CONVERSAÇÕES COM A ATMOSFERA AQUÁTICA
Júlio Ambrozio, ex-Associado Titular, Cadeira n.º 30, Patrono – Monsenhor Francisco de Castro Abreu Bacelar
Monsenhor Bacelar
A partir de hoje, de maneira curiosa, passarei a ocupar a cadeira de número 30 desta Instituição. O patrono dessa cadeira, Francisco de Castro Abreu Bacelar – Monsenhor Bacelar – minhoto nascido em Fafe, faz lembrar a ubiqüidade luso-brasileira, quase ia dizendo, a presença mineira em terras petropolitanas. O meu antecessor, professor Pedro Rubens Pantolla de Carvalho, fez a sua graduação em geografia.
Corografia e mineiridade, substantivos que falam de uma parte da minha escrita.
Francisco de Castro Abreu Bacelar, um ano antes de sua morte, foi nomeado Monsenhor Protonotário e Camareiro de Sua Santidade o Papa. Religioso, provavelmente, senhor de grossa fortuna, como eclesiástico foi grande empreendedor: senhor de terras no município do Carmo – dono da fazenda de Santa Fé, construindo aí a Estação de Bacelar, da Estrada de Ferro Leopoldina -, dedicou-se com êxito à agricultura, vendendo, após alguns anos, essas terras aos seus sobrinhos. Proprietário de terras em Petrópolis, Monsenhor Francisco Bacelar foi o responsável por dois exemplares da arquitetura neoclássica de Petrópolis: construiu na antiga rua D. Afonso, casa que, posteriormente, pertenceria à família Franklin Sampaio; dono de boa parte dos terrenos à margem da rua que leva agora o seu nome, construiu o prédio hoje pertencente à Universidade Católica de Petrópolis. Monsenhor Bacelar, além de participar da comissão administrativa do Hospital Santa Thereza e do antigo asilo Santa Isabel, auxiliou o Padre Siqueira na construção e sustento do asilo do Amparo. Morreu Bacelar em Poços de Caldas, MG, aos seis de novembro de 1884, como administrador da Irmandade da Santíssima Trindade.
Pedro Rubens Pantolla de Carvalho
Pedro Rubens Pantolla de Carvalho, diferente de Bacelar, tem data conhecida de nascimento – sete de setembro de 1940; filho de professores e ele mesmo professor, nasceu em Paraíba do Sul, cidade próxima da confluência dos rios Paraibuna, Piabanha e Paraíba do Sul – Três Rios – região que Getúlio Vargas, em algum momento, denominaria de “esquina do Brasil.”
O menino Pedro Rubens veio para Petrópolis cursar o segundo grau, graduando-se, após, em geografia pela UCP. Incorporou-se, em seguida, nos quadros dessa Universidade, chegando a pró-reitor administrativo. Já o seu amigo de toda a vida, professor Joaquim Eloy dos Santos, em emocionado necrológio, fala do privilégio da convivência com o professor Pedro Rubens de Carvalho, realçando o homem vocacionado para o magistério, de espírito ágil e de lúcida inteligência.
Eu não conheci pessoalmente o geógrafo Pedro Rubens. Deparei-me, porém, com seus Aspectos da Geografia Industrial de Petrópolis, artigo incluído em O Retorno da Princesa, orgs. Joaquim Eloy / Paulo Gomes dos Santos, Prefeitura e Câmara de Petrópolis, 1971. Lido somente agora, em 2003, causou-me profundo assombro. Qualquer pessoa honestamente preocupada com os destinos deste território serrano deveria ler esse texto, pois, trinta e dois anos após, dá ele a exata medida do tamanho assustador da decadência econômica petropolitana.
Lendo o texto de Pedro Rubens com a distância do tempo, talvez pudesse dizer que o substrato econômico que justificaria, como contraponto, a minha geografia cultural petropolitana, estaria esboçado nesse artigo, pois, aqui e ali, a minha escrita é também expressão de uma geração que, distantanciando-se do retrato instantâneo de Pantolla, cresceu e educou-se vivenciando a destruição acelerada da serra da Estrela.
Seria razoável indagar se o foco restrito à província – esquecendo o mundo – ou mesmo o viés otimista dessa fotografia de época -1971 – não impediu o prof. Pedro Rubens de olhar o avesso ruinoso – p. exemplo: o nascimento de Brasília, o fortalecimento da industrialização paulista, a penetração do fío sintético – existente submerso já no instante mesmo da publicação de seu artigo. Devastação e ruína, cuja face, poucos anos depois, viria à tona. Sob esse ângulo, Aspectos da Geografia Industrial de Petrópolis seria o último retrato do período de expansão industrial petropolitana.
Seria aconselhável, ademais, que todos os prefeitos dos últimos vinte anos lessem esse artigo, pois mostrando o caráter urbano-industrial da cidade, inibiria – quem sabe? – a bárbara exposição agropecuária.
Seria também interessante a construção de um texto que atualizasse o artigo de Pedro Rubens, professor que estimaria ter conhecido.
CONVERSAÇÕES COM A ATMOSFERA AQUÁTICA
A visão da infinita paisagem, desde sempre, estimulou o espírito. A largueza territorial de Ulisses, o mar pleno dos Lusíadas, a planura dos ventos de Martín Fierro, ou as campinas de tropear do índio velho Blau Nunes, dizem bem dessa expressão da paisagem. Firmados pelo clarão solar e pela visibilidade atmosférica, embora tempestades ocorressem, enigma e aventura seriam os caracteres que aquele ponto de vista distinguiu na linha do horizonte.
Frente a frente com esse olhar – pois é possível, após o século das Luzes, desconfiar da sibilina luminosidade e transparência de um mundo incertamente feérico -, qual o papel da névoa densa, sobretudo na primavera, envolvendo toda a serra do Mar?
Comparadas à noite, que carrega outras sugestões, tais como o regalo e o beijo, as obscuras gotículas d’água melhor inibiriam o distraído e casual olhar. Absorvendo as formas, embaraçando a continuidade e unidade das coisas, o nevoeiro espesso viveria a cena indissolúvel entre imaginário e realidade, exigindo da visão revigorado cuidado.
Paisagem não tectônica e de moldura invisível, neblina desorientada vertical e horizontalmente – chamando nossa atenção para o ar -, sua beleza apreensiva é a própria inquietude permanente e fortuita dessa matéria vaporosa. O mundo aqui vive encharcado no cinza geral, pois o grande céu parece ter descido à terra; o homem aí vive sobretudo com o olhar, pois o nevoeiro retirou a silhueta das formas, não existindo plano, profundidade, nem descoberta linha. Com a névoa, a paisagem parece nadar diante dos olhos; com a neblina, o homem não existe separado do mundo. A vivência do caminhante na cerração, por exemplo, é a desesperançada procura da individualidade das formas, desejando enxergar, sem surpresas, o que existiria atrás da cambiante atmosfera sem frontaria. O mundo conhecido desapareceria e então os fragmentos ou contornos de uma nova ordem fantasmática, com agonia, realizar-se-iam nesse ambiente mais enxergado do que táctil.
Curso cego de sonhos – cenografia pneumônica liquefazendo a luz e a escuridão – essa atmosfera úmida seria horripilante naquilo que traz de umidade real e excessiva ao pulmão.
Ressumando tristes metáforas e servidões sem termo, cúmplice das montanhas e da miúda chuva, seria a massa atmosférica úmida e compacta – igualmente – escondedouro do pensamento autônomo? A Matéria-prima vaporosa que auxiliaria a realização de um genuíno pensamento serrano, ou melhor, provinciano?
A ORIGEM DO “RUÇO”
Existindo em muitos lugares – cerração nos campos de cima de S. Francisco de Paula … cerração nas ruelas montesas de Ouro Preto … -, nesta banda da serrania fluminense, todavia, esse horizonte solúvel recebe o cognome de ruço.
Singular vocábulo.
Seria o ruço, afinal, um dos específicos substratos do território petropolitano? A expressão da paisagem que testemunharia, como fato exclusivo da linguagem, a nossa diferenciação regional?
Bem anterior ao dicionário Houaiss, na Summula triunfal da nova e grande celebridade do glorioso martyr S. Gonçalo Garcia, dedicada e offerecida ao Senhor Capitão Jozé Rabello de Vasconcellos, por seu autor Sotério da Sylva Ribeiro – falso nome do frei Manuel da Madre de Deus -, Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustíssima Rainha Nossa Senhora, Lisboa, 1753, reproduzida no volume 153 da Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, é possível concluir que ruço jamais foi palavra genuinamente brasileira. Lê-se nessa pequena suma: cavalos ruços pombos …(p. ). Frase de um ibérico que confirma, ademais, a primitiva utilização adjetiva desse termo.
No Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa – elucidário etimológico crítico, Antônio Joaquim de Macedo Soares, coligido, revisto e completado pelo filho, Julião Rangel de Macedo Soares, originalmente impresso na Typ. de G. Leuzinger e Filhos, RJ, 1889, com nova edição pelo INL-MEC, 1954 – dicionário preocupado apenas com palavras e frases originárias do Brasil, ou utilizados pelo povo -, o vocábulo ruço não foi anexado. A palavra internou-se no Brasil pela via lusitana. Diga-se de passagem que, em espanhol, no Diccionario Nuevo de las Lenguas Española y Francesa, Francisco Sobrino, Imprenta de Enrique-Alberto Gosse y Soc. Mercad. de Libros, quarta edição, Bruxelas, 1744, ruço lá está – rucio, cia -, como sinônimo de gris, pardacento, cor de cavalo; em francês, brouillard – advindo do francês antigo, broue, ainda usado na Normandia – é a denominação de cerração ou bruma; em italiano, o adjetivo bígio, ou grígio, significa pardo, cinzento, sendo os substantivos nébbia, nebbione, a massa de vapor d’água condensada sobre a terra, valendo também o primeiro vocábulo como designação de uma graminácea usada como ornamento, ou mesmo espessa e persistente camada de fumo e vapores que os aviões despejariam sobre os seus exércitos, impedindo uma eventual e precisa pontaria da artilharia inimiga. Originária do latim, provavelmente, a unidade léxica ruço tenha sido instalada somente na península Ibérica, embora não tenha consultado eventual elucidário dialetal da foz tauromáquica francesa, Camargue, no delta do Rhône.
Seguindo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, ed. Objetiva, RJ, 2001, como, ademais, o Dicionário Aurélio, o campo etimológico do vocábulo ruço se origina do latim roscidus – orvalho, orvalhado -, existindo como rruço já no século XIV e alcançando, na centúria seguinte, sua forma contemporânea ao perder um /r/. Pela via latina, orvalhado ou orvalho seriam parentes próximos de ruçado ou ruço, uma vez que o antepositivo rosc propiciou vocábulos como róscido, rocio e o próprio ruço. Mesmo existindo uma origem comum, porém, o uso substantivo ou adjetivo desse vocábulo o afastou desse princípio, transformando o vínculo sangüíneo original em requintado contraparentesco. Como substantivo, ruço pode ser aplicado ao noviço descascador de sombreiro; em tauromaquia, é o animal cujo pêlo é um misto de branco e preto – sinônimo de pelagem salgada -, coisa um tanto rara em bovinos.
O VOCÁBULO ÓTICO
É de se notar que o adjetivo orvalhado qualifica o chão resfriado e coberto por gotas de água que se depositam na madrugada, enquanto ruço diz respeito a pardacento, grisalho. Em acepção informal, ruço é sinônimo de complicado, difícil, apertado. Comparado esse sentido ao uso metafórico do orvalho como lenitivo, refrigério, alívio ou, em doçaria, como lusitano sinônimo de confeitos para borrifar em doces, a desconsideração com a sua origem é, aparentemente, absoluta. Aparente, porque não seria difícil pensar que a palavra surgiria da necessidade de o olhar traduzir a cor que o orvalho, delicadamente, doa à natureza: pardo claro, gris, jamais branco ou preto. Vocábulo ótico que afirmaria o refinado contraparentesco, mesmo em sua acepção popular, pois o tom cinza é a nublação ou a incerteza da visão – logo, complicado, perigoso.
Essa exigência ótica, que mirando o orvalho, gerou o adjetivo ruço, na serra do Mar criou sua variação úmida e substantiva ao enxergar a cerração como nuvem análoga à bruma ou névoa saída do ar frio da madrugada. Desejo dizer que a lembrança desse fenômeno atmosférico nem tão distante está do resfriamento que dá vida ao orvalho. O nevoeiro madrugador tem origem no ar resfriado que se instala em superfícies mais aquecidas. Erguendo-se de baixo para cima, alcançando – com o sol – mobilidade extremada até desaparecer devido ao reaquecimento diário das terras e das águas, essa neblina iluminaria ainda mais a simbiose ótica do ruço com o orvalho. Repare que a superfície resfriada em contato com o ar realiza o orvalho; porém, muitas vezes frio e úmido, esse ar é o mesmo que se aproximaria das áreas aquecidas – sólidas ou líquidas -, gerando nevoeiros ou brumas matinais. Estabelecendo-se nos vales mineiros, em terras baixas petropolitanas, nas praias invernais de Mostarda a S. José do Norte e tantos outros lugares, consequência da friagem atmosférica, brumas ou nevoeiros, em favor do orvalho, amplificariam ainda mais o entendimento com o ruço, já agora substantivado vapor.
A específica acepção montesa do ruço, confissão aquática, retomaria, então, a consangüinidade com o latino orvalhado, roscidus, restabelecida integralmente pela serra do Mar, ao nomear de ruço o fenômeno atmosférico que cobre essa serrania.
– Qual o caminho de penetração do caráter áqüeo da palavra?
Se o nevoeiro aparecido das noites e madrugadas frias vive nas campinas, vales abertos e planuras, não seria leviano sopesar que a original acepção serrana tenha nascido das migrações da hinterlândia mineira para a serra do Mar. O olhar mineiro-português encontrou verossimilhança ótica entre a névoa de seus vales e a cerração que enxergava descendo das montanhas. Remoendo o inconsciente distante, sem saber, o mineiro teria recuperado o vocábulo latino roscidus que, designando o fenômeno natural orvalho – parente próximo do nevoeiro matinal – e já conhecendo ruço como o termo que dá cor ao orvalho, não seria difícil imaginar a origem mineira de um novo sentido para o mesmo vocábulo: o ruço substantivado foi a nuvem dos vales que o mineiro reencontrou nessas paragens montesas. Identificado com o orvalho, o ruço foi também o vocábulo que fixou a diferença entre a bruma matinal se erguendo da terra e o nevoeiro que, chegando do céu, tinha origem marinha. Substantivo atracado às montanhas e sem esperança de fuga.
O RUÇO NOS SÉCULOS 19 E 20
Eu não posso afirmar que ruço como cerração fosse usado informalmente na Petrópolis do século XIX. Reconhecido pela norma culta não era. A edição brasileira do Dicionário Contemporaneo da Língua Portugueza, F. J. Caldas Aulete, B. L. Garnier livreiro editor, RJ, 1884, acompanhando a edição lisboeta, 1881, noticia o verbo ruçar-se, sinônimo de alegrar-se com a esperança de obter alguma coisa, mimo ou dádiva, talvez retirado do costume de gatos roçarem-se em quem lhes faz festa. Grafado nas duas edições com /ss/, russo aqui também significa pardo claro ou grisalho. Russar é encanecer, tornar russo, fazer-se velho; existindo uma expressão, doutor da mula ruça, valendo homem com grau científico, mas que pouco sabe; presumindo-se sábio, sem o ser.
No Dicionário da Língua Portuguesa – actualizado pelo acordo ortográfico luso-brasileiro de 1945 – Cândido de Figueiredo, 11 edição, 1949, russo é o habitante da Rússia, pois com /ç/ existe como pardacento, grisalho, desbotado, cabelo castanho muito claro, ou mesmo como cavalo macho ou burro de pêlo ruço. Ruçar é tornar-se ruço.
O historiador da rua petropolitana, Álvaro Luiz Zanatta, informa-me pessoalmente que na década de vinte do século passado, aqui e ali, é possível observar a dicção ruço vinculada ao nevoeiro espesso nos jornais da cidade. A Chorographia do Município de Petrópolis, Paulo Monte, Typographia Ypiranga, Petrópolis, 1925, expõe o aparecimento do ruço, descrevendo e evidenciando os vínculos do fenômeno com as montanhas e os ares marítimos. Da mesma forma que um poema de Bastos Tigre, O Veranista, apud Afrânio Peixoto em Petrópolis, Joaquim Eloy dos Santos, em O Resgate de uma Memória – Afrânio Peixoto, (p.43), diversos autores, Academia Petropolitana de Letras – Fundação Petrópolis, s/d, o professor Monte distingue a palavra com aspas (p.63), mostrando que o seu uso úmido, em 1925, continuava desconhecido pela norma culta. Embora ruço como nevoeiro, tudo indica, tenha sido contribuição à língua portuguesa no século XX. Quinhão da serrania fluminense.
Cinqüenta e seis anos após a edição brasileira do Caldas Aulete, no Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, Laudelino Freire, 1939-1940, russo é também o habitante da Rússia ou a língua desse país, além de sinônimo de pardacento grafado de forma errada. Esse filólogo e ensaísta, ademais, indica o vocábulo ruço como garoa, neblina, sem, contudo, estabelecer seu território dialetal. A Serra do Mar, como a região do ruço sinônimo de nevoeiro, provavelmente, surgirá com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda, ed. Nova Fronteira, RJ, 1965.
Sinônimo de nevoeiro espesso, o uso aquoso dessa voz, além disso, constituir-se-ia como exclusivo dialeto? Um dos elementos de construção do caráter regional petropolitano?
Na cidade de Cunha, não sendo conhecido ou falado na urbe, é usado sem intensidade na vizinha reserva florestal da serra da Bocaina, em zonas rurais fronteiras ao Estado do Rio de Janeiro. Em Nova Friburgo, é principalmente conhecido pelas gerações idosas; já em Teresópolis, seu uso não suplanta as unidades léxicas cerração, nevoeiro ou neblina. O carioca que sobe a serra conhece e, casualmente, utiliza-se desse úmido sinônimo, quando observa as montanhas ou desloca-se para ela.
DE MINAS PARA PETRÓPOLIS
Provavelmente, esta banda da serra da Estrela foi o sítio em que mais se ancorou o substantivado ruço. De Minas para Petrópolis. A utilização aquosa da palavra, mais do que na serra do Mar, seria um dos viscerais exemplos da influente presença mineira no município.
Citado acima, o professor Paulo Monte narra um fato atmosférico e montês não se perguntando, todavia, acerca da salinidade da cerração; particularidade que, em contraponto, a professora Nize Thomé, desde sempre moradora do Palatinado Superior, deu-me ainda agora testemunho ao lembrar um comentário habitual até meados do século passado, em sua família e entre os vizinhos, precisamente, o de sal nos lábios quando o ruço descia. Marinha substância que consolidaria a dicção petropolitana ruço.
Ausente a indagação ou impressão salobra da Chorographia do Município de Petrópolis, não pôde estabelecer o professor Monte que, bem antes da corte, o mar aristocrático havia já se instalado nesta serra, sendo mesmo – convertido em névoa – o fenômeno natural que mais caráter dá a esta região. Singular paradoxo: se o fenômeno atmosférico ensopado de mar é a própria representação alegórica do domínio da corte, o substantivo ruço, refletindo uma natureza marítima e úmida, igualmente, revelaria a comoção ou a resistência do mineiro-petropolitano – melhor posicionado, ante o Poder aristocrático, que o alemão despregado do mundo luso-brasileiro. A invenção do específico vocábulo ruço foi um fato exclusivo da linguagem, que expressando a paisagem, procurava uma identidade e auto-estima que a presença do alóctone não permitia. De fato, ruço como cerração, engendrado pela experiência ótica mineira na serra do Mar, quase ia dizendo, criado na região petropolitana e tendo seu uso expandido para àquela serra, foi e continua sendo uma espécie de expressão de resistência da hinterlândia, ou seja, da província diante da corte ou metrópole.
Constituindo-se como uma das formas indefinidas do mundo – não seria vazio recordar -, recebeu aqui o nevoeiro reputação idêntica ao renome que, em acepção popular, diz respeito à coisa complicada ou difícil. Sendo incerto ou mesmo apertado o passo seguinte na paisagem vaporosa, o substantivo ruço seria também expressão metafórica: o grito das cavalariças e servidões sem fim ante um território construído para subúrbio da aristocracia alóctone.
Devo lembrar que o meu primeiro romance, No Sereno do Mundo, ed. Pirilampo, Petrópolis, 1988, foi escrito para expor o mofo e o emparedamento da serrania petropolitana-brasileira, inundada pela neblina espessa. Narrativa que jamais indagou acerca da invenção de um novo sentido para o nome ruço vasculhando, porém, a importância existencial do fenômeno atmosférico na vida dessa região. Repare-se que o período do ano mais verossímil no entrecho do romance seria entre o inverno e a primavera, quando o frio, a miúda chuva e o ruço, transmutam-se em viventes na paisagem deste mundo pequeno.
É fato que, nos trópicos, o outono, com o seu ar límpido, seco e transluzente, devolve à forma sua individualidade: cenografia de luzes e sombras, especialmente nas serras, amaciando o olhar e tornando palpáveis as coisas do mundo. Todavia, não aportou aqui linguajar ou unidade léxica singularizando o cariz outonal e, igualmente, dizendo do povo que o faria aparecer. Frente à volubilidade do clima petropolitano, baço, de chuvas, revirado e úmido ao longo das estações, o outono apenas superficialmente concede algo singular a esta serra, pois em confronto com outros empinados trópicos açoitados pelos ares marítimos, nada de específico reserva.
O lugar serrano-petropolitano, enunciando de forma diversa o fenômeno da neblina ou cerração, comum a vários lugares, testemunharia a importante mediação da região na vivência do mundo. Embora as mudanças climáticas do globo talvez já abreviem a presença da névoa neste território. Mas, com o gravurista Escher caberia um fim, a felicidade do homem é também dependente da paisagem em que vive…