A TRANSFERÊNCIA DA CAPITAL E DA CORTE PORTUGUESAS PARA O
RIO DE JANEIRO – 1807-1808

Kenneth Henry Lionel Light, associado efetivo, titular da cadeira n.º 1, patrono Albino José da Siqueira

Quando a história do Brasil for escrita, o ano de 2008 será lembrado particularmente por dois motivos: o bicentenário da transferência da capital e da corte portuguesas para o Rio de Janeiro, e o ano que registrou uma significativa mudança na imagem do príncipe regente D. João.

Após as severas perdas sofridas na batalha de Trafalgar, Napoleão decidiu em 1806 que, se seus navios continuassem sendo bloqueados nos seus próprios portos, ele então impediria a entrada de manufaturados ingleses na França e em todos os territórios sob o seu domínio. Para a Inglaterra, esta notícia foi crítica, pois ela dependia da exportação para manter a sua saúde econômica, necessária, por exemplo, para custear a dispendiosa guerra contra o Imperador francês.

Deveria ter sido bastante óbvio para o Conselho de Estado Português – composto de homens inteligentes e bem preparados – que mais cedo ou mais tarde, Napoleão o pressionaria para fechar a última brecha no seu escudo comercial do Continente.

Naquela época, reinava em Portugal, o Príncipe regente D. João – no lugar de sua mãe, a Rainha D. Maria I, que tinha se tornado incapaz. Como Portugal era uma monarquia absoluta, o papel do Conselho era meramente aconselhador.

Em julho de 1807, deu-se início aos preparativos para uma possível jornada ao Brasil: chamando de volta para o Tejo os seus navios que estavam patrulhando o estreito de Gibraltar contra piratas; enviando ordens ao Vice-Rei proibindo a partida de qualquer navio mercante – D. João estava prevendo a invasão de seu país pelos franceses; negociando um tratado com a Inglaterra, para a mesma providenciar uma escolta, pois a esquadra de guerra portuguesa seria transformada em uma esquadra de navios de passageiros e, sendo assim, não teriam condições de se defenderem caso fossem atacados.

Estes cuidados e preparos demorados, não são condizentes com o uso da palavra ‘fuga’, tantas vezes usada por historiadores; foi uma estratégia propositada, bem concebida, e que obteve total sucesso.

A invasão de suas fronteiras pelos exércitos da França e da Espanha, o bloqueio de Lisboa por um esquadrão britânico e a notícia, chegada de Paris, citando o destino que Napoleão tinha reservado para a sua família, deixaram D. João sem opções. No dia 29 de novembro de 1807, ele partiu para o Brasil, levando sua família e a corte.

As pesquisas completadas pelo autor, durante os últimos 15 anos, permitiram aos historiadores – após 200 anos – terem acesso a documentos originais que finalmente, desvendarem os detalhes da viagem. A descoberta dos diários de bordo dos navios ingleses e os relatórios de seus capitães nos permitem – pela primeira vez – reconstruir a jornada, como se tivéssemos ‘com os pés no mar’. (A Viagem Marítima da Família Real, Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2008)

No passado, historiadores escrevendo do ponto de vista da terra tiveram que usar a sua imaginação para descrever o que estaria acontecendo no mar, uma vez que os navios descessem abaixo da linha do horizonte. Como resultado, muito do que foi escrito simplesmente não corresponde à verdade! Um grande número de fatos novos é agora conhecido, com o resultado que, finalmente, podemos responder a muitas perguntas que até então não tinham resposta.

A viagem foi longa e desconfortável, sujeita as habituais tempestades e frustrações – por exemplo, os 10 dias gastos sem avançar devido às calmarias existentes naquela região. A comida era intragável e a higiene precária – não existia nenhum banheiro na nau Príncipe Real que levava uma tripulação de 950 homens e 104 passageiros – incluindo a rainha e o príncipe regente e seus filhos.

Enfim, embora severamente castigados pelas sucessivas tormentas de inverno, que causaram avarias consideráveis, todos os navios chegaram ao seu destino. Isso reflete a qualidade dos oficiais e das guarnições, assim como do projeto e da construção dos navios, e a experiência de vários séculos, navegando regularmente através dos oceanos em condições de tempo variadas.

A chegada a Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808 deve ter sido um alívio. Depois de dar ordens para que os navios fossem reparados e abastecidos com suprimentos e água, D. João assinou a Carta Régia abrindo todos os portos brasileiros às nações amigas. Anteriormente, o comércio do Brasil era restrito a Portugal, mas agora, com aquele país ocupado por tropas francesas e espanholas, não havia alternativa; a pressão dos navios carregados e sem destino para a sua mercadoria, ajudou a tomada da decisão e o cumprimento do tratado com a Inglaterra.

No dia 26 de fevereiro partiram e, após uma curta viagem sem maiores transtornos, chegaram ao Rio de Janeiro em 7 de março de 1808.

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Geoff Hunt RSMA

O impacto sobre a cidade tem sido, penso eu, exagerado. Os navios da esquadra naval chegaram durante um período de dois meses. Sua tripulação com mais de 5.000 homens, não tinha permissão para desembarcar por receio de deserção, mas é claro que necessitariam de mantimentos e água. Muitos dos navios da frota mercante pertenciam a portos de outras cidades e, portanto, nunca vieram ao Rio.

Com a transferência da capital do Império Português para o Brasil, seria apenas uma questão de tempo até que a colônia – o que era em 1808 – se transformasse em reino e depois em império.

Portugal foi a grande frustração nos planos de Napoleão; mais tarde, em exílio, ele teria declarado que a sua fortuna mudou quando ele invadiu Portugal, provocando o início da Guerra Peninsular.

D. João, o primeiro monarca a ter a coragem de atravessar o Atlântico, seria forçado por pressão política, a retornar a Lisboa. Mas seus 13 anos no Brasil deixaram seu marco: o Rio transformado de uma vila acanhada em capital; a união deste país com dimensões continentais assegurada; sua condição de colônia uma lembrança do passado.

Desprevenido, devido a circunstâncias fora do seu controle, para conduzir o seu país durante um dos períodos mais difíceis e perigoso de todos os tempos da história portuguesa, D. João, à sua maneira bem distinta, lenta e ponderada, tomou e implementou as decisões certas – para o seu país e para a sua família. A imagem um tanto ridicularizada, fomentada no passado pela mídia e também em livros “oficiais” didáticos, para crianças na idade escolar, não tem sido repetida e é de se esperar, que de agora em diante, seja algo do passado.

O amor que D. João tinha pelo Brasil se reflete no tratado de separação – assinado com seu filho Pedro em 1825 – pois contém uma cláusula, por insistência dele, reconhecendo-o como Imperador Titular do Brasil. Após esta data, sua assinatura aparece em inúmeros documentos da seguinte forma: João, Rei e Imperador (do Brasil).