LEITURA COMPLEMENTAR: ESCRAVATURA

Thalita de Oliveira Casadei, associada correspondente, falecida –

(Extraído da Memória sobre a Fundação e Costeio de uma fazenda na Província do Rio de Janeiro, pelo Barão do Paty do Alferes e anotada pelo Dr. Luiz Peixoto de Lacerda Werneck).

É este o cancro roedor do Império do Brasil, e que só o tempo poderá curar. A abundância de braços cativos, e o imenso terreno por cultivar, esquivam o trabalhador assalariado do cultivo de nossos campos.

Vê-se por experiência própria que um colono, a quem vamos a bordo de um barco pagar a passagem, mal se sujeita a indenizar seu amo, retirando-se ou evadindo-se, muitas vezes sem ter cumprido seu contrato; mas por quê? Por achar ele quem muitas vezes gratuitamente lhe oferte um pedaço de terra para trabalhar por sua conta, ou o inquiete com esperança de maior ganho, mediante menos afanoso trabalho.

Nestes Termos, vê-se a necessidade de continuar-se com esse cancro, cujo preço atual não está em harmonia com a renda que dele se pode tirar; ainda de mais acresce a imensa mortalidade a que estão sujeitos os escravos, a qual, devorando fortunas colossais, traz a infalível ruína de honrados e laboriosos lavradores que, tendo-se empenhando em constituir tanta fortuna se vêem carregados de dívidas, e não chegando seus bens para satisfazer a quem, vendeu-lhes os escravos, muitas vezes sabendo que vão carregados de enfermidades incuráveis. Faz pena ver o atraso da maior parte dos nossos agricultores carregados de um fardo que pesa mais que suas forças, sendo pouco o que fazem para os credores, e por fim aí vai tudo à praça, não chegando mesmo para desempenhar seus compromissos! E por quê? Porque lhes morreram os escravos e eles se vêem de braços cruzados lamentando a sua sorte. Outra vez digo, não está em harmonia o preço do escravo com o produto que dele se tira.

À vista deste triste quadro, infelizmente verdadeiro, não compreis escravos fiados, marcai-os quando tiverdes o dinheiro; porque, se vos morrem, estão pagos, e a perda é menos sensível.

O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa se a houver na fazenda, saber a doutrina cristã, confessar-se anualmente: isto é um freio que os sujeita muito, principalmente se o confessor sabe cumprir o seu dever, e os exorta para terem moralidade, bons costumes, amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa.

No domingo de manhã, deve o escravo vestir roupa lavada, e a suja deve, na segunda-feira, ir para a barrela, e enxaguar-se na terça. Quando por motivo de chuva molharem-se, devem os escravos mudar logo de fato, e estender mesmo na sua senzala o que se molhou, para o tornarem a vestir no dia seguinte, quando saírem para o serviço, pondo de reserva a outra muda.

O fazendeiro deve, o mais próximo que for possível da sede da fazenda, reservar uma porção de terra onde os escravos façam as suas roças, plantação de café, milho, feijão, bananas, batatas, carás, aipim, canas, etc. não se deve, porém, consentir que a sua colheita seja vendida a outrem, e sim a seu senhor, que deve fielmente pagar-lhes por um preço razoável, isto para evitar extravios e freqüências das tavernas.

Este dinheiro serve para os escravos haverem o tabaco e o fumo, de que são grandes consumidores, comprarem a comida de regalo, roupa fina, a de sua mulher se são casados, e de seus filhos. Deve-se, porém, proibir-lhes severamente a embriaguez, castigando-os, e punindo-os depois de exortados.

Estas suas roças, e o produto que delas tiram, fazem-lhes adquirir certo amor ao País, distrair um pouco da escravidão, e entreter-se com esse seu pequeno direito de propriedade. Sem dúvida o fazendeiro enche-se de certa satisfação quando vê chegar o seu escravo da sua roça trazendo o seu cacho de bananas ou cará, a cana, etc.

O extremo aperreamento desseca-lhes o coração, endurece-os e inclina-os para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano.

Nas moléstias devem ser tratados com todo o cuidado e humanidade. Embora haja médico assistente o senhor do escravo deve fazer a sua visita à enfermaria para animar os doentes e dar-lhes alívio acautelando alguma falta que porventura possa haver.

Nem me diga que o escravo é sempre inimigo do senhor; isto só se sucede com os dois extremos, ou demasiada severidade ou frouxidão excessiva, porque esta torna-os irascíveis ao mais pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela leva-os à desesperação.

Há também alguns senhores que têm o péssimo costume de não castigar a tempo, e de estar ameaçando o escravo dizendo-lhe – deixa que hás de pagar tudo junto; ou vai enchendo o saco, que ele há de transbordar, e então nos veremos e quando lhes parece agarram-no e desapiedadamente o maltratam; e por que? Porque pagou tudo junto!!! Barbaridade!

O escravo deve ser castigado quando comete o crime: o castigo deve ser proporcional ao delito. Fazei, pois, justiça reta e imparcial ao vosso escravo, que ele, apesar da sua brutalidade não deixará de reconhecer isso.

Não mandeis à roça, por espaço de um ano, a preta que estiver criando, ocupai-a no serviço de casa, como em lavar roupa, escolher café, e outros objetos. Quando ela tiver seu filho criado, irá então, deixando o pequeno entregue a uma outra que deve ser a ama-seca de todas as mais crias para lavá-las, mudar-lhes a roupa, e dar-lhes comida, que deve ser apropriada à sua idade e forças.

O escravo trabalhador da roça deve comer três vezes ao dia; almoçar às 8 horas, jantar a uma hora e cear das oito até nove. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra-acima, em geral, não se lhe dá carne; comem os escravos feijão temperado com sal e gordura e angu de milho, o que é alimento muito substancial. A farinha de mandioca é fraca e de pouca nutrição. Quando por necessidade me vejo obrigado a dar-lhes seguidamente dela com feijão, começam a sentir-se fracos e tristonhos, vêm requerer o angu; por isso o mais que faço é entremear uma comida com duas de angu.

Não mandeis o vosso escravo adoentado parar o trabalho; se tiverem feridas, deve-se curá-las completamente para então ir ao serviço. Tenho visto em algumas fazendas, felizmente em poucas, escravos no trabalho com grandes úlceras, e mesmo assim lá andam a manquejar em risco de ficarem aleijados ou sucumbirem. Este proceder além de desumano, é prejudicial aos interesses do dono.

Alguns agricultores adotaram, há tempos a esta parte, o costume de dar só duas comidas aos escravos, dando-lhes às 10 ou 11 horas do dia o almoço, e o jantar às 5 da tarde. Tais lavradores não têm em vista os seus interesses; seus escravos devem fazer muito menos serviço, além de ir-se-lhes arruinando o estômago. Como é que um homem ou mulher (que ainda é mais fraca) pode agüentar desde as 5 horas da tarde até às 10 ou 11 do dia seguinte sem comer, e trabalhando desde o amanhecer ao rigor do tempo com uma enxada, foice ou machado? Vai comer já inanido de forças, enche demasiadamente o estômago que se acha fraquíssimo, cai em prostração, à digestão dificulta-se, e, em breve espaço está ele doente. Eu aconselharia antes que essas duas comidas, embora menores fossem divididas por três: almoço, jantar e ceia, e às horas acima prescritas. As funções digestivas se estabeleceriam com regularidade, embora mais fraco pela falta de alimento necessário.”

Nota: Transcrição do capítulo do mesmo nome, págs 35 a 40, extraída do livro da autora: “Os escravos no tema fluminense”. Parceria Editorial, 2000.

D. PEDRO I CONTRA O TRÁFICO E A ESCRAVIDÃO

(Do mesmo livro, págs 93 e 94)

Pouco divulgada é a posição do nosso primeiro Imperador a respeito do tráfico de escravos e da abolição do cativeiro.

Na Fala do Trono pronunciada na abertura da Assembléia Geral, em 3 de maio de 1830, D. Pedro, referindo-se ao problema do negro, assim se expressou:

“O tráfico da escravatura cessou e o governo está decidido a empregar todas as medidas que a boa fé e a humanidade reclamam para evitar sua continuação debaixo de qualquer forma, ou pretexto que seja: portanto julgo de indispensável necessidade indicar que é conveniente facilitar a entrada de braços úteis. Leis que autorizem a distribuição de terras incultas e se afiancem a execução dos ajustes feitos com os colonos seriam de manifesta utilidade e de grande vantagem para a nossa indústria em geral” (1).

Estaria já no pensamento de D. Pedro I, ao comprar por 20.000$000 a Fazenda do Córrego Seco, local que mais tarde obrigaria a colônia de alemães que vieram povoar a futura Petrópolis e portanto uma Colônia com “braços úteis” (1)

(1) Fala do Trono, INL, 1997.

Na sua fala do Trono o Imperador foi precipitado em pensar que o tráfico havia cessado logo após a Convenção de 23 de novembro de 1826, assinada com a Inglaterra e que proibia o tráfico de escravos na Costa da África. Entretanto ali ficou o seu pensamento para o conhecimento da posteridade.

Em relação à escravidão sabemos de sua vontade em vê-la abolida, e em documento do Arquivo do Museu Imperial o professor Hélio Vianna (2) deu a conhecer um trecho de D. Pedro: “Eu sei que o meu sangue é da mesma cor que o dos negros”.

(2) Carta de D. Pedro I ao Marquês de Barbacena, datada de 3 de fevereiro de 1830 – Arquivo do Marquês de Barbacena, Arquivo Nacional

Em documento datado de 25 de março de 1830 / 4, um cidadão reclama um escravo fujão e ladrão, e que fora “acoitar na Imperial Quinta da Boa Vista, do que logo fui informado e do quanto me caluniou na Imperial Presença o que não é de admirar. À vista do que requisitei o meu escravo e tive a resposta que O Mesmo Imperial Senhor ordenava que se não entregasse”.

Adiante, continuava o senhor do escravo dizendo a falta que lhe fazia e pedia a uma autoridade da época que devolvesse “a sua propriedade” mesmo sabendo que não se consentiam escravos alheios nas Imperiais Quintas.