FELIZ ADENDUM À GEOGRAFIA PETROPOLITANA

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

Julio Ambrozio sem ser médico, tem um dos bisturis mais afiados de quantos já pintaram nestas serras nos últimos cinqüenta anos. Maneja-o com enorme destreza e vai fundo nos problemas, sem ligar a conveniência ou pruridos de quintal, alimentadores dos conchavos domésticos, tão nocivos ao verdadeiro conhecimento nos vários planos da elaboração humana.

A santa inquisição tão viva ainda entre nós, jamais contaminou a alma crítica e desfronteirizada de Julio Ambrozio, que mercê de uma boa dosagem de fluidos campistas, segue incólume a psico-sociologia petropolitana no contexto da geografia deste torrão fluminense.

Num romance que vai aos intestinos da cidade – No Sereno do Mundo – Ambrozio fala da cloaca O Piabanha, do mundinho desbotado de 16 de Março, das servidões morro acima, trazendo à luz do seu argumento central, temas que merecem debates e profunda investigação, o que nenhum instituto cultural desta urbe ousou ainda fazer, por relaxamento, por preconceito, por privilegiar muita vez assuntinhos em detrimento daquilo que condiciona o comportamento de um povo e que reflete as maneiras de ser, de pensar e de agir da gente que se insere no espaço físico-geográfico chamado Petrópolis.

Entre a Esfinge, escrito no princípio do século por Afranio Peixoto, romance em que a primeira parte se desenvolve nestas serras em plena belle époque e NO SERENO DO MUNDO, há um abismo, menos pelo enorme tempo que os separa e muito mais pela distância entre a frivolidade do adventício em vilegiaturas na Avenida Koeler, presente no primeiro e a dura realidade de uma servidão no Valparaiso, flagrante no segundo.

A “Geografia Petropolitana” é o próximo passo de Julio Ambrozio na sua escalada em busca do perfil de uma urbe insólita, único caso no Brasil em que tiveram que conviver entre vales estreitos e nos limites dos quarteirões, a Côrte Monárquica e republicana e a colônia, senzala branca no conceito de Peter Welper ou de olhos azuis, conforme Gilberto Felisberto Vasconcellos, o sociólogo do de repente.

E, na tangente do ruço e do suicídio de Stefan Zweig, Ambrozio exalta o mineiro na formação étnica de Petrópolis. É o ovo de Colombo. Ninguém havia pensado nisso antes. Nem Alcindo Sodré, nem Paulo Monte, nem Carlos Maul, nem Paula Buarque, nem Antonio Machado, nem os Fróes. A preocupação com a falsa nobreza ou a nobreza de aparência de uns e com o elemento tedesco de outros, deixou escapar o mineiro, pedra fundamental chantada nestas ribeiras piabanhenses, sobre a qual construiu-se a cultura do angu, mais forte e mais abrangente que a do chucrute e que a do fricassé cortesão.

O mineiro é presença obrigatória em todas as etapas da evolução petropolitana, do Atalho do Caminho Novo à BR 40. Seria o petropolitano um mineiro com a presunção de nobreza, que pensa que é alemão? Belo tema para o simpósio!

Não julgando esgotado o assunto que se propôs a tratar na “Geografia” , Julio Ambrozio, em folha avulsa dedicada a Edmundo Jorge, distribuída entre os mais chegados, dispôs-se a cuidar da “Decadência” desta urbe, estabelecendo o seu marco zero na gestão do prefeito Castrioto. Então perguntar-se-ia: – Em qual delas?

Sim, porque Flavio Castrioto de Figueiredo e Melo, é rebento típico do pós-Estado Novo, do pós-guerra, do pós-jogo fastígio da indústria têxtil, do pós-saneamento da baixada e da grande arrancada do êxodo rural, fulcrado no desestímulo às atividades campensinas e na pletora de chamarizes urbanos, com tônica nas benesses trabalhistas enfaixadas na C.L.T.

Castrioto baixou nestas montanhas em meados dos anos quarenta e após tanto tempo de ditadura, ele chega ao podium municipal eleito pelo voto direto dos mandatos e, muitos mais obtivera, se já naquela época houvesse reeleição no Brasil, e se a revolução de 64 não tivesse puxado seu tapete.

Paternalista por excelência, Castrioto foi o pai de tudo, inclusive das favelas de Petrópolis.

Enfim, a gestão castriotana de que fala Ambrozio, circula aí pelos anos cinqüenta, quando são plantadas as sementes da “devastação” , que daria seus frutos malignos já nas últimas duas décadas deste século.

Diz Julio Ambrozio:

“Quase seria desnecessário enumerar os imperceptíveis e distantes anos da decadência. Não ocorreram somente no núcleo urbano; eles aconteceram com a eliminação da estação ferroviária do Alto da Serra, na proscrição dos trilhos que poderiam diminuir engarrafamentos, levando pessoas e coisas do alto da escarpa até Itaipava, ou ainda mais adiante; na ocupação desordenada dos morros, gerando novos bairros; no desaparecimento da Independência – local ermo e bucólico que se abria no ruço e à cenografia pedregosa, verde e marítima; na poluição dos rios e riachos afluentes do Piabanha. Os anos vagarosos de aniquilamento vieram, assim, alterando aqui e acolá, estimulados pelo aumento populacional, por certa economia nacional favorável e, não se deve esquecer, pela opinião generalizada de crescimento que não media os limites do território, dispensando, ademais, a preservação dos vestígios do passado.”

No conceito de Julio Ambrozio essa decadência que segue vagarosa pelos anos cinqüenta afora, passando pelos subsequentes, ganha velocidade na década de oitenta e eu acrescentaria, enorme abrangência.

Ambrozio põe na sua alça de mira o projeto Koeler. Mas é preciso explicar que a corrupção do plano diretor da cidade vem de longa data, claro que antigamente em doses homeopáticas e agora, cavalares.

É dos anos cinqüenta do século passado o início dos insultos ao projeto koeleriano, segundo faz certo Jean Baptista Binot nas edições de O Parahyba de fins de 1858. Vinte anos depois, a construção da fábrica de São Pedro de Alcântara, inviabilizaria, a pista à margem esquerda do rio Quitandinha, em plena Renânia. Edificação em logradouro projetado, não é portanto privilégio dos nossos dias. E como a duplicação da estrada do Bingen levou cento e muito anos para se tornar realidade em toda sua extensão, não faltaram transgressores para construir casas com fundos para o rio, o que era terminantemente proibido e pelas diretrizes urbanísticas de Julio Koeler.

São apenas alguns exemplos a que muitos outros poderiam ser somados, se espaço houvesse para tanta exemplificação.

O que é certo é que a cidade não foi projetada para acolher a absurda população que contabiliza, o volume de tráfego que suporta, a imensa descarga de dejetos que polui os rios, para tolerar a invasão desordenada dos morros que guarnecem os vales estreitos, pondo em risco os mananciais, a flora, a fauna e a segurança dos que vivem legalmente nas várzeas.

Na visão ambroziana, a Petrópolis nivelada por cima deve tudo à República e ao patriciado, que aqui investia alto, até que Getúlio suicidou-se. Brasília surgiu e o industrialismo paulista cresceu. A decadência caiu de chofre sobre a cidade, e, o alóctone da Vila Imperial e adjacências, perdeu o hábito da vilegiatura estival, não suportando a distância do poder e a falta do ambiente social a seu gosto.

E Julio Ambrozio acaba concluindo de maneira contundente e paradoxal:

O aparecimento de novos sítios de crescimento deslocaria o poder, e a cidade do Rio de Janeiro entraria em rota difícil. Aquilo que o Império engenhara e a República preservara, não mais se conservaria com o arrendamento gradativo das elites.

Doravante a prestigiosa estação de cura da serra da Estrela, estaria nas mãos, e tão somente, dos petropolitanos.

Senhores de um território, afinal, mas com a consciência afastada da realidade à qual pertenceria, a decadência – já que o alóctone não destruiria seu jardim, recanto de lazer e descanso – se instalaria sob as ordens do próprio aborígene.

Evidente que, tutela desfeita, o dinheiro iria minguar. Mas o agente direto do estrago contínuo, foi, sem dúvida, o petropolitano.

… perturbado, não reconhecendo sua realidade, i.é., seu sítio, o aborígene, com a alforria ganha pelo desinteresse gradativo do patriciado, se encontraria com o poder, e uma baixa afetividade, advinda de sua origem alienante.

A criação sob esse aspecto, seria o outro nome da decadência de uma paisagem, agora dominada pelo alóctone. “Vingança ou indiferença? Prossigamos no tema…