Com o advento da República, o Brasil acercou-se enormemente das nações hispano-americanas, tendo havido mesmo uma espécie de febre americanista entre nós.

Mais do que da Europa, recebemos de nossos vizinhos representantes diplomáticos com enorme bagagem cultural e intensa produção intelectual.

Poder-se-ia mesmo dizer, que muitos desses homens, acabavam eventualmente servindo a seus países no exterior, menos pela capacidade de fazer diplomacia, que pelos seus méritos de escritores ou cientistas, maxime no campo das ciências humanas.

O argentino Martin Garcia Merou, pode ser considerado um exemplo bem ilustrativo.

Nomeado em março de 1894, para servir no Brasil como Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário de seu governo, apresentou credenciais no Rio de Janeiro, em 19 de julho de 1894, já depois de extinta a Revolta da Armada e quase no apagar das luzes do turbulento e sanguinário governo do Marechal Floriano Peixoto.

Radicou-se Garcia Merou em Petrópolis, como era comum naquela época e, por quase dois anos conviveu entre nós, ilustrando com sua presença o corpo diplomático aqui sediado.

Nos seus momentos de lazer, ao invés de viver a vida um tanto frívola e mundana das rodas da diplomacia, preferiu dedicar-se ao estudo da literatura brasileira, para depois divulgar na imprensa de seu país o resultado de suas investigações, levando ao conhecimento de seus patrícios, figuras de primeira linha completamente ignoradas na área platense e de resto em toda a América de fala espanhola. Na verdade, também nós aqui vivíamos a ignorar os autores hispano-americanas, como se estivéssemos em pólos completamente distintos.

Os artigos de Martin Garcia Merou foram publicados em Buenos Ayres, em 1897, numa revista chamada La Biblioteca. Depois, foram reunidos em livro, no ano de 1900, sob o título “El Brasil Intelectual”. É aí que vamos encontrar, entre outros, o longo estudo que fez da personalidade e da obra de Rui Barbosa.

O diplomata argentino conheceu Rui Barbosa, quando este voltava do exílio na Inglaterra durante a ditadura de Floriano.

Pela mão de Tobias Monteiro, foi levado à bela chácara da rua São Clemente, numa tarde de primavera de 1895. E aí teve uma longa entrevista com o intelectual baiano.

Confirmando as judiciosas observações de Humberto de Campos exaradas no seu livro de Crítica, lª série, Garcia Merou, viu em Rui Barbosa, muito mais o literato, o homem de frases candentes, de períodos lapidares, de orações escorreitas, de discursos sonoros e ornamentados, que o ativista político, o estadista, o artífice de uma nova ordem social e política.

Deteve-se no exame de uma conferência abolicionista dada num dos teatros da Côrte nos anos 80 do século XIX. E faz esses comentários:

“Aquela oração em seu gênero é uma peça magistral, pela elegância de sua linguagem, a profundidade de seus conceitos, o tom sucessivamente irônico e majestoso de suas palavras, a delicadeza de suas insinuações, os golpes de estilo de sua sátira implacável, os arranques soberbos de sua patriótica inteligência”.

Percebe-se nesta análise, que estão muito mais a nu os dotes de estilo, as roupagens, as filigranas, a forma enfim, que propriamente o conteúdo do discurso.

Mais adiante diz o preclaro escritor argentino:

“. . . o discurso de Rui Barbosa ficará como um modelo da grande oratória, a mais elevada e a mais dominadora, a que fazia vibrar o ágora ateniense ante os apostrofes de Demóstenes e estremecer o forum romano com os estalidos impetuosos das Catilinárias de Cícero”. Exacerbação da forma sobre o conteúdo.

É incontestável que Martin Garcia Merou prestou um enorme serviço à cultura brasileira, quer pela erudição com que tratou os vários temas, quer pelo retrato fiel que traçou de seus contemplados, divulgando-os em sua pátria e de resto em toda a América de fala espanhola, na possibilidade de sua obra.

Rui Barbosa foi um dos grandes beneficiários da crítica de Merou, que, sempre encantado com seu talento de expositor e de escritor, sublinhou, que o estilo barboseano era preciso e amplo, ao mesmo tempo, com sonoridades de bronze e com algo de sacro, sedoso e metálico, simples e grandiloqüente “em que se mesclam, sem confundir-se, a perfeição da linha de Renan e a intensidade corrosiva de Fronde”.

O elegante e sobranceiro diplomata e escritor argentino, foi na verdade muito hábil e conveniente na abordagem do tema Rui Barbosa.

Foi ele incontestavelmente muito generoso e mesmo panegirista ao enfocar a figura e mais que tudo a obra da futura Águia de Haia.

Não quis, quiçá por pruridos inerentes à sua carreira ou pelo destaque internacional de seu enfocado, descer a certas críticas, que de resto poderiam implicar numa tomada de posição pouco lisonjeira em relação a determinadas políticas brasileiras, muita vez ditadas pelas circunstâncias.

Contaminado pelo talento e os recursos verbais de Rui, Garcia Merou, ao analisar, por exemplo, o que aquele escreveu sobre o Estado de Sítio, nos tormentosos tempos de Floriano, deixou de destacar a falta de auto crítica do eminente baiano, que num mesmo período de suas razões declara enfático:

Que nada representa perigo maior para um povo que a ausência ou degenerescência do sentimento jurídico, pois os povos são governados ou pela força ou pelo direito. “Mas o que somos é uma nação de retóricos”. ( grifo meu ) “Nossos governos vivem envolvendo em um tecido de palavras seus abusos . . . A arbitrariedade palavrosa é o regime brasileiro”.

Ora, havia no passado u’a marchinha carnavalesca que dizia:

“Macaco olha o teu rabo/ Senão vai haver o diabo ! “.

Rui Barbosa não teve esse cuidado. Quiçá esqueceu-se que era o rei dos retóricos, o campeão do discurso palavroso ? E a arbitrariedade que cometeu, completamente injurídica, ato de força incontestável, ao mandar queimar os arquivos da escravidão, prevalecendo-se de sua condição de Ministro do Governo Provisório da nascente República ?

Tão pouco Garcia Merou ousou fazer esses reparos, ante as verberações barboseanas por causa das arbitrariedades durante o estado de sítio decretado pelo turbulento governo de Floriano.

Realmente pimenta nos olhos dos outros é refresco.

E vale lembrar, que trinta anos depois, pouco antes de morrer, Rui Barbosa descia de Petrópolis, para dar seu voto favorável ao estado de sítio no aurorecer do nefasto quatriênio Artur Bernardes.

Numa outra altura, Martin Garcia Merou, examinando o volume “Finanças e Política da República”, lançado por Rui Barbosa, em 1892, esquiva-se explicitamente a ferir o mérito, dizendo que se se detivesse no aprofundamento analítico dos temas alí tratados, estaria fugindo do escopo de suas notas literárias. Mas não deixou de consignar, que conforme o parecer de inúmeros especialistas nacionais e o de Max Leclerc, nas suas “Lettres du Brésil”, a gestão de Rui Barbosa à frente do Ministério da Fazenda do governo provisório da República, havia sido prejudicial aos interesses do país.

Na verdade, nesse particular, Rui foi muito mais teórico do que prático. Era profundo conhecer de Economia Política, mas desconhecia o Brasil, suas peculiaridades regionais e talvez mesmo o momento que o Estado brasileiro atravessava logo após a emancipação dos escravos e ainda nas placentas do novo regime.

E sempre mais preocupado com o cinzel do artista do que com o cerne de sua produção, Merou ainda elaborando sobre os arroubos de Rui Barbosa na defesa de suas posições como Ministro das Finanças, afirma:

“De qualquer forma, o modelo daqueles discursos deve ter desorientado os chamados homens de negócios, acostumados a tratar e a ouvir tratar os assuntos financeiros de uma forma pedestre, vulgar, ante o poder e as galas daquele estilo deslumbrador, daquelas frases polidas e adamascadas, como jóias cinzeladas por um artista incomparável”.

Ora, essas linhas trazem de novo à tona os conceitos oportunos de Humberto de Campos, aplicados ao trato da prostituição, quando Rui Barbosa, na abordagem do tema, não tinha necessidade de usar vinte sinônimos e de não repetir uma só vez o mesmo epíteto.

Que interessava aos homens de negócios, além do sucesso destes, galas de estilo deslumbrador e frases adamascadas ?

Tudo isso ficaria muito bem num concurso de oratória ou numa disputa literária.

No quarto capítulo desse seu estudo sobre Rui Barbosa, Martin Garcia Merou, examinou o volume das “Cartas de Inglaterra”, sobre o qual disse que não conhecia na literatura do continente americano, livro mais bem escrito e mais bem pensado, no qual avultam o gênio e a flexibilidade do talento do autor.

No mesmo capítulo, e já tratando de assunto eminentemente literário, onde Merou pode examinar equilibradamente tanto a forma como o conteúdo, versou este sobre o ensaio de Rui Barbosa a respeito de Swift, valendo a investida barboseana como reabilitação do renomado escritor, tão “deformado e violentado” pelas críticas de Taine e de Saint – Victor, na França e de Thackeray, na Inglaterra.

Enfatiza Merou:

“No estudo da personalidade de Deão Swift, traçado pelo publicista brasileiro, está o resumo de longas leituras e o que há de substancial nas obras de Roscoe, de Foster e de todos quanto têm analisando a produção copiosa de uma das individualidade mais interessantes da literatura inglesa”.

Já vai longe este terceiro e último artigo que escrevo na oportunidade das comemorações do sesquicentenário do nascimento do polêmico mas sempre extraordinário Rui Barbosa.

Ainda estribado nos judiciosos conceitos de Humberto de Campos, ouso afirmar, que se Rui Barbosa tivesse podido viver exclusivamente da literatura, não pretenderia fazer mais nada na vida. A arte literária era a sua paixão maior, por isso ela tinha que estar presente em qualquer uma de suas atividades profissionais.

E há também nessa vocação e nessa volúpia da beleza da forma, da arte pela arte, algo de bastante quixotesco na personalidade de Rui.

Um dos maiores artífices e estetas da língua luso – brasileira, falava e escrevia para um povo ágrafo e ignorante, em sua maioria.

Por isso, com rara felicidade definiu-o Oswald de Andrade, como uma cartola na Senegâmbia.