A PRIMEIRA ESTRADA DE FERRO DO BRASIL

José Nicolau Tinoco de Almeida

Nota: Transcrição da obra rara “Petrópolis – Guia de Viagem” – de J. Tinoco, editada no Rio de Janeiro, em 1885. Raul Lopes

(…) Chega o viajante ao têrmo da viagem por mar avistando o pôrto de Mauá, situado entre as duas capelas da Guia (antiga Ermida de Santa Margarida) à esquerda e dos Remédios à direita. Daí a viagem é por via férrea. Começando no pôrto de Mauá a primitiva Estrada de Ferro de Mauá, a primeira que se inaugurou no Brasil, percorria, sem vencer dificuldades, terrenos pouco acidentados até a Raiz da Serra da Estrêla. A bitola era de 1,68m., a declividade máxima de 1,25%, o raio mínimo das curvas 290,32m., tendo zona privilegiada de 20 quilômetros ao lado.

Por decreto nº 987 de 12 de junho de 1852 o govêrno concedeu privilégio por 10 anos para navegação a vapor entre a cidade do Rio de Janeiro e o Pôrto da Estrêla, donde começaria a construção de uma estrada de ferro até a Raiz da Serra, que foi concedida pela província a 27 de abril do mesmo ano. O concessionário da estrada foi o cidadão Irineu Evangelista de Sousa, barão e mais tarde visconde de Mauá com grandeza.

A Companhia teve os estatutos aprovados por decreto nº 1.101 de 29 de dezembro de 1852; os trabalhos de campo foram encetados a 29 de agôsto do mesmo ano, entregando-se ao tráfego a 30 de abril de 1854 a 1ª secção, sendo inaugurado o trecho, que restava, em 16 de dezembro de 1856.

O decreto nº 2.464 de 19 de setembro de 1860 aprovou os novos estatutos e ampliou por 30 anos o prazo do privilégio anteriormente fixado em 10. O marcado no privilégio concedido pelo então presidente da província Luís Pedreira do Couto Ferraz, depois visconde do Bom-Retiro, em 27 de abril de 1852 foi prorrogado por mais 70 anos em 21 de fevereiro de 1883.

É esta a via férrea primogênita do Brasil, a patriarcal Estrada de Ferro de Mauá, cujo nome desapareceu para ser batizada com o de Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará. Assim transformada ela parte do Pôrto de Mauá, galga o vale e Serra da Estrêla, vai a Petrópolis e prolonga-se até S. José do Rio Prêto. Foram concessionários os srs. Calógeras e Berrini, mas dela já havia falado o prestante cidadão visconde de Mauá no dia 1 de dezembro de 1852, dizendo que uma estrada de ferro, que se dirigisse pelo vale do Rio Piabanha ao do Paraíba era o projeto mais racional de quantos se agitavam no império sôbre êste importante assunto, em referência aos produtos do país no que toca às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Pois bem, esta estrada está feita, é hoje realidade o projeto do visconde de Mauá, êsse notável brasileiro que tem seu nome ligado aos mais importantes melhoramentos dêste país.

A estrada partindo do pôrto e estação de Mauá, situada a 4 metros sôbre o nível do mar desenvolve-se por planícies paludosas, cortadas pelos Rios, Caioaba e Inhomirim e passando pela segunda estação denominada de Inhomirim vai ter à da Raiz da Serra da Estrêla no quilômetro 16.100 e na altitude de 44 metros sôbre o mar, não excedendo de 1,25% a mais áspera das suas rampas.

Nada há que amenize a travessia de Mauá à Raiz da Serra senão o estabelecimento da Fábrica da Pólvora situada à esquerda e pouco antes da Raiz.

(…) O vale e a serra da Estrêla serão para sempre lembrados na história da viação férrea do Brasil. O vale foi o primeiro território nacional cortado por trilhos, a serra foi a primeira onde se empregou o trilho central da cremalheira. Tanto no vale como na serra a Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará, construída pelo engenheiro Joaquim Lisboa auxiliado até certo tempo pelo engenheiro Marcelino Ramos da Silva, tem a bitola de 1 metro. Foram seus estatutos aprovados por decreto nº 8.120 de 31 de maio de 1881, começando a construção da linha em agôsto do mesmo ano, e sendo entregue ao tráfego a 20 de fevereiro de 1883. O sistema de viação é o trilho central de cremalheira do sistema aperfeiçoado pelo engenheiro Nicolau Riggenbach. A linha principia elevando-se da Raiz sôbre a encosta direita do vale do Caioaba donde, pouco acima do 2º quilômetro, começa a descortinar-se a Baía de Guanabara. Entre o 4º e o 5º quilômetros corre a linha na margem esquerda do Caioaba, contornando daí em diante contrafortes até galgar o Alto da Serra. Além de paredões e numerosos boeiros e pontilhões de arco conta a linha obras de arte importantes, como sejam três pontes e dois viadutos a saber: 1ª a ponte do Batista com um vão de 8 metros e 9 de altura máxima em curva de 180 metros de raio e superestrutura metálica; 2ª a ponte de pedra sôbre o Rio Caioaba com quatro vãos de totalidade de 20 metros, curva de 150 metros de raio e altura máxima de 12 metros; 3ª a ponte da Caioaba Mirim com dois arcos cada um de 4 metros, vão central de 8 metros, vigas de ferro, curva de 150 metros de raio e altura máxima de 10 metros; 4ª o viaduto da Grota Funda com o vão total de 58 metros, altura de 24 metros, encontros de pedra, superestrutura de ferro sôbre base de cantaria e em curva de 150 metros de raio; 5ª o viaduto do Bonini com o vão total de 33 metros, dividido em seis partes iguais por cinco pilares formados por colunas de ferro fundido e 8 metros de altura, estando o viaduto em curva de 150 metros de raio e à meia encosta, cuja base é reforçada por um paredão de 54 metros de comprimento e 6 de largura. Estas obras estão em declive de 15% salvo a primeira, cujo declive é de 8%. É dêsse viaduto que o viajante pode admirar a beleza da Baía de Guanabara, a obra prima do Criador nesta espécie, na frase do dr. André Rebouças.

Fazem o serviço da cremalheira 5 locomotivas de roda dentada, pesando cada uma em serviço 16 toneladas e sendo de 22 t. o pêso normal do trem. A velocidade dos trens de passageiros é de 11 a 12 km por hora e de 8 a dos de carga. Cada locomotiva tem um freio de ar comprimido por injeção de água fria, do qual se usa na descida, além de dois manuais, que atuam na transmissão da roda dentada motora para obter parada instantânea. O material de transporte consta de 10 carros de 1ª classe com 360 lugares, 4 de 2ª com 90, 4 vagões para animais e bagagens, 25 vagões cobertos e 20 abertos. Além de um freio ordinário cada veículo está aparelhado com outro freio de roda dentada, capaz de fazer parar por si só todo o trem. A sólida construção da cremalheira e da via permanente e a energia e simplicidade dos freios, reunidos à fraca velocidade horizontal, dão a esta linha, primeira do seu gênero na América do Sul, tôdas as desejáveis condições de segurança. Entretanto, o sistema Riggenbach é o que maior velocidade assegura na subida de serras, para galgar em 30 minutos, como permite aquêle sistema, a Serra da Estrêla, uma locomotiva ordinária deveria andar à razão de 81 quilômetros por hora o que seria impraticável.

No Pôrto de Mauá e na Raiz da Serra existem armazéns, telheiros e plataformas para movimento da passageiros e cargas. A ponte que no pôrto daquela denominação possui a companhia foi reconstruída por maneira que recebe sob coberta cargas e passageiros. No Alto da Serra estão as oficinas aparelhadas para todos os consertos e reparações.

A começar do Alto da Serra o leito da linha é do sistema comum com 2.782 km de extensão até à estação de Petrópolis, máximo declive de 2% e curvas de raio mínimo de 90 m. Existem neste trecho duas pontes de 10 e 14 metros de vão sôbre o rio Palatinado, ambas de superestrutura metálica, sendo feita a tração por máquinas comuns de Baldwin de 4 rodas conjugadas que substituem no Alto as de Riggenbach.

A estação de Petrópolis, situada a 826m sôbre o nível do mar, é elegante e satisfazendo as necessidades do serviço, à cargo do dr. Berrini, apenas se ressente às vêzes de falta de espaço quando cresce a afluência de passageiros no verão.

No saguão vê-se a estátua (busto) do benemérito visconde de Mauá, ao qual fizera a diretoria da Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará solene manifestação por ocasião de subir êle pela primeira vez a Serra da Estrêla em uma estrada do sistema de cremalheira, de cujo emprêgo na viação férrea do Brasil fôra o sr. visconde o primeiro a cogitar.

No dia 30 de abril de 1884 presentes na estação o juiz de direito da comarca de Petrópolis e outras autoridades, diretoria da Companhia e muitos cidadãos, por ocasião de se inaugurar na estação o busto daquele grande brasileiro, nesse dia, que era o do 30º aniversário da inauguração da primeira via férrea do Brasil, foram proferidas pelo dr. João Martins da Silva Coutinho, presidente da diretoria, as seguintes palavras:

“Meus senhores – completam-se hoje trinta anos que inaugurou-se a estrada de ferro de Mauá, a primeira construída no solo brasileiro. O povo saudou com entusiasmo êste faustoso acontecimento como o início de grandes prosperidades. O cidadão ilustre que teve a fortuna de levantar a emprêsa e primeiro dotar o país com êste poderoso instrumento de progresso é, pois, eterno credor de nossas homenagens e agradecimentos. Êle aqui se acha, o benemérito visconde de Mauá.

“Contrariedades de todo o gênero opuseram forte barreira à realização do projeto que sempre teve em vista, de levar os trilhos ao interior da província, beneficiando a lavoura e comércio desta importantíssima zona. Para vencer a Serra da Estrêla dispendeu o visconde de Mauá avultados capitais em diversas tentativas e ainda foi o primeiro que mandou estudar na serra a aplicação do sistema de cremalheira, hoje realizado, logo que teve notícia do bom resultado que produziu na Suíça.

“A diretoria da Companhia Príncipe do Grão-Pará julga-se feliz pela oportunidade que se lhe oferece de inaugurar nesta estação o busto do iniciador da estrada, que administra, em sua presença e no aniversário do dia em que viu coroados tantos esforços e concluída a primeira parte da obra que empreendeu com a maior energia e boa vontade. Dando assim o mais solene testemunho do aprêço em que tem os importantes serviços do visconde de Mauá, a diretoria não só manifesta seus próprios sentimentos como também o dos acionistas da companhia que representa. Viva o visconde de Mauá”.

A essa saudação corresponderam entusiasticamente as pessoas presentes.

O visconde de Mauá respondeu nos seguintes têrmos:

“Vítima de um grande e não merecido infortúnio que veio abater-me no último quartel da vida, estava longe da minha mente ao deixar, durante curto prazo, a nova esfera de trabalho que me foi proporcionada por amigos dedicados que, mercê de Deus me não faltaram na adversidade, o se aqui objeto da honrosa manifestação com que acaba de distinguir-me a ilustrada diretoria da Companhia Príncipe do Grão-Pará, ao completarem-se trinta anos que foi iniciado em nossa pátria o grande melhoramento, de que já gozavam algumas nações cultas, representado na viação férrea, de que fui humilde instrumento em época em que as mais robustas inteligências de nosso país o impugnavam. Infelizmente sacrificando eu em vez de frutificar parte importante do capital que já possuía, o que não enfraqueceu a minha fé no triunfo da idéia que felizmente mereceu, para outras emprêsas, favores e proteção dos poderes do Estado, depois que se reconheceu que o futuro do Brasil dependia da aceitação do pensamento, que aliás, para mim, se no comêço me foi prejudicial, mais tarde, com a realização da estrada de ferro de Santos a Judiaí veio criar-me tremendas dificuldades financeiras que treze anos de esforços não interrompidos de 1862 a 1875 não puderam dominar.

“Agradeço do fundo da minha alma à ilustrada diretoria da Companhia Príncipe do Grão-Pará a distinção com que me honra e peço licença como brasileiro para oferecer-lhe nesta ocasião minhas felicitações e agradecimentos pela realização do trânsito através as escarpadas montanhas da Serra da Estrêla pelo sistema das cremalheiras, de moderna invenção, que constitui, a meu ver, um grande triunfo na engenharia, aplicado à viação férrea, sempre que tenham de elevar-se aos picos de montanhas, aparentemente inacessíveis a tais obras, caminhos de ferro que garantam trânsito rápido e econômico ao produto do trabalho ou à produção, que determina a criação da riqueza em grande escala, meio seguro de elevar o nosso país aos altos destinos para que a natureza o fadou.

“Na aplicação prática do invento que se executa com brilhante êxito na serra de Petrópolis a ilustrada diretoria, a quem me dirijo bem merece do país. Eu me orgulho de ter por continuadores da obra, que encetei, tão esforçados cavalheiros e faço votos para que o poder público, que tem o dever de proteger os esforços individuais que entendam com o progresso do país, lhes não regateie as concessões razoáveis e de que necessitem para conseguirem que a emprêsa preste novos e maiores serviços à zona produtiva que pode aproveitar-se com mais vantagem da via de comunicação que as condições naturais lhe asseguram, garantindo melhor a renda a que tem direito o capital empregado e a empregar”.