REFLEXOS PSICOSSOCIAIS DO INSTITUTO DA ESCRAVIDÃO

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

Ainda hoje fala-se que há escravidão no Brasil, tomada a palavra no seu sentido jurídico e psicossocial. É verdade e se o fato é de se lamentar, não causa espanto àqueles que sabem que há traços culturais que, de tão arraigados na mentalidade dos povos, custam a desaparecer de todo da vida dos mesmos.

Por isso é que não se faz cultura, tomado o termo no sentido etnológico, por decreto ou por elaborações legais distantes da realidade palpável das relações humanas.

Não seria crível que, depois de mais de trezentos anos do sistema escravista no Brasil, tendo sido o instituto da escravidão uma das coisas mais sérias da vida nacional, pelos grandes interesses econômico-financeiros que envolvia, protegido por um bem trabalhado corpo de leis, quase todo inspirado no direito romano, todas as marcas culturais dessa poderosa instituição desaparecessem do dia para a noite, tão logo fora decretado o fim da escravidão no Brasil.

Ora, se os estigmas, usos e costumes teúdos e manteúdos pelo abominável sistema ainda podem ser detectados nos dias que correm, quanto mais em meados do século XIX, numa época em que somente o tráfico de escravos da África para o Brasil havia sido proibido. Nada mais havia que atenuasse os rigores do regime, o que só começaria a acontecer depois do fim da guerra do Paraguai.

Naqueles idos, aos olhos do senhor, qualquer serviçal tinha o status de escravo, ainda que a lei distinguisse o elemento servil do braço livre; o escravo do ingênuo ou do liberto pela manumissão.

Daí o desprestígio do trabalho braçal nas zonas de maior incidência escravagista.

O processo de colonização através do chamamento na Europa de mão-de-obra livre, qualificada e responsável iniciado na segunda década do século XIX e que tinha como uma das finalidades substituir paulatinamente o braço escravo, não mudaria, nem mesmo a longo prazo a mentalidade escravocrata das famílias patrícias, que em geral viam e tratavam os colonos como se escravos fossem. E quantos até hoje ainda procedem desta forma, com relação aos seus empregados, não importa que origem tenham, quase cento e vinte anos depois de ter sido oficialmente abolida a escravidão no Brasil?

O colono não mereceu dos contratadores ou locatários de serviços o devido respeito, a mais comezinha consideração. Ao arrepio das leis do país, muitos dos que tinham a seu serviço migrantes estrangeiros não faziam a menor cerimônia em tornar explícito publicamente que no seu conceito não havia distinção no tratamento dispensado a escravos e colonos. Até a terminologia empregada era mais ou menos a mesma.

Os anúncios publicados nos jornais falam por si.

Na outrora denominada Campanha da Princesa, hoje simplesmente Campanha, cidade situada no sul de Minas Gerais, editou-se em meados dos anos sessenta dos oitocentos um jornal chamado “O Sapucahy”. Suas edições estão repletas de anúncios de escravos fugidos, via de regra publicados na 4ª página.

Tomemos ao acaso um deles, recolhido na edição de 27 de maio de 1866:

100$000 “Fugiram da cidade de Campanha a 15 de abril corrente, de José Rodrigues Guedes, dois escravos, um de nome José, idade 27 anos, crioulo, cor fula, pouca barba, olhos algum tanto acanhados, orelha esquerda rachada, altura e o corpo regulares, sem sinais de castigo, bem falante e humilde; é domador, tropeiro, carreiro, e, roceiro. Anda em companhia de uma parda livre que terá 23 anos de idade, que traz duas filhas de 4 e 6 anos e à qual parda se tem por vezes pedido para não acoitar o mencionado escravo. Tanto este escravo, como aquela parda que por vezes o tem acoitado são naturais do Lambari da Campanha. Sabe-se que a parda se acha atualmente no arraial de Campo do Lima.

… Gratifica-se com a quantia acima a quem apreender os mesmos (os dois escravos) e entregar em Baependi ao Ilmo. Snr. Delegado João de Almeida Pedrozo, ou ao snr. Francisco Martins do Pilar, ou na cadeia de Pouso Alegre.

Protesta-se com todo o rigor da lei contra quem os mesmos escravos acoutar e pede-se às autoridades que dos mesmos tiverem notícias ordenarem a sua prisão pelo que se ficará muito agradecido. – José Rodrigues Guedes, Campanha, 22 de abril de 1866”.

Note-se que o anúncio fazia o retrato falado do fujão, ameaçava com os rigores da lei o eventual coiteiro, aludia à apreensão da peça e à cadeia para a mesma e prometia gratificar quem descobrisse o paradeiro do escravo.

O elemento servil era propriedade do seu senhor e como tal equiparado aos semoventes, carecendo de direitos civis e políticos, inclusive da liberdade de ir e vir segundo sua vontade. Em alguns lugares era proibido de andar nas ruas depois das 10 horas da noite, a não ser no caso de cumprirem alguma ordem do seu amo.

O escravo equiparava-se ao delinqüente no caso de fuga e mesmo quando se tratava do chamado “servus derrelictus”, isto é do escravo abandonado com ou sem intenção por parte do senhor. Nesses casos ia ele parar na cadeia, até que sua situação ficasse esclarecida e solucionada.

O coiteiro, isto é, aquele que homiziava, que escondia, que abrigava o fujão, era co-autor do crime e por isso respondia aos rigores da lei.

Estas explicações são necessárias, para que avancemos com os anúncios, fazendo cotejos.

O jornal “O Parahyba” que se editou em Petrópolis entre 1857 e 1859, costumava publicar anúncios de escravos fugidos na 3ª e 4ª páginas.

Vejamos este estampado na edição de 17 de abril de 1859:

“Atenção – Fugiram da fazenda do abaixo assinado sita na serra Vermelha entre as freguesias da Aldeia da Pedra e de Santa Rita, no dia 19 de fevereiro p.p. dois escravos, Manoel e Luiz, os quais têm os sinais seguintes: Manoel de nação, bôa figura, muito barbado, fala grossa, um pouco descansada, olhar carrancudo, muito desembaraçado em todo serviço, é bom serrador, é cavoqueiro, levou vestido de roupa de algodão de Minas usada. Luiz, alto, grosso fulo, fala fina e é um pouco penso para diante quando anda, é filho do Ceará e só trabalha na roça, também levou a mesma vestimenta; quem os apreender e levar à dita fazenda ou na Corte à rua do Rosário nº 67, terá 50$000 de gratificação além das despesas que fizer até ali. Protesta-se proceder criminalmente contra quem lhe der coito; desconfia-se que tomaram a direção da cidade de Vassouras ou outro lugar para estes lados, por isso que o primeiro já aí foi escravo de um senhor que tem diversos escravos no mato a serrar madeira. – Bôa Esperança, 21 de fevereiro de 1859 – José Narciso da Silva Vieira”

Como se vê o modelo dos anúncios de escravos fugidos, tanto na Campanha como em Petrópolis era mais ou menos o mesmo.

Agora vamos à prova de que o escravo fugido ou o do evento ia parar atraz das grades. Está n’ “O Parahyba” de 2 de fevereiro, de 1859, 3ª pág.:

“Pela delegacia de polícia de Petrópolis publica-se que na casa de detenção desta cidade se acha preso por suspeita de fugido o preto Manoel crioulo que consta ser escravo de João Gonçalves Barbosa da Fazenda Passa Tempo adiante de Pedro do Rio”.

E o teor dos anúncios usados para a captura dos escravos fugidos migrou para os que se referiam aos homens livres especialmente colonos desaparecidos.

Aí está um dos aspectos flagrantes dos chamados reflexos psicossociais do instituto da escravidão.

Vamos aos exemplos.

Está na 4ª página de “O Parahyba”, edição de 13 de janeiro de 1859:

“Fugiu no dia 27 do mês próximo passado o africano livre de nome Manoel ao serviço da Superintendência da Imperial Fazenda de Petrópolis, de nação Benguela, idade 20 anos, pouco mais ou menos. Quem o apreender e levar no escritório da mesma superintendência será devidamente gratificado. Superintendência da Imperial Fazenda de Petrópolis, 14 de dezembro de 1858 – Narciso da Fonseca”.

Ora, em tese o africano livre pela sua própria classificação deixava de ser escravo, tornando-se “sui iuris”. Acontece que como os seus serviços eram em geral arrematados por pessoas físicas ou jurídicas, estas de direito público ou privado, criava-se em função das determinantes culturais aplicáveis à espécie um quadro de escravidão disfarçada, que se extrovertia com toda a nitidez em anúncios como o acima transcrito.

N’ “O Parahyba” de 9 de janeiro de 1859 apareceu estampado este anúncio:

“Atenção – Na noite de 26 para 27 do mês próximo passado fugiram da fazenda do Penedo, serra acima, pertencentes a José Antonio de Castilho, dois colonos, João de Souza Amaral e João Baginha, ambos naturais da ilha de São Miguel vindos na galera Dois Amigos, no dia 1º do mês p.p. com os sinais seguintes: o primeiro de idade 23 anos, solteiro, estatura regular, cabelos escuros, olhos pardos, testa regular e pouca barba; o segundo 26 anos, solteiro, estatura regular, barba crescida, porem pouca. Os proprietários da mencionada fazenda engajaram estes colonos para serviço de roça, pelo tempo de 12 meses, pagou-lhes suas passagens como consta da escritura passada no consulado português, no Rio de Janeiro, em data de 13 do dito mês. Não tendo eles prestado o mais pequeno serviço ao locatário, este protesta contra quem os tiver acoitado ou com eles algum ajuste fizer em prejuízo do locatário, que da importância das respectivas passagens e mesmo despesas, lucros cessantes dos serviços que deviam prestar os ditos colonos locadores, protesta proceder com todo o rigor das leis contra quem dolosamente os tiver a título de qualquer forma, porque os passaportes e papéis dos ditos colonos acham-se em poder do proprietário/locatário. Petrópolis, 13 de janeiro de 1859”.

A cultura da escravidão, tão arraigado na mentalidade dos senhores alcançava em cheio a mão-de-obra livre vinda do exterior.

Os comentários a esta peça virão no próximo número.