A PROPÓSITO DE UM PREGÃO

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

Folclore é antes de mais nada, pervivência. É como erva daninha que insiste em permanecer viva, apesar de todos os pesares. O povo, como classe de conduta, é quem o sustenta e cultiva, anônima, coletiva e espontaneamente.

O folclore, ao contrário do que muitos pensam, é um ser vivo e dinâmico, adaptável às circunstâncias e às mutações temporais. Universal, na sua essência, toma formas regionais, segundo a formação cultural de cada sociedade onde ocorre. E ele sempre reflete as maneiras de sentir, de pensar e de agir desse povo, classe de conduta, nos meios ditos civilizados.

O pregão, como manifestação folclórica da chamada cultura espiritual, tem foros de universalidade e é conhecido desde os tempos mais remotos. É como o povo se expressa para mercar os seus produtos avulsamente, nas feiras e até em estabelecimentos comerciais. É seguro meio de comunicação verbal, entre aquele que oferece e eventualmente pede, chama, pergunta, reclama e, o ouvinte, a titulo ou oneroso ou gratuito.

Tal o pregão no seu sentido genérico, independente de hora e de lugar, vivíssimo no seu conteúdo e no seu apelo, mesmo a despeito dos mais modernos métodos de comunicação. A Internet não matou e jamais matará o pregoeiro, legítima pervivência nas sociedades ainda que mais civilizadas.

Mas especificamente, o pregão depende das circunstâncias e, desaparecendo certas condicionantes, ele não terá como sustentar-se, apagando-se da memória coletiva, ou morrendo com a voz de quem lhe deu o sopro da vida. Sobreviverá, talvez, dependendo do caso, em outras manifestações da cultura espiritual, mais comumente no adagiário ou nas locuções populares, mas já sem a funcionalidade original.

Quem, no início do século XX viveu nos arredores do Porto, Portugal, certamente ouviu o pregão da peixaria anunciando:

É do Espinho vivo!

Ela mercava os frutos do mar, provenientes da praia do Espinho e queria dizer que estavam recém tirados do mar.

Numa época em que não havia geladeira nem freezer, em que os alimentos tinham que ser consumidos ainda frescos, o anúncio da pregoeira era deveras animador e valia atestado de qualidade. Ignoro se essa tradição, tal como foi recolhida por minha avó há oitenta e seis anos, pervive nos arredores do Porto e se o próprio Espinho ainda é capaz de fornecer peixes, camarões e outros seres marinhos, de modo a suprir o gosto exigente dos portugueses do norte.

Em São Luis, capital do Maranhão, velho vendedor de frutas gritava pelas ruas:

Laranja de Anajatuba,
Quem não comer nasce coruba!

Ora, se Anajatuba deixou de produzir laranjas, famosas na capital maranhense há cinco ou seis décadas, adeus pregão, o que não quer dizer que outros parecidos, semelhantes, ou usando mote diverso da laranja, não se façam ouvir, pelos becos, ladeiras, escadarias e largos de São Luis.

Em Salvador tornaram-se famosos os vassoureiros, carregados de espanadores, escovões, vassouras e similares, gritando pelas ruas:

Vassoura de pi!,

sendo pi, a forma abreviada de piaçava, fibra de que a Bahia é grande produtora. Mas, depois que as similares sintéticas invadiram o mercado, a piaçava está seriamente ameaçada e com ela o pregoeiro do pi. Mas sempre haverá algum lugar no interior baiano em que essa tradição se mantenha viva, pois a piaçava no seio do povo mais arraigado aos velhos costumes, segue imbatível.

Gabriel Kopke Froes, em 1964, numa longa conferência pronunciada no Instituto Histórica de Petrópolis, sob o título “Lendas Petropolitanas”, começou a sua exposição contando o caso que teria dado origem ao pregão “Jornal, nal, nal, nal”.

Narrava ele que um pobre casal, no começo da vida, fora habitar modesta casa no meio da mata, na subida da Serra, à margem da antiga linha da Leopoldina Railway.

Marido e mulher trabalhavam numa fábrica, quem sabe a Cometa, e, ganhavam ambos o pão dando duro de sol a sol, para que nada lhes faltasse.

Eis que num belo dia, o varão recebe a notícia da morte de um tio que lhe havia deixado pequena fortuna.

Desconfiada e cheia de pressentimentos, Marieta pedira a Jorge, (assim se chamavam os heróis da estória) que renunciasse ao legado, pois que, o que eles ganhavam juntos, dava para tocar a vida. Afinal o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus, nada, costuma dizer o povo.

Mas o discurso não foi capaz de demover o rapaz de correr no rumo do dinheiro que lhe havia caído nas mãos, sem qualquer esforço.

E Jorge, deixando a consorte em casa, partiu para o Rio de Janeiro na busca da polpuda verba testamentária.

Em vão, Marieta esperou pela volta do marido, não recebendo dele qualquer notícia.

Começou então a temer pelo pior e com a idéia fixa no companheiro, começou a enlouquecer.

Certa manhã ouviu uma gargalhada estranha e debochada no quintal e, ao abrir a porta para ver quem era, não encontrou vivalma.

Daí em diante desnorteou por completo. Porém, apesar das crises de desvario, teve a idéia de procurar nos jornais alguma notícia do paradeiro do marido. E passou a correr todas as manhãs para a beira da linha do trem, gritando para os passageiros do comboio matinal, que lhe atirassem os jornais eventualmente já lidos, para que ela pudesse esquadrinhar as suas páginas na busca de alguma pista de Jorge.

E já completamente louca fez desse triste ritual uma obrigação quotidiana. À chegada do trem começava a bradar:

“Jornal, nal, nal, nal!”

Froes arrematou então sua narrativa, dizendo à platéia, que ali estava a origem do pregão, que durante anos os meninos pobres do meio da serra, usavam para pedir jornal aos passageiros, constituindo o material arrecadado a possibilidade de faturamento junto aos comerciantes da região, que careciam do papel dos diários para fazer embrulhos e usar em outros misteres.

E de fato, enquanto a Leopoldina manteve em funcionamento os seus trens no eixo Rio / Petrópolis, era invariável a gritaria nas imediações da estação do chamado Meio da Serra:

“Jornal, nal, nal, nal!”

A imaginação popular não tem limites, mas o pregão do jornal, como fato folclórico, esbarrou no desaparecimento de alguns fatores que possibilitaram a sua existência. Desapareceu o trem, não há mais estação, nem leitores de bordo. A notícia televisiva chega antes da impressa e, de certa forma, a custo zero. E o jornal foi substituído pelo saco plástico, no caso dos embrulhos.

O pregão em epígrafe, como diria a folcloróloga paulista Maria do Rosário de Souza Tavares de Lima, passou à história.

Aliás são muito eloqüentes aqueles versos do fado que canta as glórias e graças de Lisboa:

Os populares pregões matinais,
Que já não voltam mais.

Não voltam aqueles de antanho, o que não quer dizer que outros não os venham substituir …

No caso vertente, o gênero é eterno; a espécie é finita.