sua guarda quis reagir, intentando procurar o autor da provocação, mas foi impedida pelo Imperador:

– Deixa essa gente sossegada…

– Majestade, isto é um insulto! – mostrou-se preocupado o delegado que o acompanhava.

– Cada um que faça o que quiser, completou o Imperador, enquanto entrava na carruagem para retornar à residência imperial na Quinta da Boa Vista.

Com todos acomodados na viatura, D. Pedro autorizou a partida, que seguiu pela rua do Espírito Santo. Em frente ao nº 19, na calçada fronteira à Maison Moderne, saiu do grupo ali aglomerado, um jovem e de uma distância de 10 metros disparou um tiro de revolver contra a carruagem. O disparo não atingiu ninguém, perdendo-se na escuridão da noite mal iluminada pelos lampiões. As pessoas que estavam nas calçadas e espalhados pela rua mal se aperceberam do acontecido, algumas vendo o rapaz correr pelos lados da rua Gonçalves Dias até desaparecer na escuridão. A carruagem seguiu o seu trajeto sem qualquer transtorno. Narrando o fato o Ministro da França, próximo ao local, afirmou que o disparo parecera um estalido de chicote. (4)

O Delegado de polícia e policiais da escolta, informados do ato, buscaram o atirador, seguindo a orientação de algumas pessoas mais atentas. Pouco tempo de procura, às 2 horas da manhã, encontraram o quase regicida escondido dentro de um bonde, encaminhando-o para a Ilha das Cobras, onde ficou confinado em um cubículo. Tratava-se do comerciário Adriano do Vale, de 20 anos, cidadão português, que perdera o emprego recentemente. Nos depoimentos prestados afirmou que agira sozinho, por um impulso e por ser avesso aos “tiranos”. Tentaram os inquiridores extrair do rapaz possíveis motivações políticas, sob ação encomendada de conspiradores contra o Regime ou mesmo sob o comando de republicanos exaltados. Tudo em vão; fechado e reticente, confessou a autoria única do ato e ficou detido aguardando pronunciamento da justiça. (5)

O Imperador foi informado da tentativa, porque nada percebera, exclamando:

– Não foi nada de importância! – observação que anotou mais tarde em seu diário. (6)

(4) Informação do Ministro da França registrada pela imprensa.

(5) Informações colhidas na imprensa da época.

(6) Diário, em Cannes, 5 de julho de 1890, onde D. Pedro registrou as suas impressões sobre o fato

Mas o atentado ocorrera e felizmente não fatídico; repercutiu no Rio de Janeiro e no Exterior. A imprensa noticiou sem escândalo, talvez sob orientação dos republicanos para que o fato não virasse negativamente sobre o movimento, enquanto a Revista Ilustrada divulgava o feito na capa e com desenho de Ângelo Agostini em registro pictórico o mais fidedigno possível, com base nos depoimentos e narrativas das testemunhas do acontecimento. (7) A Revista de Portugal, editada em Lisboa, preocupou-se e apresentou reportagem com desenho, tal como o fizera a Revista Ilustrada. (8) Em ambas as publicações, os artistas reproduziram o perfil de Adriano do Vale. A colônia portuguesa no Brasil reuniu cerca de 3 mil pessoas para manifestar o sentimento de todos haja vista ter sido um cidadão lusitano o autor do atentado.

(7) Revista Ilustrada, ano 14, nº 557, Rio de Janeiro, 1899, como matéria de capa, com desenho de Ângelo Agostini idealizando o fato e apresentado o atirador em efígie.

(8) Revista de Portugal, 1889, com desenho mostrando o fato sob outro ângulo e com medalhão com efígie de Adriano do Vale.

A nobreza européia, solidarizou-se com o Imperador, chegando muitos telegramas. O Diário Oficial do Império do Brasil, de 21 de julho de 1889, divulgou na Seção Telegráfica algumas dessas mensagens: duas selecionadas:

do Presidente do Conselho e Ministro de Estrangeiros de Portugal:

“Em nome de todo o governo e interpretando os sentimentos da inteira nação portuguesa, manifesto ao Imperador e ao Governo do Brasil, profundo sentimento por esse atentado, e faço votos para que se não resinta por causa dele a preciosa saúde do Imperador”; (9) do ministro de estrangeiros do Uruguai:

“Sirva-se V. Exª presentar al Gobierno Brazilero las sinceras felicitaciones del Presidente de La República por haber salido ilezo el Emperador del attentado reciente contra su vida”. (10)

(9) Diário Oficial do Império do Brazil, Secção Telegráfica, 21 de julho de 1889.

(10) Idem.

Em verdade foi grande a apreensão, apesar das negativas oficiais do governo e as evasivas do Imperador, preocupando a todos, como a Princesa D. Francisca, que disse em carta à Princesa Isabel:

“Ainda não estou de todo livre da grande emoção que me deixou o infame atentado contra o nosso precioso e querido Imperador”. (11)

A Imperatriz D. Teresa Cristina, ponderada e sábia, expendeu uma opinião à sua amiga Maria Antônia de Verna, que bem diz de sua aflição e até premonição diante do delituoso fato:

“O Imperador e o governo estavam profundamente enganados. Esse moço não faria aquilo se não obedecesse a uma trama política. A revolução está ai, Maria Antônia e, talvez, a república e a anarquia”. (12)

(11) Carta de 29 de julho de 1889.

(12) Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, artigo de 2 de dezembro de 1925.

O Imperador não alimentava tantos receios e revelou a um amigo próximo:

“Foi só um tiro de louco, sem intenção, e que mal ouvi. Não tem importância”. (13)

A investigação progrediu e foram ouvidas muitas testemunhas e colaboradores pesquisaram e expenderam opiniões, como Nogueira Soares, da Legação Portuguesa, o qual, em ofício, descreveu o atirador:

“Exaltado e inclinado a meter-se em ajuntamentos e barulhos”. (14)

(13) Idem, op. cit., 20 de julho de 1889.

(14) Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 25 de julho de 1889.

A imprensa ocupou-se do assunto, tema excelente para jornalistas, articulistas, repórteres para chamar a atenção do publico e vender jornais; compreendeu a gravidade do fato, levou-o ao noticiário na expectativa de desdobramentos que interessassem os leitores durante algum tempo. Além dos noticiários das redações, alguns articulistas notáveis comentaram, sobre o fato, como Rui Barbosa, Medeiros de Albuquerque e Ferreira de Menezes. Se o fato foi comentado com seriedade pela imprensa brasileira, o mesmo não se deu com a imprensa portuguesa, onde vários articulistas e chargistas ridicularizaram o acontecimento. Os governos francês e inglês remeteram sentimentos de solidariedade para S. A. D. Pedro II e Família, bem como de outros paises do Velho Continente. As Casas Legislativas, por alguns representantes ligados ao Governo, lamentaram o fato, exigindo providências.

E tudo passou em meio à crise já de há muito instalada na política, culminando com a deposição do Imperador a 15 de novembro de 1889, ficando o atentado esquecido. A dúvida, no entanto, ficou no ar ou preferiu-se substituí-la pelas preocupações com a instalação do novo regime. Teria o tiro de Adriano do Vale endereço político, fora uma conspiração ou o jovem agira por descontrole emocional, procurando chamar a atenção para seu problema de forma contundente?

Dúvidas e dúvidas nunca esclarecidas. Teriam os republicanos evitado demasiada publicidade sobre o fato porque o Imperador passaria por vítima do movimento? E o Governo Imperial talvez não desejasse alimentar o episódio para não fortalecer os republicanos por capazes de um ato extremado de força e coragem?

Nas obras gerais sobre a História do Brasil e as específicas sobre a História do Império, a ocorrência não é mencionada, nem comentada, como se nunca tivesse existido.

Recentemente Lília Moritz Schwarcz relata o fato sob as informações contidas em pesquisas anteriores, adiantando opinião, quando diz:

“Na verdade, se o episódio não oferecia riscos maiores, o fato se transformava em evento quando a ele se colavam uma série de significados. Nesse ano tão intenso, o atentado surgia como símbolo da fragilidade do regime para alguns, amostra dos ânimos exacerbados para outros”. (15)

(15) Schwarcz, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II um Monarca nos trópicos. Editora Schwarcz Ltda. 1998, São Paulo, página 449.

A fragilidade do regime alegada contradiz as narrativas do fato, quando se atribui o atentado a um ato isolado de um desempregado e ai, sim, sob ânimo exacerbado, porém não provada ou cogitada qualquer conjuração ao nível popular. O movimento republicano agia, e muito, contando com a liberdade de expressão que caracterizava o Império e, em nenhum momento da campanha ocorreram confrontos que molestassem a tranqüilidade pública.

Deposto o Imperador, instalada a República, naquele 15 de novembro, enquanto a Família Imperial estava em alto mar no caminho do exílio, deixava no catre da Ilha das Cobras o cidadão português Adriano do Vale. Determinado que compareceria diante do Tribunal do Júri a 23 de novembro de 1889, poucos dias após a implantação do novo regime, o quase regicida acabou solto sem julgamento. O acontecimento não teve repercussão, simplesmente botou-se uma pedra sobre o assunto.Adriano do Vale permaneceu no Brasil, constituiu família, tornou-se agrimensor e faleceu a 30 de março de 1903, em Miracema, Estado do Rio de Janeiro, na bruma do esquecimento. Houve o cuidado do sigilo e muita reserva, o que leva a crer não interessar aos revoltosos republicanos uma demasiada exploração do fato, sem dúvida perigoso para o golpe contra o Império, diante do prestígio popular e político da vítima do atentado.

Em verdade, a quartelada contra o Regime, foi realizada na sombra e de forma velada, sob coação infame à Família Imperial, obrigada a aceitar a renúncia imposta, tudo entre paredes e na quietude intestina do Poder. A população do Rio de Janeiro, da Corte enfim, não participou do movimento, não foi ouvida através da representação popular legal, não percebeu o embarque na calada da noite da Família Imperial para o exílio e não soube que tinha D. Pedro II acatado o império da espada e entregue aos revoltosos o cetro do poder.

O atentado ficara para trás, acontecido 153 dias antes do 15 de novembro, recente mas nebulosamente esquecido; o cidadão português preso incomunicável em catre militar nem soube do movimento sedicioso deitando cascos na ruas da Corte até a entrega reservada do ultimato de deposição, em ambiente doméstico, ao Imperador, sem manifestações heróicas e fanfarronices de rua, como um grande artista brasileiro representou em tela, registrando um acontecimento que assim não ocorreu.

Adriano do Vale, o quase regicida, teve registro de seu feito pífio e apagado, sob alguns segundos de notoriedade, que em nada afetou o curso da História do Brasil.

D. Pedro II e sua Família, no derradeiro ano do Império, foram protagonistas indefesos de dois atos de violência ocorridos em duas saídas de teatro; a do teatro espetáculo e a do teatro da política onde títeres renderam-se a habilidosos manipuladores para reencaminharem os destinos de uma nação que era feliz e não sabia.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Antônio da Rocha. Vultos da Pátria. Porto Alegre. Editora Globo.1961, 4 vols.
BESOUCHET, Lídia. D. Pedro II e o século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.
CALMON, Pedro. História de D. Pedro II., Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora, 1975, 5 vols.
LYRA, Heitor. Historia de D. Pedro II. (1938-1940). São Paulo; Belo Horizonte. Edusp; Itatiaia, 1977, 3 vols.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II um Monarca nos trópicos. São Paulo. Editora Schwarcz Ltda. 1998.