AINDA OS REFLEXOS PSICOSSOCIAIS DO INSTITUTO DA ESCRAVIDÃO

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

A cultura “da lei que não pega” é velhíssima nesses Brasis do salve-se quem puder. Essa marca bem nossa vem do sistema colonial, passou pelo período monárquico e ganhou muita força em todas as repúblicas. O desconhecimento do vastíssimo território brasileiro e das peculiaridades regionais, as dificuldades de comunicação, os diplomas legais feitos ao arrepio da natureza das coisas, a falta de fiscalização e a índole corruptora e corrupta de alguns segmentos da sociedade nacional, tornaram-se suportes suficientes para que “leis não pegassem”, ficando muitas delas em “banho-maria” para no momento oportuno servirem de estribo aos peculatários, chantagistas e achacadores de plantão.

No que concerne à escravidão no Brasil, tanto as leis que a protegiam como as que depois se elaboraram em benefício do elemento servil, foram por razões diversas, aqui e acolá ignoradas, desrespeitadas, burladas, muita vez sob a vista grossa da autoridade competente e quase sempre porque os autores dos delitos e das afrontas estavam fora do alcance do braço da coerção e da justiça. E é preciso que se diga que uns que outros diplomas legais aplicáveis ao instituto da escravidão já continham as válvulas de escape indutoras do desrespeito e da burla.

Foi assim com as leis que aboliram o tráfico, com as do ventre livre e dos sexagenários e com aquela que extinguiu de um golpe a escravidão no país. Os exemplos são facilmente pinçáveis nos noticiários e anúncios de jornais, nos testamentos e inventários, nas crônicas e manifestos abolicionistas, nas resenhas policiais e até nos relatórios de presidentes de províncias.

Não bastassem os insultos à legislação pertinente ao tema em estudo e ainda teriam que ser consideradas as decorrências psicossociais do instituto da escravidão, oriundas em grande parte da multissecular relação senhor/escravo. Na cabeça do senhor, uma vez escravo sempre escravo e até os serviçais ainda que assalariados, incluídos nesse rol os provenientes da política de colonização, eram vistos como se elementos servis fossem, porque o temor reverencial, a subalternidade, a dependência econômico-financeira e o trabalho braçal eram estigmas insuperáveis aos olhos dos que detinham os cordéis do mando, fossem privados ou oficiais.

Qualquer africano que fosse apanhado andando ao acaso pelas ruas ou estradas era suspeito de ser escravo e a polícia tinha ordem de capturá-lo para averiguações. Mutatis mutandis, ainda nos dias que correm são evidentes nas várias latitudes brasileiras, mormente naquelas em que foi muito forte o instituto da escravidão, as discriminações sofridas pelos agora chamados afro-descendentes, presos pela presunção de terem praticado algum deslize, só pelo fato de serem negros.

No folclore do preconceito está registrado:

Branco quando corre
É atleta campeão;
Negro quando corre,
Pega, pega que é ladrão.

Esse caldo de cultura escravista remonta pelo menos a 1835.

Em 28 de novembro daquele ano, o Ministro da Justiça Antonio Paulino Limpo de Abreu, respondendo a um ofício do Chefe de Polícia da Corte datado de 15 do mesmo mês, determinou o seguinte:

“…logo que se apreenderem pretos fugidos, que se presumam ser escravos, deve Vm. imediatamente mandar não só publicar pelas folhas periódicas os sinais dos mesmos, para que possam aparecer os senhores, mas também proceder ex ofício pela polícia a verificação de seu estado, no caso deles declararem que são forros, tirando informações pelos lugares, onde eles disserem que residiam e fazendo todas as outras indagações que forem concludentes ao esclarecimento do fato…” (grifo nosso).

Agia-se pois e segue-se agindo à base da presunção. A condição social e a cor da pele ensejavam e ensejam a suspeição. Tanto é verdade que o povo tem como certo que a cadeia no Brasil foi feita para pobres e negros, o que muita vez é apenas uma soma de fatores.

A lei de 7 de novembro de 1831 determinou no seu artigo 1º que todos os escravos que entrassem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, seriam considerados livres.

E no artigo 2º ficou claro que esses escravos deveriam ser reexportados para qualquer parte da África, reexportação que o governo brasileiro efetivaria com toda a brevidade possível, envidando esforços junto às autoridades africanas para que os negros obtivessem asilo.

Se o escravo ao entrar no território nacional ficava livre, perdia a condição de mercadoria para assumir a de titular de direitos. Portanto não se deveria falar em reexportação e sim em repatriamento.

Essa foi a tão famosa lei feita para “inglês ver” e que na prática não tinha qualquer condição de ser observada pois o Brasil não estava preparado ainda para prescindir do braço escravo. E o exame dela vai demonstrar que o seu texto contém imprecisões e evasivas. Por exemplo – “reexportar com a maior possível brevidade” é puro engodo, pois para começar, como dizia Gonçalo de Vasconcellos, breve não é prazo. E a experiência demonstrou exatamente que a lei “não pegou”.

Ela foi regulamentada pelo decreto de 12 de abril de 1832. O artigo 5º dessa regulamentação equiparava o escravo ao liberto, os quais seriam imediatamente postos em depósito, ficando os importadores obrigados a depositar a importância julgada necessária para pagar a reexportação de tais africanos sob pena de indisponibilidade dos bens dos mesmos importadores. Onde estava pois a liberdade do negro que chegasse ao Brasil depois da lei de 7 de novembro de 1831? O cotejo desta com o regulamento de 1832, sobre indicar graves contradições, fazia crer que o Brasil não queria receber nem aqueles que aqui chegassem já na condição de escravos e que teriam que ser considerados livres, nem os libertos, que em princípio seriam livres de pleno direito. E isto antes da revolta dos Malés na Bahia, em janeiro de 1835, quando as coisas se complicaram bastante, já agora pelo perigo das insurreições que poderiam generalizar-se.

Mas como tudo era de mentirinha, “para inglês ver”, a história haveria de revelar a abominável instituição da escravidão disfarçada que medrou e se desenvolveu à sombra dos dispositivos legais que não pegaram.

Muito oportuna e sugestiva é a resposta do Ministro da Justiça Aureliano Coutinho datada de 27 de agosto de 1834 ao ofício do presidente da província da Bahia:

“Levei ao conhecimento da Regência em nome do Imperador o Snr. D. Pedro II o ofício de V. Excia. datado de 24 do mês passado, pedindo providências acerca do destino que devem ter os africanos apresados por contrabando no caso de serem julgadas justas as apreensões e que as despesas que a nação está fazendo com tais africanos sejam aprovadas e, tenho de recomendar a V. Excia., em resposta ao dito ofício, que não podendo ainda ser exatamente cumprida a lei de 7 de novembro de 1831 que os manda reexportar para a costa d’ África, por isso que na sua execução se têm encontrado alguns obstáculos, enquanto a Assembléia Geral não os remover, V. Excia. empregará esses africanos, com as cautelas daquela lei e do decreto regulamentar de 12 de abril do ano subseqüente, nas obras públicas dessa província, como determina o alvará de 26 de janeiro de 1818…” (grifo nosso).

Isso valia dizer que durante três anos nenhum negro chegado ao Brasil após a proibição do tráfico havia sido reexportado; nenhum havia conquistado efetivamente a liberdade na forma da lei de 7 de novembro; e agora vinha o governo através de uma decisão do Ministério da Justiça, sem qualquer base legal, dar um destino aos negros contrabandeados mantendo-os como escravos.

Em breve tal solução generalizou-se pelo país.

Nesse processo de crescente transgressão patrocinado pelo próprio poder público, o decreto de 19 de novembro de 1835 aprovou e mandou que se executassem as instruções de 29 de outubro de 1834 referentes à arrematação dos serviços dos africanos ilicitamente introduzidos no Império.

Tais africanos, rotulados de livres, o eram só no nome pois as tais instruções não davam tanta certeza disso.

Elas deixavam claro:

1º – que só poderiam arrematar os serviços dos africanos livres pessoas “de reconhecida probidade e inteireza”;

2º – que os africanos eram considerados incapazes e por isso tinham um curador;

3º – que apesar de serem tidos como livres, iam servir em troca do sustento, vestuário, tratamento e “mediante um módico salário que seria arrecadado anualmente pelo Curador, depositado no cofre do Juízo da arrematação” e que funcionaria como ajuda de custos no caso da reexportação quando esta ocorresse;

4º – que no caso da fuga de um deles deveria o arrematante dar parte ao Juiz de Paz do seu distrito e ao Chefe de Polícia “para a expedição das ordens necessárias para a sua captura”. (grifo nosso)

Aqui o chamado africano livre equiparava-se totalmente ao escravo, daí o anúncio que “O Parahyba” publicou na edição de 13 de janeiro de 1859 a respeito de um africano livre a serviço da Superintendência da Imperial Colônia de Petrópolis, e que foi estampado na primeira parte deste trabalho (ver o nº 1 do Boletim do IHP).

Escravidão disfarçada com foros de legalidade; abominável caldo de cultura a contaminar o tecido social brasileiro década após década, atingindo até as correntes migratórias européias que aqui chegaram no esplendor de sua liberdade.

O anúncio que “O Parahyba” publicou em 9 de janeiro de 1859 a propósito de dois ilhéus portugueses que deixaram a fazenda do Penedo na noite de 26 para 27 de dezembro de 1858, de certo porque ali deviam receber o mesmo tratamento dispensado aos escravos, demonstra claramente que o feitio e a terminologia do reclame eram os mesmos impostos pela lei no caso da fuga do elemento servil.

Examinemos o texto:

1º – o reclamante diz que os colonos João de Souza Amaral e João Baginha lhe pertenciam;

2º – o suplicante fornecia os sinais característicos dos dois açorianos, conforme o procedimento em relação aos escravos;

3º – o locatário dos serviços daqueles braços livres protestava “contra quem os tivesse acoitado”, expressão esta usada amiudadamente no caso dos servos fujões, significando acoitar, esconder, homiziar;

4º – o proprietário da fazenda declarava sem rodeios que havia retido passaportes e papéis dos colonos, o que os fazia seus reféns, a exemplo do que sempre representou o cambão no interior brasileiro.

A escravidão disfarçada ainda é uma força neste país e ela tem muitas facetas que somente a educação e o respeito ao trabalho alheio hão de apagar.