A REPÚBLICA É FILHA DE REVANCHISTAS

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

Embora tenha sido péssimo aluno de física, hoje, com a maturidade, vejo que aquelas leis, que me pareciam bicho de sete cabeças, são de uma clareza absoluta e facilmente assimiláveis. São mesmo intuitivas.

Uma delas, diz que a cada ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário.

Aplicada à vida em geral, essa lei nos ensina que o ressentimento provocado em alguém desencadeia uma reação igual e em sentido contrário, qual seja o revanchismo.

Daí redunda a certeza de que o ressentido é revanchista.

A História, que não pode deixar de ser uma fonte permanente de consulta, para que possamos entender o que se passa em torno de nós no momento presente, traz no seu bojo inumeráveis exemplos da verdade axiomática acima enunciada.

O ressentimento de Brutus em relação a Cesar, provocou-lhe o revanchismo contra este. Foram os revanchistas que fizeram a Revolução Francesa, a revolução Russa, as guerras de independência na América, que forçaram a abdicação de Pedro I e que acabaram com o Segundo Reinado.

O ressentimento medra nos desvãos sombrios e sinistros da injustiça, da preterição, do amor próprio ferido, do interesse contrariado, do ciúme, da inveja, da rejeição, da perda, do abandono, do desprezo, da frustração, de tudo quanto fica mal resolvido. Pode ser pessoal ou coletivo, mais ou menos intenso e durável, mas inelutavelmente provocará a reação revanchista, ainda que inconsciente e maquinal.

Os entendidos na vida e na obra do Marechal Deodoro, insinuam uns, afirmam outros, que o Generalíssimo odiava Silveira Martins por causa de u’a mulher que ambos um dia disputaram. E, que um dos motivos que mais encorajaram o Marechal para o golpe de misericórdia na monarquia, foi a possibilidade cogitada pelo governo imperial, de formar um novo gabinete sob a chefia de Gaspar Silveira Martins.

E o decreto nº 78 de 21 de dezembro de 1889, cheio de subterfúgios, sofismas e vagas acusações, além de banir o Visconde de Ouro Preto e seu filho, desterrou o prócer gaúcho, que seria forçado a viver num dos paises da Europa.

“O Marechal Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação, considerando:

que a manutenção da ordem e da paz interna da República, é o principal dever do Governo Provisório, e, constitui um interesse social superior a todas as conveniências, quer de ordem política, quer de ordem pessoal;

que por atos positivos e manifestações públicas deprimentes do caráter nacional e infensas à ordem da política estabelecida pelo pronunciamento da opinião nacional, alguns cidadãos procuram fomentar, dentro e fora do Brasil, o descrédito da Pátria, por agitações que podem trazer a perturbação da paz pública, lançando o país às contingências perigosas de uma guerra civil;

que por mais constrangedor que seja a necessidade de recorrer a medidas rigorosas das quais resultam limitações ao princípio da liberdade individual, não se pode contudo subordinar o interesse superior da Pátria, aos interesses individuais dos inimigos dela;

Decreta:

Artigo 1º – Ficam banidos do território nacional os cidadãos Afonso Celso de Assis Figueiredo, intitulado Visconde de Ouro Preto e Carlos Afonso de Assis Figueiredo.

Artigo 2º – Fica desterrado do território nacional, com a obrigação de residir em qualquer dos paises do continente europeu, o cidadão Gaspar Silveira Martins”.

Sem maiores comentários, convenhamos que havia muita paranóia e casuísmo, alem de alta dose de revanchismo em tudo isso.

O alagoano Marechal, que deve ter perdido a mulher para o gaúcho galante, sobre não admitir que este vivesse no Brasil, exigiu pelo decreto acima, que Silveira Martins habitasse qualquer dos paises europeus. Em síntese: o continente americano ficava-lhe inteiramente vedado.

Demais, já no campo genérico, é de se observar, que o Governo Provisório da República, no caput dos decretos, afirmava ter sido constituído, não pelo povo brasileiro, que ficou absolutamente de fora da transição da monarquia ao novo regime, mas pelo Exército e pela Armada e, em nome de uma nação, que tecnicamente não havia, segundo os critérios mais tarde fixados por Oliveira Viana, eminente discípulo de Alberto Torres.

Por isso mesmo sofismava o Governo Provisório, ao afirmar no caso do decreto 78, que a nova ordem política havia sido “estabelecida pelo pronunciamento da opinião nacional”.

Quem teria perguntado ao brasileiro comum e corrente se ele preferia a monarquia ou a republica como forma de governo ?

O Governo Provisório agira e agia segundo as normas ditadas pelos integrantes do Exército e da Armada, o que não deixa dúvida que o regime republicano nasceu de um golpe militar.

E nascendo de um golpe militar, pela mão daqueles mesmos militares vítimas de uma famosa questão havida no declinar da monarquia e de outras frustrações explicitadas em diversos pronunciamentos conforme se verá, é a República brasileira, sem qualquer sombra de dúvida, filha de revanchistas.

Naquela célebre mensagem que o Governo Provisório enviou a D. Pedro II a 16 de novembro de 1889, percebe-se perfeitamente o ressentimento militar, pai da reação que pôs fim ao antigo regime. Vejamo-la naquilo que é pertinente ao tema em exame:

“Senhor – Os sentimentos democráticos da nação, há muito tempo preparados, mas disputados agora pela mais nobre reação do caráter nacional, contra o sistema de violação, de corrupção, de subversão de todas as leis, exercido em um grau incomparável pelo ministério 7 de junho; a política sistemática de atentados do governo imperial, nestes últimos tempos, contra o exército e a armada, política odiosa à nação e profundamente repelida por ela; o esbulho dos direitos dessas duas classes, que, em todas as épocas, têm sido, entre nós, a defesa da ordem, da constituição, da liberdade e da honra da pátria; a intenção manifestada nos atos dos nossos ministros e confessada na sua imprensa, de dissolvê-las e aniquilá-las, substituindo-as por elementos de compressão oficial, que foram sempre, entre nós, objeto de horror para a democracia liberal, determinaram os acontecimentos de ontem, cujas circunstâncias conheceis e cujo caráter decisivo certamente podeis avaliar”. ( grifo meu )

Note-se que o maior volume de razões elabora em favor da ala militar.

O decreto 78 A, covarde e solerte, editado aos 21 de dezembro de 1889, que baniu o velho monarca e toda a sua família do território nacional, revela nas suas consideranda toda a torpeza do revanchismo dos fabricantes da República. Vamos a elas:

“O Marechal Deodoro da Fonseca, etc., etc, considerando:

que o senhor D. Pedro de Alcântara depois de aceitar e agradecer aqui o subsídio de 5.000.000$000 de ajuda de custo do seu estabelecimento na Europa, ao receber das mãos do General que lh’o apresentou o decreto onde se consigna essa medida, muda agora de deliberação, declarando recusar semelhante liberalidade;

que repelindo esse ato do governo republicano, o snr. D.Pedro de Alcântara pretende ao mesmo tempo, continuar a perceber a dotação anual, sua e de sua família, em virtude do direito que presume subsistir-lhe por força de lei;

que essa distinção envolve a negação evidente da legitimidade do movimento nacional e encerra reivindicações incompatíveis hoje com a vontade do país, expressa em todas as suas antigas províncias, hoje Estados e, com os interesses do povo brasileiro, agora indissoluvelmente ligados à estabilidade do regime republicano;

que a cessação do direito da antiga família imperial à lista civil, é conseqüência imediata da revolução nacional que a depôs, abolindo a monarquia;

que o procedimento do Governo Provisório, mantendo a despeito disso, essas vantagens ao príncipe decaído, era simplesmente uma providência de benignidade republicana destinada a atestar os intuitos pacíficos e conciliadores do novo regime, ao mesmo tempo que uma homenagem retrospectiva à dignidade que o ex-Imperador ocupara como chefe de Estado;

que a atitude presentemente assumida pelo snr. D. Pedro de Alcântara neste assunto, pressupondo a sobrevivência de direitos extintos pela revolução, contém o pensamento de desautorá-la e anima veleidades inconciliáveis com a situação republicana;

que conseguintemente cessaram as razões de ordem política em que se inspirara o Governo Provisório, proporcionando ao snr. D. Pedro de Alcântara o subsídio de 5.000.000$0000 e respeitando temporariamente a sua dotação,

Decreta:

Art. 1º – É banido do território nacional o snr. D. Pedro de Alcântara e com ele, sua família;

Art. 2º – Fica-lhe vedado possuir imóveis no Brasil, devendo liquidar no prazo de dois anos os bens dessa espécie que aqui possuem;

Art. 3º – É revogado o decreto nº 2 de 16 de novembro de 1889, que concedeu ao snr. D. Pedro de Alcântara 5.000.000$000 de ajuda de custo para o seu estabelecimento no estrangeiro;

Art. 4º – Consideram-se extintas, a contar de 15 deste mês, as dotações do snr. D. Pedro de Alcântara e sua família;

Art. 5º – Revogam-se as disposições em contrário”.

Observe-se que as considerações articuladas pelo Governo Provisório para estribar tão mesquinho e inoportuno decreto, sobre estarem eivadas de ressentimentos mal disfarçados, não estabeleciam uma relação de causa e efeito com os termos daqueles quatro artigos fatais.

Além disso, as consideranda embutiam elementos meramente subjetivos, doentias suposições reveladoras de uma verdadeira paranóia nacional.

E, sobretudo, toda essa churumela representava um ato covarde, desfechado pelas costas de uma família que não opôs qualquer resistência ao golpe de 15 de novembro e que saiu do país mansa e pacificamente sem oferecer riscos à sobrevivência do novo regime.

Convenhamos que a penitência estava em desproporção com os eventuais pecadilhos praticados por D. Pedro II e sua família.

Em síntese, torpe revanchismo dos que em tudo viam o fantasma da monarquia ameaçando a tão promissora República, que em breve haveria de mostrar a sua face hedionda.

Mas não cessam aí as evidências do revanchismo militar na proclamação e na consolidação do regime republicano entre nós.

A 17 de janeiro de 1890, veio a furo a polêmica e controvertida “lei bancária”, de autoria do Ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, avalizada pelo Generalíssimo Deodoro.

O assunto caiu como uma bomba nos meios políticos e financeiros da Capital Federal e alguns jornais, como o incendiário “A Cidade do Rio”, de José do Patrocínio, caíram de pau em cima do governo, deflagrando séria crise no seio do Governo Provisório.

Foi então que Deodoro, homem de pavio curto e sem o menor jogo de cintura, fez a seguinte declaração, na reunião do gabinete de 30 de janeiro de 1890:

“Sobre a atitude desse periódico ( “A Cidade do Rio” ) resolvera consultar o tribunal militar, afim de que esse visse se o excesso das suas apreciações com relação aos atos do governo, davam lugar a que aquele mesmo tribunal sobre ele exercesse a sua ação. Lamenta essas ocorrências desagradáveis no seio do conselho e afirma que, a continuarem elas, abandonará o poder, levando consigo a certeza de que, como militar vingara a 15 de novembro as afrontas atiradas à sua classe e, como patriota, expurgara o Brasil daqueles que lhe impediram a marcha moralizadora e o progresso real”. ( grifo meu ) – ( Atas e Atos do Governo Provisório – Dunshee de Abranches – pág. 80 ).

Bem dizia minha avó, que o que torto nasce, tarde ou nunca se endireita.

Partindo dessa origem rasteira e mesquinha, a República só poderia dar os péssimos frutos que deu ao longo desses cento e onze anos.

Estamos mesmo vendidos e mal pagos!