OS 110 ANOS DA TRAGÉDIA DA PIEDADE

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

 

Foi a 15 de agosto de 1909 que Euclides Pimenta da Cunha subiu aos céus nos braços de Nossa Senhora da Glória depois de ter sido vitimado por uma bala assassina no subúrbio carioca da Piedade.

Euclides da Cunha morreu prematuramente quando muito teria que contribuir para o enriquecimento da cultura nacional, para a integração ibero-americana, para a fixação dos limites do norte do país.

Sete anos antes de seu falecimento, o filho de Cantagalo legou ao Brasil aquilo que para alguns não passava de um monumento literário escrito em linguagem rebuscada, mas que para os estudiosos da realidade nacional representava um tratado que aglutinava conhecimentos geográficos, históricos, etnossociológicos e demopsicológicos. Intitulava-se a obra “Os Sertões” que tinha como enfoque especial a questão de Canudos a emblematizar um tema muito mais profundo e abrangente nos sertões brasileiros.

As causas do fenômeno canudiano foram levantadas e discutidas na obra em apreço e as soluções para o drama sertanejo, com base no diagnóstico, dependeriam apenas da vontade política dos governantes de quaisquer esferas do poder.

Mas o caso de Canudos, tratado de per si, como um tumor que precisava ser extirpado com base no pressuposto de que o Conselheiro era inimigo da República, tornou-se um fim em si mesmo. Entretanto, ele deveria ter sido contextualizado, para que a população sertaneja, atraída pelos paranoicos de ocasião, que ofereciam o céu na terra, não prosseguisse no cumprimento de seu triste destino, escrava da ignorância e da indigência.

“Timeo homo unius libri”, diziam os latinos, isto é, tenho medo do homem de um livro só. Mas, embora, “Os Sertões” seja o carro chefe de Euclides da Cunha, escreveu ele outras obras tão importantes como aquela. “Contrastes e Confrontos” é uma delas e “À Margem da História” veio a lume dois meses após a sua morte. Neste livro Euclides da Cunha revelou-se um eminente líbero-americanista, com os olhos voltados para a Amazônia, para o Prata, para as vertentes andinas do Pacífico.

Tratando da Amazônia, e o tema está agora na ordem do dia, disse Euclides que quando de sua conquista pelo homem branco, não se sabia se aquilo era uma bacia fluvial “ou um mar profundamente retalhado de estreitos”. E afirmou enfático: “O homem ali é um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado, nem querido quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão.”

Daí se conclui que a chegada do homem à Amazônia foi prematura e catastrófica.

Ainda tratando do tema amazônico, asseverou Euclides da Cunha:

“A volubilidade do rio contagia o homem. No Amazonas em geral sucede isto: o observador errante que lhe percorre a bacia na busca de variados aspectos, sente ao cabo de centenares de milhas, a impressão de circular num itinerário fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias, ou barreiras, ou ilhas e as mesmas florestas e igapós, atirando-se a perder de vista pelos horizontes vazios; o observador imóvel que lhe estacione às margens sobressalteia-se intermitentemente diante de transfigurações inopinadas. Os cenários invariáveis no espaço, transmudam-se no tempo. Diante do homem sedentário que planeje submetê-la à estabilidade das culturas, parece espantosamente revolta e solúvel, surpreendendo-o, assaltando-o, por vezes, quase sempre, afugentando-o e espavorindo-o.

Daí a paralisia completa das gentes que ali vagam há três séculos, numa agitação tumultuária e estéril.”

Tomando-se por base estas sábias palavras de Euclides da Cunha, tem-se que nestes cento e dez anos contados do lançamento da obra em exame, substituiu-se a paralisia do autóctone pela invasão bárbara e neurótica dos alóctones, agravando-se a agitação tumultuária e estéril denunciada por Euclides a partir dos anos setenta dos novecentos. Fui testemunha desse processo deletério quando de minhas andanças pela Amazônia entre 1981 e 1982. E nunca o tema esteve tão em evidência, provocando, inclusive, a preocupação do planeta como agora.

Cento e dez anos se passaram desde o desaparecimento de Euclides da Cunha e ele continua vivo com suas observações magistrais.

Passando de um polo a outro, Euclides da Cunha, no seu “À Margem da História”, fez uma síntese das diferenças fundamentais entre o Brasil e Argentina. Disse Euclides que o progresso argentino adveio de suas estradas de ferro, enquanto as nossas ferrovias foram consequência do nosso progresso.

Para o genial escritor fluminense, no caso argentino, o “alóctone mudou de hemisfério sem mudar de latitudes”. Já em termos brasileiros, “para vencermos a terra houvemos que formar até o homem capaz de a conhecer – criando-se à margem dela, com as suas rudezas e suas energias revoltas – por maneira a talhar-se um tipo mestiço e inteiramente novo do ‘bandeirante’, a figura excepcional do homem que se fez bárbaro para estradar o deserto, abrindo as primeiras trilhas do progresso.”

Dotado do verdadeiro espírito americanista, isto é, congraçamento dos povos líbero-americanos através do mútuo conhecimento, Euclides da Cunha fixou-se nas reflexões sobre a capacidade integracionista do sistema ferroviário argentino.

No princípio do século XX era a malha ferroviária dos argentinos a décima do mundo. Dentre as vias férreas do país vizinho, destacou Euclides a “The Buenos Ayres and Rosario Railway”, que se conectava com a “Central Norte” que chegando a Jujuy no extremo noroeste argentino, entrava na Bolívia por La Quiaca.

Esta linha fazia parte da “Pan American Railway”, cujo projeto havia sido apresentado na Conferência de Washington, realizada em 1889.

Com o avanço dos trilhos da “Central Norte” pelo território boliviano a partir de 1900, Euclides da Cunha imaginava que em cinco anos dois trechos da sonhada estrada de ferro Pan-americana poderiam estar concluídos, ligando Buenos Ayres à Lá Paz e a capital boliviana à Lima, no Peru.

Mas eis que entrou em cena a abertura do Canal do Panamá. Os países andinos rapidamente voltaram-se para ele na esperança de fazerem escoar os seus produtos no rumo do mercado europeu de maneira mais rápida, cômoda e barata. Para o autor de “À Margem da História” a Argentina acabou sendo a grande prejudicada com a abertura do mencionado canal. O sonho da ferrovia Pan-americana não chegou a dar os frutos desejados.

O nosso sistema ferroviário foi, em grande parte, idealizado e posto em prática durante o período monárquico.

No alvorar da República Euclides da Cunha vislumbrou três ferrovias de indubitável índole integracionista. Eram elas: A Madeira – Mamoré, a São Paulo ao Rio Grande e a Noroeste do Brasil.

A primeira poria em contato direto o departamento boliviano do Beni com o porto de Belém do Pará. Porém, apesar dos sacrifícios humanos e financeiros, ela não chegou a cumprir totalmente o seu itinerário e hoje não passa de reminiscência sintetizada em modesto museu em Porto Velho, Rondônia.

A segunda fazia parte de um projeto ferroviário transbrasiliano e pretendia que seus trilhos chegassem ao Paraguai, ao Uruguai por Santana do Livramento e Rivera e à Argentina, por Uruguaiana. Mas tal projeto integracionista somente se realizaria com o processo de rodoviarização no Cone Sul.

A terceira que partindo de Bauru, SP. dirigia-se a Corumbá, MS. Tinha intenções de atrair o comércio do sudeste boliviano e do norte paraguaio, mas nunca ultrapassou o território brasileiro.