D. JOÃO E OS PORTOS DO RECÔNCAVO FLUMINENSE
Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima
Laurenio Lago (Anuário do Museu Imperial, nº 7, 1946), num artigo intitulado “Excursões do Príncipe Regente D. João na Capitania do Rio de Janeiro (1809)”, informa que nos meses de junho e julho daquele ano, o futuro Rei D. João VI empreendeu duas pequenas viagens ao recôncavo fluminense, tocando em dois pontos fundamentais dele, por serem portas de entrada da chamada Serra Acima.
A primeira foi direcionada à povoação de Nossa Senhora do Desterro de Tambi, pertencente na altura à freguesia de Santo Antonio de Sá, sede do município do mesmo nome, depois deslocada para Santana do Japuíba e mais tarde para Cachoeiras de Macacu, cidade fluminense ao pé da serra de Friburgo.
Tambi, estava, segundo Laurenio Lago a 200 braças do rio Macacu (algo em torno de 500 metros), pelo qual se chegava aos portos do Sampaio e das Caixas, de onde se tomava a direção de Itaboraí, prolongando-se a viagem no rumo da vertente goitacá, ou da de Cantagalo, pela serra da Boa Vista, por caminho difícil e perigoso, de que deu conta John Mawe em seu minudente relato inserido nas “Viagens ao Interior do Brasil”.
Hospedou-se D. João em casa do agricultor e Capitão de Ordenanças João de Souza Lobo, que foi de uma fidalguia extrema. Retribuindo as gentilezas recebidas, o Regente, por decreto de 24 de junho do mesmo ano de 1809, promoveu o capitão ao posto de Coronel de Milícias, agregado ao regimento do distrito de Macacu. Era uma praxe, que foi muito típica do Brasil monárquico. Retribuição de boa acolhida, de fidelidade, de serviços prestados, com títulos, honrarias, promoções, comendas…
A segunda excursão realizou-se em julho de 1809 e teve como destino o Porto da Estrela, ponto de partida do Atalho do Caminho Novo para as Minas Gerais, em uso desde os anos vinte dos setecentos.
Hospedou-se o Príncipe Regente na fazenda da Cordoaria de propriedade do Capitão do Regimento de Milícias do distrito de Inhomirim, João Antonio da Silveira Albernaz, que também recebeu como retribuição pela sua fidalguia, a promoção ao posto de Coronel.
Aproveitando a estada na região da Estrela, D. João foi conhecer as obras da calçada de pedra no trecho da serra acima, que buscava o Córrego Seco. Os trabalhos haviam sido determinados em novembro de 1802 pelo Vice-Rei D. Fernando José de Portugal e estavam a cargo do Capitão Aureliano de Souza Oliveira, pai do futuro Visconde de Sepetiba, Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, que fora Presidente da Província do Rio de Janeiro e que tantas vinculações teve com a fundação de Petrópolis.
Vale frisar que a obra da calçada foi justamente concluída em 1809 e a partir daí recebeu os louvores dos viajantes estrangeiros que por ela passaram desde John Mawe a Saint-Hilaire, Pohl, Spix e Martius, Freyreiss e tantos outros.
É possível que o faro de progresso tenha levado o Príncipe Regente a esses dois pontos do recôncavo fluminense, os quais em futuro não muito longínquo haveriam de protagonizar e justificar grandes empreendimentos no setor da navegação a vapor, que tornariam mais curta, ágil e segura a viagem entre a Côrte e essas portas de entrada da província do Rio de Janeiro.
A lei provincial nº 219, de 27 de maio de 1840, autorizava o Presidente da Província a contratar com Joaquim José dos Santos Junior, ou com a companhia que ele organizasse, a navegação por vapor entre a cidade do Rio de Janeiro e o Porto da Estrela, mediante as seguintes condições:
1º – o privilégio exclusivo seria concedido por cem anos, podendo o contratante fazer o transporte de passageiros, de cargas e o reboque de quaisquer embarcações;
2º – o empresário poderia construir armazéns para depósito de gêneros e mercadorias a serem transportados, podendo ainda estabelecer cais próprios para o desembarque e embarque dos objetos a serem conduzidos;
3º – o Presidente da Província haveria de decretar a utilidade pública das obras a serem executadas, para que se fizessem as desapropriações dos terrenos necessários no Porto da Estrela, tudo conforme a lei de 14 de abril de 1835;
4º – o empresário ou a companhia que viesse a ser constituída, assumia a obrigação de fazer a limpeza do rio Inhomirim até o lugar do embarque no Porto da Estrela, mantendo a barra sempre desimpedida, independentemente do movimento das marés;
5º – o empresário também haveria de comprometer-se a fazer pelo menos uma viagem a cada 24 horas;
6º – o prazo para o início do serviço de navegação seria de três anos, contados da data da assinatura do contrato, sob pena do pagamento de um conto de reis de multa por semestre de demora além do prazo determinado;
7º – seria declarado extinto o privilégio se a companhia não estivesse organizada dentro dos três anos contados da assinatura da avença, ficando então o Presidente da Província livre para entabular novas negociações com quem melhores condições oferecesse.
A lei nº 220, de 29 de maio de 1840, autorizava o Presidente da Província a contratar com José Ferreira Lobo a navegação por vapor, entre a Côrte e o Porto do Sampaio, pelo rio Macacu, consoante as condições que seguem:
1º – o privilégio para o transporte de cargas, passageiro e para reboque de embarcações, seria pelo prazo de vinte anos;
2º – o privilégio seria prorrogado por mais dez anos se o empresário ou a companhia que ele viesse a organizar se encarregasse do melhoramento das condições de navegabilidade do rio até o Porto das Caixas;
3º – nos dois primeiros anos de serviço, a empresa tinha que fazer uma viagem a cada 48 horas e depois a cada 24;
4º – o privilégio seria extinto se em dois anos contados da data da assinatura do contrato a companhia não estivesse organizada.
Em poucos anos, o talento empresarial de Irineu Evangelista de Souza tomaria a si o encargo da navegação a vapor entre o Rio de Janeiro e o recôncavo, deslocando apenas a rota para um outro destino que não o Porto da Estrela, mas o de Mauá, onde haveriam de principiar os trilhos da primeira estrada de ferro brasileira, inaugurada a 30 de abril de 1854, que por razões de ordem técnica, somente chegariam à raiz da serra de Petrópolis.
Acoplava-se assim o moderno transporte marítimo ao ferroviário.
O mesmo acabou acontecendo na região do rio Macacu, quando a partir do Porto das Caixas e depois do de Vila Nova, implantou-se a Estrada de Ferro de Cantagalo no início dos anos sessenta dos oitocentos.
Essa ferrovia que em menos de vinte anos construiu invejável sistema de trilhos, vinculando a baixada à feracíssima província cafeeira cantagalense, deveu o seu sucesso a um outro grande empresário do Império – o Barão e depois Visconde de Nova Friburgo, Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, cujo nome merece tanto respeito quanto o de Mauá.