NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

No momento em que os chamados revisionistas da História pretendem subverter a ordem das coisas e acanalhar personagens consagradas pelo julgamento sereno de muitas gerações privilegiadas pela perspectiva temporal, para ao mesmo tempo exaltar badamecos oriundos de uma estrumeira qualquer, vale uma reflexão sobre o transcurso neste ano de 1998, do bicentenário do nascimento de D. Pedro I.

Não importa o que pensem os tais revisionistas, quase sempre motivados por ideologias pífias e superadas, de que se valem para a satisfação de seus próprios complexos e frustrações.

Petrópolis, mais do que qualquer outra cidade brasileira, tem todas as razões para não deixar passar em branco a efeméride, que infelizmente não empolga os portugueses e, ao que tudo indica, também não tem chamado a atenção, no grau em que se esperava, da nossa gente.

D. Pedro, quando ainda Príncipe Regente, encantou-se com estas terras, desde que cruzou em março de 1822, na memorável excursão que empreendeu à Vila Rica, para ali fazer serenar os ânimos, exaltados pela efervescência política daquele delicado momento.

Temperamental, desabrido, brusco, incoerente, como todo epiléptico, D. Pedro decidiu a viagem de uma hora para outra. Saiu de S. Cristóvão com um mínimo necessário de serviçais e assessores. Simples, sem se preocupar com as agruras do percurso de cerca de 90 léguas, sem cogitar de conforto nos pousos e de recepções pomposas, partiu o futuro Imperador de um golpe e, no mesmo dia em que deixara o Rio de Janeiro, chegou à Fazenda do Padre Corrêa, onde pernoitou.

Era a fazenda do Padre Antonio Tomaz de Aquino Corrêa o grande chamariz da chamada Serra Acima, na época em que se deram tais sucessos. Louvada por todos os viajores estrangeiros que por ali passaram no início do século passado, apresentava boas condições de conforto, na simplicidade da casa rural brasileira, ostentando bela produção de frutas e de mantimentos, que faziam o regalo de viajores e tropeiros. D. Pedro não poderia ter escolhido melhor sítio para a sua primeira noite nessa significativa jornada pela Estrada Real de Minas em demanda da Vila Rica do Ouro Preto, com digressão por São João e São José del Rei.

E, talvez, naquele primeiro encontro com as terras banhadas pelo Piabanha, na fruição da amenidade do clima e da salubridade reinante no meio em que se encontrava, tenha nascido no espírito do futuro Imperador a idéia de criar nestes chãos uma alternativa para a Corte, exposta no Rio de Janeiro aos rigores dos tórridos verões que traziam naturalmente insidiosas moléstias.

A idéia não seria original, desde que posta em prática em várias nações européias. Se mais não fosse, estas alturas poderiam significar na altura uma bela estação de caça.

É claro que a Fazenda Real de Santa Cruz seria uma opção para o jovem Príncipe e sua pequena corte carioca, nos eventuais momentos de recreio no campo. Mas mudar de São Cristóvão para Santa Cruz, seria trocar seis por meia dúzia, já que, conforme o dito caipira, em pelo outro não merecia volta.

Anos depois, já Imperador, D. Pedro voltaria a estes desvãos serranos, para mais uma vez desfrutar da quietude do casarão dos Corrêa. Já não vivia o Padre e na modelar propriedade reinava sua irmã, D. Arcangela, na qualidade de sua sucessora.

D. Pedro I viera em busca de clima para mitigar o sofrimento de uma das princesas. E consta dos anais, que teria pretendido adquirir para si aquela gleba que de longa data o havia empolgado. Amor à primeira vista, sedimentado na recidiva.

Frustado pela não concretização do negócio, mas sempre de olho nestes chãos serranos, acabou por satisfazer-se com uma espécie de prêmio de consolação, ao comprar em 1830 as terras frias e sáfaras do Córrego Seco, tapera insignificante segundo o depoimento de inúmeros viajores das primeiras décadas do século XIX, propriedade rural em completo contraste com a do Padre Corrêa.

O imperador na sua simplicidade e no seu raciocínio sem eufemismos, deve ter pensado no momento da escritura: Não tem tu, vai tu mesmo.

E quem sabe, não foi aí que o tu estropiadamente entrou no linguajar petropolitano? Belo tema para forgicações futuras.

Por coincidência, o proprietário do Córrego Seco, José Vieira Afonso, fizera parte, quando ainda tenente, de uma das guardas que acompanharam D. João, pai do Imperador, quando de sua visita à calçada de pedra da Serra da Estrela em julho de 1809.

D. Pedro I não teve tempo de realizar os seus sonhos serranos. Não chegou, a bem dizer, a tomar posse daquilo que havia adquirido. Em 1831, deixou definitivamente o Brasil, para defender o trono da filha em Portugal.

Entretanto, deixou plantada nestas alturas a semente da futura Petrópolis, com digressão da Corte, semente que o segundo Imperador faria germinar, com outras conotações em outras circunstâncias, quando teve a secundá-lo o aulicismo produtivo de Paulo Barbosa da Silva e a energia, a inteligência espacial e o talento empreendedor de Julio Frederico Koeler.

De Pedro a Pedro, esta urbe realmente não poderia ter outro nome. E fechando essa trindade pétrea, entronizou-se aqui o padroeiro São Pedro de Alcântara, comemorado a cada 19 de outubro.

Nestes dias em que trêfegos rabiscadores de historinhas e criadores de falsos ídolos, tentam trafegar na contramão da História, o Brasil não pode negar a sua homenagem sincera àquele que mal ou bem criou o Estado brasileiro, Estado garanhônico, segundo Gilberto Felisberto Vasconcellos, dado o desempenho sexual do monarca, responsável por tão numerosa prole.

O Brasil é portanto um país viril, nascido pela mão de um Príncipe impetuoso e destabocado, macho como as armas, atropelado infelizmente pelas paixões políticas do recém-criado Império. A doença, a intolerância, o autoritarismo, a inobservância dos preceitos de Maquiavel e das lições de Talleyrand, conspiraram contra D. Pedro I, fazendo-o deixar o país precipitadamente e num momento de profunda crise, que não nos fez naufragar, como nenhuma outra posterior, e não foram poucas, haveria de nos impor tal desdita. E tudo isso pela nossa virilidade P.O., pela nossa pertinácia, pelo nosso talento criativo e improvisador.

Vila Rica, Barbacena, São Paulo, têm inúmeras razões para não regatearem as alvíssaras a que faz jus o nosso primeiro Imperador neste ano de 1998. Petrópolis, mais do que todas elas, pois que a Pedro I deve inelutavelmente o seu berço.