REPENSANDO EUCLIDES DA CUNHA
Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, associado emérito, ex-associado titular, cadeira n.º 37, patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima
No transcurso do primeiro centenário da morte de Euclides da Cunha (1866/1909), a perspectiva temporal já permite considerações que vão muito além do comezinho, tantas vezes repetido por preguiçosos e pelos que trabalham à base de tesoura e cola.
Desaparecido aos 43 anos de idade, ele parecia ser o autor de uma obra só “Os Sertões”, que veio a lume numa pequena edição em 1902.
Euclides e “Os Sertões” se amalgamaram de tal forma, que formaram um corpo único, aparentemente indivisível, como se não houvesse mais nenhum Euclides da Cunha além de sua obra maior, pelo volume e pelo conteúdo, sem dúvida das maiores produzidas no Brasil dos novecentos.
Daquela parte aos dias que correm (em 2012 celebrar-se-ão 110 anos da primeira edição de “Os Sertões”) tornou-se comum e corrente confundir-se esta obra com a Guerra de Canudos, como se ela tivesse como escopo tratar desse instigante tema. A vinculação sempre foi inevitável, embora o episódio canudeano tenha servido como pano de fundo para tamanho cometimento literário e científico.
Num artigo intitulado “Imagens de ‘Os Sertões’” publicado na edição de 11 de agosto de 2002 do jornal “Voz de Nazaré”, Bahia, disse o articulista José Augusto Afonso:
“Muito mais do que um relato de Canudos e da figura de Antonio Conselheiro, a obra é uma interpretação explicativa de cunho sociológico de um Brasil diferente, o da caatinga, dos nordestinos miseráveis e excluídos”.
Mais adiante:
“Na verdade Euclides e “Os Sertões” procuraram traduzir uma explicação para um Brasil real que nada tinha a ver com a cultura européia ou os hábitos afrancesados da elite que vivia no eixo Rio – São Paulo”.
Tem-se, por conseguinte, que haveria muito mais Canudos além de “Os Sertões” como muito mais sertão além de Canudos.
No primeiro caso porque as causas apontadas para o conflito no sertão baiano eram equivocadas e serviam apenas para açular os jacobinos ante as teóricas pretensões sebastianistas. Demais, porque o Brasil não soube ou não quis colher as lições canudeanas, tentando abolir ou ao menos diminuir o profundo abismo que separava o país pé duro do país vitrine, onde uma tênue camada de verniz francês disfarçava a grossaria atávica dos pretensiosos litorâneos.
No segundo caso porque o sertão nordestino tem infinitas facetas e relevante complexidade, no qual Canudos foi apenas um tumor que veio a furo.
Daí a importância de “Os Sertões”, onde Euclides da Cunha além de produzir opulenta obra literária num estilo vigoroso e único, faz um trabalho de alto teor científico pautado por metodologia exemplar. Ele começa estudando o meio, depois o homem, desembocando no Dédalo das implicações etno-sociológicas que se desenvolveram no sertão ao longo dos séculos, criando um quadro de violento choque entre os valores de um litoral civilizado em sintonia com os avanços da humanidade e os da caatinga fossilizadora dos que nela sobreviviam.
E Canudos foi o mote dessa copiosa glosa euclideana com a qual o Brasil também não fez coro.
Trinta anos depois da guerra que assolou o sertão baiano, Washington Luiz, Presidente da República, ainda dizia enfaticamente que a questão social era caso de polícia.
E é por causa dessa falta de leitura, de sensibilidade social e de vontade política, que hoje pagamos alto preço pela má qualidade de vida que nos tocou suportar.
Mas também é preciso dizer, para que se promova definitivamente o descolamento de Euclides da Cunha de seu carro chefe literário e científico, que há muito mais Euclides além de “Os Sertões”.
Jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo acolheram inúmeras matérias alicerçadas na enorme erudição do filho de Cantagalo. A “Revista Brasileira” que se editou na Capital Federal na última década do século XIX, de cujo núcleo editorial surgiu a Academia Brasileira de Letras, contém valiosa colaboração de Euclides da Cunha, o mesmo ocorrendo com a “Revista Americana” lançada no início dos novecentos.
E, uma boa parte do legado intelectual de Euclides da Cunha está nos volumes “Contrastes e Confrontos”, “Peru versus Bolívia” e “À Margem da História”, livro editado dois meses depois de sua morte, que portanto completa também o seu primeiro centenário neste ano de 2009.
O que avulta nesta última obra é o olhar euclideano sobre a América do Sul, Brasil inclusive, sobretudo sobre a bacia amazônica, por ele sobejamente conhecida, pelos trabalhos que ali desenvolveu a serviço do Ministério das Relações Exteriores, e sobre a região do Prata.
No primeiro caso, Euclides da Cunha percebeu com bastante antecedência o desastre ecológico que se abateria sobre o arquipélago amazônico, onde o homem chegou antes da hora e sem ser desejado; mostrou como a caudilhagem boçal impediu que peruanos e brasileiros se dessem as mãos para participar de um grande projeto integracionista; pressentiu a importância estratégica do Acre para um melhor diálogo amazônico.
No concernente ao Prata, ele evidenciou uma das facetas mais interessantes a diferençar brasileiros e argentinos, fazendo em períodos curtos e eloquentes o que outros fariam num volume inteiro.
No conceito euclideano, nós brasileiros tivemos que fazer o homem adaptado ao meio, para que ele neste pudesse sobreviver e progredir; enquanto na Argentina o homem “mudou de hemisfério sem mudar de latitudes”. Ali ele encontrou todas as condições favoráveis ao seu desenvolvimento na América, sem praticamente perder as características européias.
Demais Euclides da Cunha visualizou a aproximação do Cone Sul pelo sistema ferroviário argentino, o 10º do mundo na época, um tanto prejudicado pela abertura do canal do Panamá.
E no Brasil, tratando do nosso complexo ferroviário, deteve-se na estrada de ferro Noroeste, que ele chamou de Transcontinental, uma vez que integrada ao sistema chileno-boliviano, nos colocaria à beira do Pacífico, em Arica, norte do Chile, e na torna viagem os naturais da Bolívia e Chile no litoral paulista. Seriam duros cinco dias de viagem, mas a América do Sul estaria conectada de costa à costa.
Quem sabe um dia o sonho euclideano não se realizará?
Repensêmo-lo!