COM A FACA E O QUEIJO NAS MÃOS …
Ruth Boucault Judice, Associada Titular, Cadeira n.º 33 – Patrono Padre Antônio Tomás de Aquino Correia
Todos nós temos uma história a contar sobre algo que herdamos de nossos pais, de nossos avós, de uma tia, enfim, de alguém. Seja um retrato, uma jóia, uma imagem, uma casa….bens maiores, bem menores….todos são preciosos para nós.
Lembro-me de alguém que herdou uma imagem de São Miguel Arcanjo, com cavalo e espada, completo, no seu colorido bizarro. Mas… o cavalo era branco e ele não gostava de cavalos brancos. Mandou pintá-lo de preto. Para ele, o chapéu do Santo era feio. – “Não gosto dizia, vou comprar-lhe um mais bonito”. Foi dito e logo feito. São Miguel ganhou um chapéu de palha – “mais bonito e mais moderno ” nas palavras do herdeiro.- “Por que essa espada tão grande, nos nossos dias, que ninguém mais usa espada, vou trocar por uma metralhadora portátil, mais moderna, impõe mais respeito”. E o pobre do Santo teve que carregar a pesada metralhadora, com o mesmo semblante, que se possível fosse, agora, seria de espanto !
Depois de algum tempo, nosso amigo guardava ainda com carinho a herança herdada. Mas, já não tinha um São Miguel. Tinha um arremedo do Santo, danificado aqui e ali, por causa das inúmeras intervenções. Nosso amigo não soube preservar seu patrimônio.
Imaginem se herdássemos uma cidade ! A cidade de Petrópolis, por exemplo. Nascida do sonho de um imperador (Pedro I) realizada pelo desejo de outro (Pedro II), planejada por Koeler que se mostrou tão sensível com sua beleza e a programou tão bem. Hoje a cidade tem seu centro histórico tombado, seus rios, suas matas sob proteção. Fica um pouco mais difícil descaracterizar, se houver o apoio da municipalidade para fazer cumprir a lei. Apesar disso, pouco vemos a municipalidade agir nesse sentido. Quanto já mudou a cidade que herdamos de nossos antepassados ! Nós mesmos já sentimos a diferença entre a Petrópolis de hoje e a de nossa infância. Quantos de nós conheceram e andaram de bonde em Petrópolis, bonde esse que nunca deveria ter saído de nossas ruas. Nada mais típico para uma cidade do século XIX. Quando teremos um prefeito com a mesma coragem do que acabou com eles, para trazê-los de volta, pelo menos no centro histórico ?
Foi preciso criar-se a lei do entorno para que a vizinhança do bem tombado também fosse protegida. Não adiantaria tombar-se o Museu Imperial, por exemplo e deixar construir a seu lado prédio altos, de oito ou dez andares, que iriam impedir que víssemos com clareza o próprio Museu. Essa lei nasceu na Inglaterra, depois da segunda Guerra Mundial, quando os ingleses, tentando reconstruir o que fora derrubado pela artilharia do inimigo, concluíram que era hora de deixar o bem importante, sozinho, isolado, para que fosse visto melhor, com mais clareza, dando-lhe assim, a importância que ele merece. Resolveram então, que não valia reconstruir qualquer edifício que, de leve, atrapalhasse a importância da arquitetura herdada. E por exemplo, Londres que sempre foi uma cidade preciosa, ficou mais bonita ainda com o destaque que conseguiu dar aos seus edifícios históricos. O entorno protege a vizinhança do bem tombado. Em Petrópolis, além de outros, foram considerados entorno os rios e as árvores da área tombada. Houve quem se assustasse com isso. Mas é preciso que saibamos, que em passado não muito remoto, pensou-se em capear rios centrais e cortar árvores. “porque elas sujam muito as ruas”. Os passarinhos que se cuidem, pois não há como tombá-los !
Já temos o entorno funcionando em Petrópolis. Estamos assim armados, do tombamento e do entorno para evitar que nossa cidade se descaracterize mais do que já foi descaracterizada. Com a faca e o queijo nas mãos, falta apenas que alguém, ou melhor que as autoridades, façam melhor uso dessas armas.
Vimos no jornal, que a nossa Catedral está doente.
O mesmo turismo que protege a herança arquitetônica por seu uso, é fator de perigo. Vimos acontecer com a Acrópole de Atenas, com o Coliseu de Roma e com outras maravilhas antigas. O excesso de circulação em volta desses edifícios, que não foram construídos com a previsão de serem visitados por uma multidão diária, chega abalar seus alicerces, gera desmoronamentos parciais e se não forem tomadas as devidas providências, poderão chegar à ruína total. Diversos países já agem conscientemente, evitando trânsito intenso nas cercanias, programando visitas, etc. Há que tomar providências aqui também.
Nossa Catedral, já centenária, pede socorro!
Os pináculos pousados nos contrafortes, que ajudam a lhe dar mais verticalidade, uma característica do estilo gótico; que ajudam no equilíbrio estético da construção correm o risco de se desequilibrarem … e talvez, ruir.
É um sinal. Outros perigos podem estar eminentes. Vamos verificar como estão suas abóbadas de aresta, suas colunas longelíneas, a torre central, sua flecha, tudo que concorre para que ela seja uma igreja impecável dentro do estilo neogótico e ao restaurá-la ter cuidado com todos o detalhes do estilo gótico, para que não aconteça com ela o mesmo que aconteceu com nosso São Miguel Arcanjo. As vezes a colocação de um chapéu inofensivo, pode tornar uma figura anacrônica.
Hoje, na cidade, já começamos a tomar conhecimento dos bens que possuímos. Já não se fala, como em passado recente, que nossa arquitetura é colonial. Já sabemos que estamos inseridos no século XIX. E o que foi o século XIX ? Foi um período calmo que possibilitou aos arquitetos o uso e criação de três arquiteturas paralelas: neoclassicismo, ecletismo e arquitetura do ferro. Todas elas usadas concomitantemente na Europa e no Brasil. No Brasil em várias cidades, incluindo Petrópolis. É por isso que, à primeira vista, é difícil saber qual o estilo predominante na nossa cidade. Os três estão presentes. O ferro, que aparece em quase todas as construções, dá uma liberdade maior aos arquitetos da época, que ao colocarem, por exemplo, uma coluna de ferro, com o fuste de seção tão pequena, livres dos parâmetros do classicismo, libertam-se de todas as suas exigências e misturam detalhes e diferentes arquiteturas. Está ai o segredo do toque híbrido de nossa arquitetura.
Só hoje, bem distante dos fatos, fica mais fácil julgar e avaliar e até classificar. Arquitetos e críticos da época viam o ferro apenas como elemento estrutural. Pouco a pouco ele vai entrando na construção, mas ainda havia a preocupação de esconder o material, que não era nobre . Resultado: grandes e belas estruturas metálicas usadas em estações de ferro, por exemplo eram “escondidas” por fachadas neoclássicas, barrocas, etc. Das grandes composições, o ferro pula para as residências. Enfeita varandas e sacadas, resolve o problema das escadas e cria o gradil externo tão característico de Petrópolis. Se procurarmos em praticamente todas as construções antigas de Petrópolis encontraremos o ferro, seja no gradil, na grade dos porões, nos telhados etc.
O que herdamos pois como arquitetura ? 1º) a arquitetura do ferro: 2º) o neoclássico que aparece em nossa arquitetura palaciana e 3º) o eclético através, principalmente do neogótico encontrado em muitas de suas igrejas! Tudo isso praticamente intacto, apenas esquecido, às vezes, mas de fácil recuperação. Um bom começo foi a recuperação do Palácio de Cristal. Continuemos nessa diretriz com a restauração de nossa Catedral.
Nosso São Miguel Arcanjo ainda tem salvação. Basta nos conscientizarmos disso e vigiarmos.
Isso se chama Preservação !