TRAFALGAR

Kenneth Henry Lionel Light

TRAFALGAR

Almirante Nelson

Este mês, vai completar 200 anos desde aquele dia profético quando a Marinha Real Inglesa enfrentou as frotas da França e da Espanha, em Trafalgar. Esse foi um evento de repercussão duradoura.

Para a França – que se veria forçada a abandonar, pelo menos por enquanto, seus planos de invadir a Grã-Bretanha.

Para a Grã-Bretanha – que além de evitar a invasão do seu país, a dominação dos mares a colocaria numa posição de poder enfrentar no futuro, Bonaparte em terra. Desembarcaria tropas em Portugal e as manteria continuamente supridas por via marítima. A Inglaterra, apesar do bloqueio continental imposto por Napoleão, não só continuaria a exportar através do contrabando em larga escala, como viria a abrir novos mercados como foi feito no Brasil, em 1808.

Para Portugal – dois anos mais tarde invadida por tropas francesas, o domínio do mar permitiria o comboio com segurança da família real para o Brasil.

Para o Brasil – a vinda da família real foi o seu nascimento como país, pois em 1815 foi incorporado à coroa de Portugal e, uma década mais tarde, tornou-se um império independente.

Estou portanto muito contente, já que estudo esta matéria, em poder compartilhar meus conhecimentos com os senhores.

Essa apresentação será feita em 3 partes:

Primeiro, o cenário político em 1803, depois, a vida particular de Nelson e, finalmente, a batalha. Calculo que essa apresentação levará 45 minutos.

1.O Cenário Político

Depois de um intervalo de um ano, a Guerra com a França se reiniciou em 1803.

No continente, Bonaparte teve absoluto sucesso ao derrotar todos os exércitos que tinham tentado conter suas ambições de dominar a Europa. Somente a Rússia e a Inglaterra impediram a realização do seu sonho. A Rússia por causa do seu exército numeroso, as longas distâncias para chegar às suas cidades mais importantes e o seu clima de inverno severo. A Inglaterra, por outro lado, era protegida por ser uma ilha.

A invasão da Inglaterra sempre foi extremamente difícil. Os Romanos e os Dinamarqueses o conseguiram e, mais recentemente, os Normandos em 1066.

Enquanto Bonaparte preparava a invasão, a Inglaterra observava com crescente apreensão. Do outro lado do canal, a menos de 30km de distância, estavam sendo preparadas as forças invasoras. Na costa de França, Bélgica e Holanda, novos portos como também 2.400 embarcações estavam sendo construídas. Tudo para atravessar o exército de 100.000 homens, 3.000 cavalos, canhões e toda sorte de material que compunha ‘La Grande Armée’.

Na Inglaterra, a convocação para conseguir formar um exército de voluntários estava a todo vapor sob o comando do Duque de York, segundo filho do Rei Jorge III.

Fortalezas existentes na costa estavam sendo consertadas e armadas e, torres, em uma linha conhecida como as ‘Torres de Martello’, segundo o seu inventor, estavam sendo construídas e muitas ainda existem até hoje.

Bonaparte acreditava que, se ele pudesse dominar o Canal da Mancha, nem que fosse por alguns dias, seu exército poderia atravessá-lo e muito provavelmente sairia vitorioso como tinha acontecido em tantos outros países. Caso contrário, seria suicídio prosseguir com a invasão.

A Perseguição.

Em maio de 1803, Nelson deixou Londres e, a bordo da nau de 100 peças “Victory”, que se encontrava em Portsmouth, velejou para o Mediterrâneo. Suas ordens eram de defender Gibraltar, Malta e o Reino das Duas Sicílias; também para bloquear a base naval de Toulon onde se encontrava uma esquadra francesa e impedi-la de se juntar às outras esquadras.

Poucas ações ocorreram no ano de 1804 mas, no início de 1805, a esquadra de Rochefort conseguiu sair do porto e atravessar até as Índias Ocidentais porém, depois desse feito, suas ordens foram canceladas e voltaram a Rochefort em março.

A Espanha agora se tornou aliada da França.

No início de abril, a esquadra francesa conseguiu sair do porto de Toulon e partiu para o Atlântico. A esquadra espanhola deixou Cádiz e, após alguns atrasos, conseguiu se juntar à esquadra espanhola em Martinica.

Para podermos compreender como naus conseguem sair de um porto sob bloqueio, temos que aceitar as limitações impostas à navegação à vela. Quando, por exemplo, um vento fresco sopra do oeste, as naus que estão bloqueando a base de Cádiz são carregadas 100 ou 200km para dentro do Mediterrâneo. Quando o vento muda para Leste, essas naus levam 4 ou 5 dias para voltarem ao seu posto. Esta é a oportunidade para o inimigo escapar!

Nessa ocasião, Nelson no meio do Mediterrâneo levou algum tempo para receber a notícia e para descobrir o rumo da esquadra. De fato, ele partiu para o Leste e, só então, ficou confirmado que a esquadra estava no Atlântico. Após reabastecer com víveres para 5 meses, em Lagos (Portugal), saiu à caça – mais de um mês de distância os separava.

Agora que a localização da esquadra francesa era conhecida com um certo grau de precisão, todo esforço seria empenhado em trazê-la à luta. Naquele verão de 1805, Nelson atravessou o Atlântico até as Índias Ocidentais e depois voltou.

“Victory”, a nau capitânia de Nelson, liderava a esquadra.

É uma sorte que esta nau de linha ainda exista até hoje. Encontra-se fora d’água, num dique seco da cidade de Portsmouth – e é o único exemplar sobrevivente de uma nau deste período.

No seu interior, a sala de refeições é bastante luxuosa. O retrato de Emma poderá ser visto – era o favorito de Nelson, ele a chamava de ‘Meu Anjo da Guarda’.

O espaço reservado para as refeições em uma nau de 74 peças, a mais comum, era bem diferente – muito menos luxuosa.

Um criado se colocava atrás de cada convidado. Capitães, tinham direito a 4 criados para cada 100 membros da tripulação da nau que comandavam; no caso de uma 74, com seus 550 tripulantes, seriam 26 criados. Alguns destes postos eram reservados para filhos de amigos que, aos 12 anos de idade, eram admitidos na Marinha Naval. Nelson, Sidney Smith (que comandou a esquadra que comboiou D. João até o Brasil) e muitos outros heróis assim iniciaram suas carreiras.

Repartições de madeira permitiam aos oficiais um pouco de privacidade e ao sinal de preparar para batalha, eram desmontadas e guardadas em um convés inferior, ou jogadas para fora da nau se o tempo era fator determinante!

A rede de dormir do almirante Nelson também era bastante luxuosa, como também, a cabine para uso diurno.

Apesar de todos os esforços empregados por Nelson para alcançar o inimigo, a distância que os separava era por demais e assim, a frota franco-espanhola conseguiu voltar sem tropeços para a Europa.

2. Nelson e Emma

Antes de falarmos sobre a batalha, gostaria de dizer algumas palavras sobre a vida particular de Nelson. Nenhum relato sobre Trafalgar e seu herói seria completo se não fosse mencionada Lady Emma Hamilton. Tão famosa na Inglaterra, como é Inês de Castro e o seu D. Pedro I de Portugal em Portugal. História, que acaba de completar 650 anos. Este romance entre Nelson e Emma causou muita controvérsia; um verdadeiro escândalo, mesmo que estivesse envolvendo o maior herói da Inglaterra.

Nelson nasceu no vilarejo de Burnham Thorpe no condado de Norfolk, filho de um pastor do interior.

Tinha 8 anos de idade quando sua mãe veio a falecer.

Ele entrou na Marinha, como já mencionamos, aos 12 anos e foi sendo promovido até alcançar o posto de capitão-de-mar e guerra.

Aos 39 anos, em 1787, enquanto servia nas Índias Ocidentais, casou-se com a viúva Frances Nisbet, conhecida como ‘Fanny’. Não tiveram filhos. Os longos períodos em que se manteve ausente e o encontro com Emma finalmente puseram fim ao seu casamento.

A juventude de Emma não foi muito diferente da das moças nascidas pobres naquela época mas com qualidades que a destacavam, como charme e beleza.

Seu verdadeiro nome era Amy Lyon, filha de um ferreiro do condado de Cheshire. Ainda jovem, mudou-se para Londres para trabalhar como empregada doméstica. Em seguida, mudou o seu nome para Emma Hart e tornou-se amante de Sir Henry Fethersonhaugh. Essa relação ou melhor esse arranjo, durou até que, descobrindo que ela estava grávida, Sir Henry a abandonou. Mais tarde, Emma achou um emprego num bordel. Estava agora com 17 anos de idade.

Depois, do que se tem notícia é de que ela tinha se tornado amante do Hon. Charles Grenville. Este senhor, aos poucos foi se afundando em dívidas até que, para aliviar sua situação econômica, ofereceu Emma a um tio rico. Diplomata e viúvo, Sir William Hamilton, em contrapartida, deveria saldar as dívidas de Grenville. Foi o que aconteceu. Na realidade, ela foi vendida!

Para surpresa geral, Sir William e Emma se casaram em 1791 – ela, aos 26 anos e ele aos 60. Sir William e Lady Emma Hamilton mudaram-se depois para Nápoles onde ele chefiava a legação britânica.

O rei Bourbon, Ferdinando IV, e sua esposa Maria Carolina eram os soberanos do Reino das Duas Sicílias. As grandes paixões do rei eram a caça e a pesca e, depois, cozinhar o produto do seu esforço e vendê-lo em sua própria loja. Conhecido pelo nome de IL Re Nasone por causa de seu grande e distinto nariz, ficava feliz e tranqüilo em deixar Maria Carolina reinar em seu lugar.

Emma fez muito sucesso na corte. Aprendeu francês e italiano rapidamente e proporcionou grande prazer aos nobres, com suas atuações teatrais.

Embora tenham-se encontrado anteriormente por diversas ocasiões, o romance teve início quando Nelson voltou a Nápoles para se recuperar dos ferimentos que tinha sofrido durante a sua extraordinária batalha e vitória na Baia de Aboukir – lá, ele destruiu a esquadra francesa de Napoleão que tinha transportado o exército que invadiu o Egito.

O marido de Emma parecia não se importar com a situação e então iniciou-se o que os franceses descrevem habilmente como uma ‘ménage à trois’. Até a Inglaterra georgiana, que tinha padrões morais não muito rígidos, ficou chocada.

O caso foi munição certa para os caricaturistas que não permitiam que o público esquecesse a sua vida pregressa.

Sir William foi transferido de volta para a Inglaterra.

Eles moravam durante boa parte do ano na mansão de Nelson, no interior, chamada ‘Merton Place’.

Mas também residiam na de Sir William, em Piccaddily. Lá, nasceu em 1801 a única filha de Nelson, Horatia. Sir William veio a falecer em 1803.

Embora tanto Nelson como Sir William tenham deixado recursos para Emma, ela não se acostumou a reduzir o seu padrão de vida. Em 1814, foi parar na cadeia de devedores até que, no ano seguinte, amigos de Nelson pagaram suas dívidas e ela foi solta. Em seguida, Emma foi morar em um quarto na cidade de Calais, onde veio a falecer aos 50 anos, alcoólatra.

3. A Batalha, outubro de 1805

Em agosto de 1805, Nelson voltou a Inglaterra, merecia um descanso pois tinha passado 2 anos sem pisar em terra. Receava que não seria bem recebido, pois não trazia notícias de novas vitórias. Não precisava se ter preocupado, o povo nas ruas o aplaudia pois não tinha esquecido suas vitórias no Egito e em Copenhagen. No dia 2 de setembro, seu merecido descanso chegaria ao fim – o almirantado recebeu notícias de que as frotas da França e da Espanha encontravam-se na baía de Cádiz. Nelson, agora comandante da frota do Mediterrâneo até Cadiz, levantou ferro na “Victory” no domingo, 15 de setembro. No dia 29, encontrava-se a postos com o restante da sua frota a 50 milhas de Cádiz.

Nelson esperava conseguir enganar o inimigo e fazer com que saísse da baía colocando somente pequenas embarcações a vista; a frota principal ficava bem distante. Depois dessas embarcações, fragatas estavam a postos para levar informações para a frota de 27 naus.

Nelson promovia freqüentes reuniões com seus capitães para discutir estratégias – eles ficaram conhecidos como seu ‘Bando de Irmãos’. Há caricatura de uma de suas reuniões.

Seu comandante favorito era Thomas Harding, capitão da “Victory”. No final de uma carreira brilhante ele seria nomeado 1º Lorde do Almirantado.

O plano era primeiro obter a vantagem do vento e, em seguida, atacar em duas colunas. A de barlavento (mais perto do vento) e outra paralela, de sotavento, e atravessar a linha do inimigo passando entre suas naus. Sofreriam um castigo violento nos 20 minutos enquanto se aproximavam do inimigo, pois não tinham canhões apontando para frente. Mas em seguida, poderiam atirar alvejando as naus ao comprido (atirar de enfiada), causando imensos danos em poucos minutos. Depois deveriam tentar se atracar com uma nau, abordá-la e capturá-la. Marinheiros e fuzileiros combateriam em luta corpo a corpo. Nelson lideraria a coluna de barlavento e o Almirante Sir Cuthbert Collingwood, 1748-1810, a coluna de sotavento.

Enquanto isto, em Cadiz, conforme posteriormente a documentação demonstrou, o Almirante francês Villeneuve permanecia receoso de deixar esta baía segura. Bonaparte, cada vez mais descontente com a falta do seu espírito bélico, enviou ordens para substituí-lo pelo Almirante Rosily; as ordens não chegaram a tempo. Mesmo com o conhecimento de que as suas forças eram bem superiores em número, reconhecia que o inimigo fora mais bem treinado e assim, tinha melhor chance de vencer o conflito. Foi o receio de uma vingança pessoal por parte de Bonaparte, por sua falta de bravura, que o fez levantar ferro e soltar as velas para enfrentar Nelson.

Ao tomar conhecimento que o inimigo estava prestes a partir e, em seguida, que teria deixado a baía, Nelson manobrou a sua frota para obter a vantagem da brisa que soprava. Levou até a manhã do dia seguinte, 21 de outubro, para alcançar a posição desejada.

Embora os ingleses tivessem um número menor de naus e, mais importante, 20% a menos de canhões, eles estavam confiantes devido à experiência que tinham adquirido e ao seu comandante.

As duas colunas viraram e se dirigiram o mais rápido possível, em direção ao inimigo.

Anteriormente, tinha sido combinado que para preservá-lo, Nelson não lideraria a coluna mas, no último minuto, ele mudou de idéia e enviou um sinal a “Temeraire” para segui-lo.

Nelson içou um sinal que talvez se tornaria o mais conhecido em toda a história naval britânica!

A INGLATERRA CONFIA QUE CADA UM CUMPRA COM O SEU DEVER.

A “Victory” se dirige à linha do inimigo concentrando sobre si o fogo dos canhões.

Em seguida, atravessa a linha atirando ao longo na “Bucentaure”.

Nesse exato momento, Nelson cai sobre o convés atingido por uma bala disparada por um franco atirador localizado numa das vergas da “Bucentaure”. A bala, vinda de cima, entra pelo ombro, atravessa um dos seus pulmões e vai parar perto da espinha. Ele é levado para o convés de baixo, seu rosto foi coberto por um lenço numa tentativa de esconder sua identidade.

A batalha se desenrola por todos os lados. Diferente de uma batalha em terra, depois do ataque em linhas formais, pequenos grupos de navios se atracam até que um se entrega arriando o seu pavilhão. Existem muitos quadros com essas cenas, porque artistas eram levados nas naus especialmente para registrar o acontecimento.

Desenhos e quadros, porém, não conseguem demonstrar a realidade assustadora de uma batalha naval. Assim, optei pela leitura de um relato, escrito por um jovem oficial fuzileiro da nau “Belleisle”, Ten. Paul Harris Nicholas. Não se preocupem com os nomes das diversas peças de uma nau – a ilustração irá tirar quaisquer dúvidas.

“Eu tinha acabado de completar 16 anos, quando embarquei pela primeira vez na nau “Belleisle” de 80 peças, que se juntou ao esquadrão perto de Cádiz sob o comando de Lorde Nelson. Era início de outubro, de 1805.

No dia 19 daquele mês, avistamos uma embarcação que nos chamou a atenção porque vinha em nossa direção dando tiros de canhão; todas as lunetas foram apontadas naquela direção e aguardamos ansiosamente as notícias que nos trazia. Logo ficamos sabendo que o inimigo tinha içado suas velas e estava se aproximando. Foi dado imediatamente o sinal para irmos à caça e, dentro de poucos minutos, todas as velas tinham sido largadas pela contentíssima tripulação. No dia seguinte, pela manhã, os navios que estavam mais adiantados podiam avistar as esquadras da França e da Espanha. Todos os preparativos foram feitos para a batalha e, como alguns dos nossos durante a noite mantiveram-se próximos, ficamos em estado permanente de excitação por causa dos disparos dos canhões e dos foguetes.

Ao alvorecer, o horizonte parecia coberto de embarcações. A totalidade do inimigo encontrava-se ao sul distante umas 9 milhas, entre nós e a costa perto de Trafalgar. Fui acordado pelos “vivas” da tripulação e pelo barulho de muitos pés subindo pelas escotilhas para avistarem o inimigo. A manifestação de satisfação foi a maior que eu jamais tinha testemunhado, maior ainda do que a demonstrada ao avistarmos nossos rochedos nativos após um longo período ausentes em serviço.

Soprava um vento fraco do noroeste com mar de ressaca. Foi dado o sinal de soltar as velas e formar duas linhas em ordem de batalha. A “Victory”, nau capitânia de Lorde Nelson, tomou a dianteira da coluna de barlavento e a “Royal Sovereign” mostrando o pavilhão do Almirante Collingwood liderava a coluna de sotavento. Às 8 horas, o inimigo alterou o rumo para o norte, porém, devido ao vento fraco que soprou durante todo o dia, não conseguiu formar sua linha com precisão. Às 9, nós nos encontrávamos a umas 6 milhas do inimigo. Mesmo com velas de cutelo em ambos os lados, não conseguimos avançar mais do que uma milha e meia por hora e continuamos assim, até conseguirmos a posição que queríamos ao lado do inimigo.

Os oficiais agora se reuniram para tomar o café da manhã e, embora esperançosos com a gloriosa luta que se aproximava, tinham ao mesmo tempo um pressentimento de que nem todos estariam presentes na próxima refeição. Naquele momento, muitos se ocupavam em fazer seu testamento. O toque dos tambores logo pôs fim às nossas conversas e após as despedidas, em alguns casos para sempre, rumamos cada um para o seu respectivo posto.

Às onze e meia, a “Royal Sovereign” disparou três tiros obtendo o efeito desejado – o inimigo içou seus pavilhões, o tricolor da França e o da Espanha.

O tambor nos chamou novamente à presença do capitão. Ele deu laconicamente as seguintes instruções: ‘Senhores, só tenho a dizer que passaremos bem perto da popa daquela nau – daremos duas salvas de bala redonda e uma de metralha. Agora, voltem aos seus postos e atenção para não dispararem até que cada canhão se encontre mirando o alvo desejado’. Após essa breve instrução, nosso valente capitão se colocou ao lado da primeira caronada no estibordo do tombadilho.

A cena de determinação e resolução de cada homem era bem condizente com a sua aparência; alguns sem camisa, outros com panos amarrados na cabeça – todos esperavam impacientemente a ordem para o ataque. Meus dois colegas oficiais e eu, com trinta fuzileiros, nos posicionamos na proa – eu na frente. As primeiras balas começaram a passar por cima da gente e nos deram uma idéia do que iríamos enfrentar dentro de poucos minutos. Um silêncio se espalhava pela nau, somente quebrado pela voz do nosso comandante instruindo o mestre na roda do leme. O barulho da bala cortando o ar seguido de um grito de agonia vieram com o próximo tiro – a perda da cabeça de um jovem recruta foi o resultado – e, conforme avançávamos, a destruição aumentava. O nosso capitão atingido no peito caiu, mas logo se levantou. Ninguém, que nunca esteve na situação em que eu me encontrava, poderá imaginá-la. Fiquei horrorizado com o que estava vendo em minha volta, corpos ensangüentados, meus ouvidos retumbavam com os gritos dos feridos e os gemidos dos moribundos!

Naquela hora, vendo que quase todos estavam deitados, pensei em seguir o mesmo exemplo e por diversas vezes, ameacei de me abaixar mas uma voz no meu interior dizia: ‘Fique em pé e não fuja da sua responsabilidade’. Ao me voltar, percebi que o meu estimado e galante comandante aparentava toda tranqüilidade ao percorrer o convés com seu passo seguro. Meus temores em grande parte desapareceram. Senti a importância do exemplo dado por aqueles em comando, especialmente nas circunstâncias difíceis em que nos encontrávamos e isso durante quase trinta minutos, sem termos tido o poder de retaliar.

Era meio dia quando atingimos a linha inimiga. Nossas energias estavam à flor da pele e só foram desviadas quando ouvimos o comando ‘Atenção aos seus canhões!’ Esses, conforme alinhavam, eram disparados em ambos os lados. Nossa atenção concentrou-se na “Santa Ana” de 112 canhões. Até aquele momento não tínhamos sequer dado uma única salva; no entanto, havia bastante evidência do castigo que, até então, tínhamos sofrido; o mastaréu da gata tinha sido destruído e o nosso pavilhão içado três vezes; muitos mortos se encontravam sobre o convés e onze feridos estavam sob os cuidados do cirurgião. Os disparos eram ensurdecedores e, somente nos intervalos, podíamos distinguir os pavilhões dos nossos adversários.

Nesse momento crítico, enquanto estávamos nos dirigindo para a popa do “L’Indomptable”, nossos mastros, vergas e velas pendurados acima de nossas cabeças na maior confusão, estávamos também sendo varridos por tiros da “Fougeux” no nosso estibordo e da espanhola “San Juste” na nossa popa a bombordo.

Por volta de uma hora da tarde, a “Fougeux” atracou conosco a estibordo e assim ficou até mais tarde quando se separou e ficou para trás. Perdemos o mastro da mezena e em seguida, o mastaréu da gávea. Uma nau de duas cobertas a Neptune de 80 peças, se colocou na nossa proa e a Achille na nossa alheta. Às duas horas, o mastro real tombou pelo bombordo; por pouco não causou graves ferimentos. Às duas e meia o mastro da traquete foi derrubado. Neste estado precário, sem podermos nos defender, nossos inimigos podiam escolher a distância e a direção, assim cada disparo causava grandes danos. Nós, na popa, recebemos ordens para ajudar com os canhões do convés a ré; assim fizemos até terminar a ação. Até as três e meia continuamos nesta mesma situação. Não tínhamos como manobrar; tentamos então usar os remos, cada um colocado numa portinhola, mas isso pouco adiantou. O que sobrou da nossa embarcação foi um casco coberto de destroços balançando na ressaca.

Naquela hora, uma nau de três convés fora vista velejando em nossa direção; pode-se imaginar com que apreensão aguardamos a chegada deste objeto impressionante que poderia nos livrar dos nossos inimigos ou então tornar nossa situação desesperadora. Pouco tínhamos visto do pavilhão britânico desde a uma hora da tarde portanto, é quase impossível descrever nossa alegria quando o estranho navio mudou de rumo e vimos o pavilhão branco. Não permanecemos nessa situação desesperadora por muito tempo. O Swiftsure veio ao nosso encalço para nos ajudar. Todos nós olhávamos para a nau amiga que se aproximava – esta, chegando à distância de fala, colocou os homens nas vergas gritando vivas e se dirigiu diretamente à nau que tanto tinha nos castigado. Era quase quatro horas quando paramos de atirar; a batalha continuava, a uma distância de duas milhas na direção do vento…..

Às cinco horas os oficiais se reuniram na cabine do comandante para tomar refrescos. A sede provocada pela fumaça e as horas de tanta atividade tornaram esses refrescos bem-vindos; alguns de nós, já tínhamos amenizado nossa sede roubando as uvas que o comandante tinha penduradas em volta da sua cabine. Nessa hora da grande vitória, cansados fisicamente e mentalmente, sentimos com melancolia, a falta de muitos colegas com os quais tínhamos dividido durante anos momentos de grande perigo. Os méritos desses heróis, que não estavam mais conosco, foram lembrados e seus erros afundaram com eles para as profundezas do mar.”

Depois desta descrição do aumento gradativo dos danos que a “Belleisle” estava sofrendo, essa última imagem, por si só se explica.

Parece incrível que uma nau possa receber tantos danos e ainda assim continuar na luta.

No convés de baixo da “Victory”, Nelson após 3 horas de agonia, não resiste e morre. Antes porém, ele teve a satisfação de saber que seus homens tinham conseguido uma grande vitória.

No dia seguinte, soprou um vento duro e as naus, com falta de pessoal por causa dos ferimentos, com danos abaixo da linha d’água e faltando mastros e vergas sofreram uma segunda batalha, contra as intempéries da natureza. A nau “Santissima Trinidad” de 136 peças (a maior da batalha) estava prestes a afundar. Em cima do pavilhão espanhol havia o de um almirante de pavilhão branco. De fato Nelson era almirante de pavilhão branco, assim todas as naus sob o seu comando deveriam mostrar uma bandeira ¾ branca e ¼ inglesa.

No final os resultados incluem aquelas naus perdidas nos ventos duros do dia seguinte. A França e Espanha perderam 21 naus, enquanto a Inglaterra não perdeu nenhuma – embora suas naus tenham sido severamente castigadas. A perda de vidas, os ferimentos e os prisioneiros que foram feitos, refletem esse resultado.

Antes de deixar o cenário da Batalha, gostaria de apresentar a versão francesa – publicada no jornal ‘Le Moniteur’, uma espécie de ‘Diário Oficial’, daquela época. Afinal, conforme se alega, todos as histórias tem dois lados.

Manchete:
NELSON MORTO EM DUELO COM VILLENEUVE
FROTA INGLESA DESTRUÍDA EM TRAFALGAR

Cádiz, 25 de outubro

As operações da Marinha Imperial refletem, no Atlântico, aquelas do grandioso Exército Imperial na Alemanha.

A frota inglesa foi aniquilada – Nelson não mais existe. Indignados pela inatividade no porto, enquanto nossos bravos irmãos têm ganho loros na Alemanha, os almirantes Villeneuve e Gravina decidiram sair para o mar e iniciar uma batalha com os ingleses. Eram superiores em número, 45 contra os nossos 33 mas, isso não é nada para homens com determinação para lutar e vencer. Nelson fez de tudo para evitar uma batalha; tentou entrar no Mediterrâneo mas nós o perseguimos e o alcançamos em Trafalgar. Foi em vão a tentativa do almirante inglês de se esquivar, pois o almirante espanhol Oliva impediu sua fuga, amarrando sua nau à nau capitânia inglesa. A nau inglesa era de 186 peças, a “Santissima Trinidad” de apenas 74.

Lorde Nelson adotou uma tática nova, temendo nos enfrentar pela forma antiga onde tínhamos superioridade. Inicialmente, nos confundiu mas, quem pode confundir por muito tempo a Marinha de SM Imperial? Lutamos verga contra verga, canhão contra canhão.

Enquanto isso, Nelson resistia. Tratava-se agora, de uma corrida para ver quem seria o primeiro a abordá-lo. Dois almirantes, um de cada lado, disputavam a honra e abordaram a nau simultaneamente. Villeneuve correu para o convés a ré e, com a generosidade habitual dos franceses, levava duas pistolas nas suas mãos. Sabia que o almirante tinha perdido um braço assim não poderia usar a espada, então ofereceu uma pistola a Nelson; lutaram e, no segundo disparo, Nelson caiu. Imediatamente foi levado para o convés de baixo. Oliva, Gravina, e Villeneuve deram assistência com a habitual atenção humanitária francesa. Neste meio tempo, 15 naus inglesas tinham se rendido e, mais quatro, foram forçadas a seguir esse exemplo – outra explodiu. Nossa vitória estava agora completa e preparávamo-nos para tomar posse das naus capturadas, mas, os elementos estavam desfavoráveis e uma tempestade horrenda nos atingiu.

A tempestade foi demorada e horrível mas, nossas naus sabendo manobrar, escaparam do vento forte. Os ingleses, tão mais danificados, foram levados às encostas e muitos naufragaram. No final, quando o vento violento amainou, 13 das naus francesas e espanholas voltaram em segurança para Cádiz; outras 20 devem, sem dúvida, ter se abrigado em outros portos e em breve darão notícias. Consertaremos nossos estragos o mais rapidamente possível e partiremos em caça ao inimigo.

Bom, essa é apenas uma versão!

Nos próximos dias, muito danificados mas alegres com a sua vitória, a frota, com dificuldade, fez rumo à base naval mais próxima – a fortaleza de Gibraltar.

O almirantado queria que o corpo de Nelson fosse transferido para uma fragata veloz e levado a Londres, quanto antes, para o seu enterro. A guarnição da “Victory” impediu porém que seu corpo fosse retirado da nau – estava sendo conservado em um barril de rum – assim tiveram que esperar um mês enquanto a “Victory” sofria reparos.

Rum era estocado a bordo em quantidade pois a guarnição tinha direito de receber, diariamente, uma ração de rum, quase meio litro (com teor alcoólico hoje considerado ilegal). Era distribuído diluído com duas partes de água.

Muitos que apareceram nas estatísticas como feridos, de fato vieram a falecer. Um cemitério, no centro da cidade de Gibraltar, foi construído para eles – Cemitério de Trafalgar.

A chegada da “Victory” em Londres desencadeou talvez um dos mais grandiosos funerais jamais vistos – o Tâmisa ficou coberto com pequenas embarcações que acompanhavam o féretro – em terra, milhares assistiam esses últimos momentos – Nelson era, sobretudo, um herói do povo.

Os 6 duques da família real, filhos do Rei Jorge III, 32 almirantes e mais de 250 capitães acompanharam o carro fúnebre.

A basílica de S. Paulo estava lotada.

Foi um funeral merecido por um homem que tinha colocado o seu país acima de tudo e, devido à sua magnífica liderança, ganhou o título de “maior herói da Inglaterra”.

Depois, veio uma onda de idolatria – além de poemas, panfletos e ‘posters’, muitos quadros foram pintados da sua ressurreição.

Em um quadro, o herói inglês está sendo levado ao céu enquanto ao seu redor, seus tristes homens observam enquanto a batalha continua. À esquerda, Bretanha ajuda na ascensão de Nelson – Netuno o recebe enquanto Fama coloca a coroa de louros.

Em outra tela, Netuno entrega Nelson aos braços de Bretanha.

O ultimo e permanente tributo à posterioridade é o monumento a ele erguido. Desta praça central, em frente à Galeria de Belas Artes Nacional, irradia o Mall – depois de passar debaixo do Arco do Almirantado segue em direção aos palácios de S. James e Buckingham; Whitehall, que leva aos Ministérios, Westminster Abbey e o Parlamento; e, finalmente, o Strand – que leva aos palácios de Justiça e ao centro financeiro.

O Parlamento reconheceu o heroísmo desse grande homem e os benefícios que a Grã-Bretanha ia obter devido à sua vitória. Votaram a seu favor um marquesado, 4 milhões de libras (8 milhões USD) para comprar uma propriedade digna e 200 mil libras (400 mil USD) de pensão por ano; como não tinha herdeiros legítimos, seu irmão William, pastor em uma pequena aldeia, receberia esses benefícios. A pensão, ad perpetuam, somente terminou depois da 2ª. Guerra, quando o governo do Ministro Attlee a comprou da família.