D. ARCHÂNGELA E D. PEDRO I

Antônio Machado, Fundador, Patrono da Cadeira n.º 05

(…) D. Archângela, não tendo podido conservar a situação agrícola da fazenda no estado de prosperidade anterior, manteve entretanto as tradições de fidalguia instituídas por seu irmão. Era a esse tempo senhora de mais de sessenta anos; dispondo de muita energia de vontade, tornara-se notável a benignidade com que tratava os escravos. Impôs-se à gratidão da família reinante. A veneranda fazendeira se extremara sempre em cuidados com a pequena princesa enferma. O imperador Pedro I consagrava-lhe sincera estima. As duas imperatrizes tratavam-na com muita intimidade. O pequeno Pedro II brincou no Corrêa com os netos de D. Archângela.

(…) Encontra-se, nas “reminiscências de família” que o dr. Horácio Moreira Guimarães passou para o papel e conserva inéditas, o relato de um episódio que revela o forte caráter de D. Archângela. É pena esse livro não tenha sido publicado; suas páginas dispõem de um estilo tão primoroso que se lêem com impressões de verdadeiro encantamento.

Certa vez o imperador pedira a D. Archângela permissão para trazer sua amante a marquesa de Santos a fim de passar uma temporada no Corrêa. A deliberação do monarca chocou em alto grau seus rígidos princípios de moral; e sua resposta, dada com desassombro, valeu por uma formal recusa.

Foi durante a sua viuvez de três anos que se tornaram mais freqüentes as visitas do imperador, enquanto esperava outra esposa, que só lhe convinha nova e formosa, e quando já iam arrefecendo seus entusiasmos pela marquesa de Santos. Estávamos então na época em que o ardoroso Bragança amofinava-se deveras com a viuvez prolongada.

O marquês de Barbacena, encarregado de arranjar-lhe noiva, fraquejava na difícil tarefa, tão eriçada de embaraços em razão dos deploráveis precedentes matrimoniais do pretendente. Circularam até boatos, nas cortes européias, do próximo casamento do imperador com a célebre marquesa… Por isso mesmo, o imperial amante compreendera já a conveniência de afastá-la da Corte; e não lhe repugnaria a possibilidade de um definitivo afastamento.

E, sem dúvida, o primeiro passo seria aquele, fazê-la passar uma temporada no exterior, a pretexto de tomar ares, e a excelente casa de Corrêas, onde fôra sempre bem acolhido, estava positivamente a calhar…

Andava ele a ensaiar-se para a conversa, até que, acercando-se, atencioso, da velha fazendeira, ter-lhe-ia feito sentir o desejo de hospedar ali, por alguns meses, pessoa que muito lhe merecia, ilustre dama de nobreza que viria acompanhada de seus filhos pequenos. D. Archângela desconfiou parecendo-lhe suspeita a tal senhora. E respondeu: – “Bem sabeis que esta casa vos pertence e estará sempre aberta às pessoas da amizade de vossa Majestade. Apenas permitir-me-ei de indagar a quem iremos ter a honra de hospedar.”
– “Trata-se da sra. Marquesa de Santos”, informa o imperador.

A boa velhinha merecera a amizade franca da infortunada imperatriz, conhecera-a intimamente, não ignorando as amarguras e vexames de sua vida conjugal. Ela não se cansava de pedir à excelsa Virgem do Amor Divino a paz, que não tivera na terra, para a nobre soberana do Brasil, dotada de tão sublimes virtudes.

Perdurava ainda viva a profunda veneração que sempre lhe tributara. Relembrou nesse instante o muito que a marquesa fizera sofrer à sua grande amiga; e não teve um vislumbre de transigência. Ela não poderia, de ânimo tranqüilo, suportar a presença da desabusada paulista e dos filhos de sua mancebia com o imperador. E depois de um silêncio demorado, muito penoso para a altivez do soberano, respondeu com firmeza: – “A casa que abrigou D. Maria Leopoldina, suavizando-lhe momentos de aflição, não deveria servir de hospedagem à sra. Marquesa de Santos; mas vossa Majestade aqui manda e a sra. Marquesa será servida com as honras devidas à sua hierarquia.” E ajuntou, serena e digna, a cabeça levantada, encarando bem de frente o herói da independência: – “Mas Vossa Majestade far-me-á a graça de conceder que eu me retire antes que a senhora marquesa aqui ponha os pés.”

– “Oh! Senhora, neste caso ela não virá.”

E a Domitila não veio…

Diante de tanta altivez e superioridade de caráter, D. Pedro reconheceu a leviandade em que incorrera, e continuou demonstrando à intemerata velhinha o maior respeito e amizade.

Episódio tão sugestivo já inspirou ao muito apreciado historiógrafo Viriato Corrêa a formosa crônica a que deu curso com o título de “As duas nobrezas”. As duas nobrezas! A convencional, baseada na circunstância meramente dinástica, sem virtudes próprias, sem comedimento, que não se sujeitava a deveres de educação porque cingia uma coroa recamada de pedrarias. E a verdadeiramente digna, que tinha apenas o diadema de uns cabelos brancos!

Pedro I nomeou D. Archângela Dama de Honra da segunda imperatriz e pretendeu conceder-lhe um título nobiliárquico, que a respeitável senhora pediu licença para não aceitar. Essa despreocupação de honrarias tem sido aliás característica da família, dotada de sentimentos democráticos; exemplo frisante ofereceu o dr. José Agostinho Moreira Guimarães, neto de D. Archângela, um ano mais velho que D. Pedro II, seu companheiro de brincos infantis, e a quem o soberano, por decreto de 26 de julho de 1881, conferiu o título de barão de Guimarães, que ele só registrou a fim de não ser desagradável ao amigo, mas do qual quase nunca fazia uso.