A ESPINHA DORSAL DA IMPRENSA PETROPOLITANA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

O nome é secundário. Na realidade, O Mercantil e a Gazeta de Petrópolis eram elos da mesma corrente e por cerca de 45 anos se constituíram na espinha dorsal da imprensa nestas serras. Senão vejamos:

No dia 25 de maio de 1892, circulou o último número de O Mercantil e na altura o periódico em tela estampava na primeira página:

“Quando atravessava o trigésimo sexto ano de existência, suspende O Mercantil a sua marcha, tendo passado a outros a propriedade deste estabelecimento.

Durante a sua vida procurou sempre esta folha corresponder ao auxílio que constantemente recebeu da família petropolitana, conservando-se em posição de merecer a estima pública, pugnado pelos interesses da pátria, esforçando-se para que o elemento popular mais e mais crente, se tomasse do seu valor.

Dificuldades erguidas, foram sempre dificuldades derribadas, a luta era a vida e a direção desta folha lutava.

Afinal, motivos de ordem superior determinaram o fato que se operou a 16 do corrente mês, dia em que o estabelecimento passou à nova direção que a si tomou o encargo de satisfazer compromissos de assinaturas e anúncios firmados em datas anteriores, não sendo desse modo em nada prejudicados os nossos valiosos auxiliares.

Na próxima quinta feira será publicado o primeiro número da Gazeta de Petrópolis, folha tri semanal dirigida pela firma que desde o dia 16 é proprietária do estabelecimento.

Agradecemos aos nossos amigos que sempre nos auxiliaram; desejamos à nova folha toda a sorte e prosperidade”.

Saia O Mercantil de cena e logo a 2 de junho de 1892 aparecia a Gazeta de Petrópolis com um editorial de apresentação nos seguintes termos:

“Encetamos a nossa marcha e o fazemos com passo firme, porque alenta-nos a esperança de podermos fielmente cumprir o nosso dever.

O programa que nós traçamos, – trabalhar para o bem de todos, a quem sabe respeitar os preceitos de fraternidade, nunca é de difícil desempenho.

Não visamos outro alvo a não ser o alvejado por aqueles que se consagram ao bem comum, embora sacrificando o interesse próprio.

Quando, único prejudicado, nos virmos entre milhares de remunerados, considerar-nos-emos feliz pela felicidade alheia.

A Gazeta de Petrópolis solicita um lugar ao lado da imprensa fluminense, que tem trabalhado pelo progresso da humanidade e da pátria, que tem heroicamente sustentado os direitos do povo e à sombra da bandeira da liberdade, pregando o respeito à lei e a observância do dever.

Esse lugar, lhe não será negado, nos o esperamos.

Não lhe será negado porque:

Sua missão é ocupar-se só e exclusivamente de assuntos que possam contribuir para a instrução do povo, para estreitar os laços da confraternidade, para robustecer a crença no futuro, para firmar os alicerces do edifício da República;

Não enfrenta adversários a quem tenha de oferecer batalha, vendo nos arredios, apenas retardatários que, de um segundo a outro, convencidos do seu erro, ao toque de reunir, estarão todos defendendo a boa causa da moralidade;

Não se curva à imposições, porque deve a vida a si própria, e encontra a sua força na independência que a sustenta;

Não se arreceia de hostilidade, porque as não provocando, evita-las-á e quando porventura sem motivos venham, seguirá o exemplo do jornalista brasileiro que, não confere a todos o direito de hostilizá-lo.

Em tais condições corresponderá a Gazeta de Petrópolis, às necessidades da quadra que atravessamos e esta cidade com bons olhos verá sempre nela um testemunho da sua prosperidade.

A redação desta folha promete não arredar-se da trilha que se traçou, e tomando a si o encargo de dirigi-la fá-lo desejosa de bem levá-lo a termo.

Assumimos a responsabilidade moral de todos os escritos insertos nas colunas editoriais e nas demais desta folha.

A responsabilidade legal dos escritos contidos quer em umas quer em outras colunas, pesará sobre os autores dos mesmos, que a não poderão delegar a terceiros, embora lhes seja isso facultado pela lei.

Os serviços do testa de ferro jamais serão por nos aproveitados.

Respeitando os direitos alheios, faremos jus a que respeitem os nossos; será direito nosso, aceitar ou não qualquer escrito.

A imprensa, não sendo um ramo de negócio, o balcão é para nós um traste inútil; a moeda que mais apreciamos é a estima pública.

Esforçar-nos-emos por merecê-la”.

Estava pois lançada a Gazeta, cheia de bons propósitos, em meio à grande turbulência política, à véspera da conflagração no Sul e da Revolta da Armada. Em breve, premida pelo radicalismo circunstancial, ela iria desdizer muitos de seus propósitos condoreiros, tornando-se órgão do republicanismo xenófobo e mesquinho, do florianismo patrocinador de atrocidades, trincheira jornalística que se tornara cega mercê da paixão política ao ponto de negar aos que rezavam outro credo, o direito de fazê-lo, num país que pretendia ser democrático, postulado básico dos que implantaram a República no Brasil.

Menos de um ano depois de ter vindo a furo, a Gazeta de Petrópolis, rememorando a data em que nascera O Mercantil, e por isso homenageando seu antecessor, fez publicar estas linhas bastante elucidativas, na edição de 5 de março de 1893, sob o título JUSTA HOMENAGEM:

“Há 36 anos que a 3 do corrente surgiu nesta cidade uma folha denominada O Mercantil. Verdadeiro sucesso nos anais da colônia petropolitana, foi esse periódico um verdadeiro início do real progresso na propagação das letras, na defesa dos interesses locais e na conquista da civilização. Outros secundaram-lhe os intuitos, mas desapareceram da arena jornalística e só ele – O Mercantil – sobrepujou as dificuldades que se lhe antolharam, seguindo sempre com admirável denodo o seu programa, do qual, justiça seja feita, jamais se desviou, deixando de parte pequenos incidentes que não o deslustraram nem tomaram vulto.

Apesar de seu título pouco simpático, ante a santa missão da imprensa – O Mercantil – não mercadejou, não se deixou levar pelas proporções da paga, mas tinha suas colunas francas às penas hábeis e distintas que se consagravam à causa pública.

Quem como nos não ignora como são pesados os encargos de uma empresa jornalística, certo há de ouvir que – O Mercantil – faz jus a essa homenagem que lhe rendemos, muito principalmente sendo a Gazeta de Petrópolis sucessora de seu honroso empreendimento e herdeira dos seus louros merecidos. (grifo nosso).

Realmente, foi no dia 3 de março de 1857 que raiou para Petrópolis uma nova aurora. Estava montada uma tipografia; apareceu – O Mercantil -; veio após o jornal, o livro; e dos prelos dessa modesta oficina saíram mais tarde opúsculos, folhetos, ensaios e obras literárias, que correm mundo a pertencerem à posteridade.

Glória pois aos fundadores da nossa imprensa! Honrando-os nos honramos; e neles acharemos incentivo para persistirmos em nossa tarefa, sem olhar sacrifícios nem poupar esforços.”

Não é portanto mera conjectura ou a irresponsável proclamação de uma hipótese ou de um achismo, tão ao gosto afoito do brasileiro.

Foi o próprio redator da Gazeta de Petrópolis, quem deixou claro, com todas as letras, que ela era sucessora de O Mercantil. Elos portanto da mesma corrente jornalística, conforme ficou dito em outra parte. Jornais marcadamente situacionistas, sendo que O Mercantil passou da monarquia à república, sem traumas, mudando o discurso sem espalhafato, sutilmente, como num passe de mágica.

Quando a Gazeta raiou no olho do furacão que varria a política brasileira, dardejou com todo o empenho o antigo regime, respaldando com furor os que pugnavam pela consolidação republicana e dando mesmo guarida aos excessos que se praticaram no sul, na baia da Guanabara e depois em Canudos.

Esse intransigente ardor pela República, fez da “Gazeta”, paladino do americanismo, forçando sempre a maior aproximação dos povos americanos, enquanto alfinetava as velhas monarquias européias, tidas como encorajadoras de uma eventual restauração.

O ser americanista, foi um dos grandes méritos da “Gazeta”, manifestado na questão da Ilha da Trindade, nos chamados Protocolos Italianos, nas guerras pela independência de Cuba, na divulgação da cultura e da história de nossos vizinhos de fala hispânica.

A 19 de julho de 1893, sob o título O LIVRO, voltava a Gazeta de Petrópolis a falar da imprensa nestas serras, a tecer novas loas ao Mercantil e a trazer dados interessantes sobre o movimento jornalístico de outros tempos.

“Temos em mão O Mercantil de 20 de junho de 1857.

Folha de mui pequeno formato, pigmeu com coração de atleta, O Mercantil daquele tempo profligava os erros e os abusos com um acento enérgico que bem exprimia a independência de caráter do nosso honrado e persistente antecessor, Bartolomeu Pereira Sudré, de venerável memória.

Lá se vão 36 anos e então, como hoje, a assinatura da folha era de 12$000 anuais ou 7$ semestrais; a folha avulsa, 120 reis.

Já naquela época Petrópolis aspirava a uma iluminação decente como se vê da seguinte mofina:

“Ex fumo dare…nada. Os logrados de Petrópolis, feridos da mais pungente dor, convidam os habitantes desta entrevada freguesia a assistirem à meia noite, o funeral do seu nunca assaz chorado filho, morto em embrião, o inocente gasômetro, vítima de frustrite aguda”.

Um anúncio inscrito no número aludido:

“… encarrega-se de aprontar caixão de enterro para falecidos dentro de uma hora”

Outro:

“Precisa-se de uma ama de leite alemã, para uma casa de tratamento, que não tenha vícios nem moléstia”.

Não se tome isto como censura arrogada ao digno fundador da imprensa petropolitana.

A tais pequenos senões ainda hoje estamos sujeitos, pela exigência e teimosia de alguns clientes das seções ineditoriais: não podem tolerar que se lhes corrija os autógrafos.

Apesar do desenvolvimento da nossa imprensa sob o influxo do progresso material e moral de Petrópolis, o snr. Sudré, para manter o seu estabelecimento tipográfico, não lutava com as dificuldades que hoje nos assoberbam: porque além de pagar a seus operários a quarta parte dos ordenados que se lhes paga hoje, a editagem dos livros contribuía para a solução dos compromissos financeiros da casa.

Uma verdade que ninguém contestará de certo:

O jornal no Brasil, nestes três últimos lustros tem travado uma pugna encarniçada contra o livro e dessa pugna tem triunfado.

O veículo de nosso pensamento hoje é o jornal; o livro desapareceu da arena, ou pelo menos está agonizando.

Temos perdido com isso?

Sob o ponto de vista intelectual, sim – em relação aos nossos créditos cívicos, não.

Desde que saiu ao lume da publicidade a Gazeta de Notícias, a dois vinténs, apeando de seu pedestal de ouro o Jornal do Comércio, entrou-se a notar que o povo começava a sair daquela profunda apatia que atrofiava a sua dignidade; interessava-se já em andar corrente com os fatos que até então passavam-lhe desapercebidos, como um drama que se apresenta diante de espectadores sonolentos.

À noite, o caixeiro deitado sobre o balcão, a vela acesa ao seu lado, lia; de volta da oficina, o operário, depois de frugal refeição, e no aconchego da família, lia; o embarcadiço com o bote preparado a espera do freguês, no Pharoux ou algures, lia. Enfim, todos liam e liam barato.

Eram os primeiros matizes do rosicler da gloriosa aurora democrática.

As massas ignaras sem arbítrio, que obedeciam a tal frase – Maria vai com as outras – iam finalmente adquirindo um cabedal de pequenos conhecimentos práticos e com eles a noção de seus direitos e deveres; a daí, como a crisálida a perfumar o casulo, irrompia a análise, o argumento, e a opinião popular.

Para a aceitação por parte do povo, a princípio tácita e depois franca, de todos aqueles fenômenos sociais que denunciavam a anquilose monárquica, e, prenunciavam as liberdades populares, sintetizadas nas datas de 13 de maio e 15 de novembro, muito concorreu a tribuna e o panfleto, porém ainda mais o jornal acessível a todas as bolsas.

Pagou-se um pesado tributo na perda do livro”.

Essas considerações, um tanto comprometidas com o sistema e bastante exageradas no concernente ao livro, absolutamente não espelhavam a realidade dos fatos. Mas as lembranças da atuação do Mercantil em terras petropolitanas foram muito válidas.

Pouco mais de um ano depois de ter aparecido no cenário jornalístico serrano, a Gazeta de Petrópolis, estourou na baia de Guanabara a Revolta da Armada. Como era natural, face as dificuldades trazidas pelo movimento ao porto do Rio de Janeiro, o papel sobre ter escasseado, subiu de preço, o que poderia causar colapso no periodismo carioca e fluminense.

A Gazeta, na seção “Expediente” de 4 de novembro de 1893, atenta ao problema, divulgou o seguinte:

“Quem conhece a vida de sacrifício da imprensa das nossas cidades do interior, não estranhará por certo o assunto deste artigo.

O encarecimento do preço do papel e a considerável elevação dos vencimentos do pessoal vieram ultimamente ainda mais agravar essa situação, determinando a suspensão de numerosas folhas, não só dos Estados, como da própria Capital Federal.

Nesta cidade, recorda-se o público, que o nosso ex colega Correio de Petrópolis, dispondo aliás de excelentes elementos para a vida jornalística, teve de cessar a sua publicação no fim de poucos meses de existência.

A nossa folha não constitui uma especulação mercantil como se sabe; para que possa continuar a desempenhar o papel de órgão de opinião publica, vantajosamente como parece, o tem feito até aqui, a vista do aumento de 300% de nossa tiragem em pouco mais de ano, torna-se indispensável que o publico continue a nos amparar com seu auxílio e boa vontade, favorecendo especialmente a nossa seção de obras, de onde tiramos os principais recursos para a luta da existência; e sentimos ser obrigados a pedir aos nossos assinantes e fregueses em atraso de pagamentos, o obséquio de virem satisfazer seus débitos, para que possamos continuar a cumprir a nossa missão”.

Mesmo a despeito de tantas dificuldades circunstanciais, a Gazeta de Petrópolis não sofreu solução de continuidade. Rompeu o cerco imposto pelos entraves oriundos das perturbações da ordem. Fez o rescaldo da revolta de 6 de setembro; comemorou a vinda da capital do Estado para estas serras; acompanhou atenta o desenrolar da Guerra de Canudos e do conflito hispano-norteamericano com fulcro na questão cubana; fez a cobertura da briga pelo poder em Campos dos Goitacazes, que influiu em muito no racha do Partido Republicano Fluminense; rompeu com Porciúncula para respaldar o fim do inglório governo de Alberto Torres e ingressou no século XX no epicentro de uma crise, que a levaria ao túmulo, antes que findasse o primeiro lustro da nova centúria.