ANJINHOS DO VELHO GINÁSIO FLUMINENSE (OS)

Gabriel Kopke Fróes, Fundador, Patrono da Cadeira n.º 18

Foi em meio à alegria geral da população petropolitana que, a 15 de março de 1899, começou a funcionar o Ginásio Fluminense no Palacete Mauá, à Avenida Piabanha. Criado pela lei estadual nº 285 de 3 de março de 1896, somente três anos depois, como se vê, seria instalado.

Breve, porém, apareceriam os primeiros “espetos”.

As imediações do Ginásio, compreendendo a Avenida Piabanha, o Palácio de Cristal e as ruas 13 de Maio, 7 de Abril e Montecaseros, foram transformadas em verdadeiro pandemônio. Terminadas as aulas, os colegiais, ou permaneciam defronte ao Ginásio, dirigindo pilhérias aos transeuntes, principalmente aos passageiros e cocheiros dos carros e carroças; ou se organizavam em bandos, indo para aqueles logradouros pregar peças as mais irreverentes aos negociantes ali estabelecidos.

E não havia para quem apelar, porque os outros diziam: travessuras próprias da idade …

Algumas vezes, porém, surgiam casos mais ou menos sérios que exigiam a intervenção dos dirigentes do estabelecimento e quiçá de outras autoridades …

Certa feita, por exemplo, quando se achava na Avenida Piabanha a turma do macadame da Municipalidade a recompor o calçamento, cismaram os colegiais, de dentro do galpão de ginástica, atingir os pobres trabalhadores com toda a sorte de projéteis encontrados à mão. A princípio, como todos faziam, os calceteiros não deram atenção à provocação; mas às tantas, esgotaram a paciência e passaram à ofensiva: os meninos haviam esquecido que suas vítimas estavam em cima de uma caixa de pedras soltas …

Este outro caso provocaria, nada mais nem menos, do que a demissão do primeiro diretor do estabelecimento. Vizinha do Ginásio, à Rua Piabanha, havia a famosa chácara de madame Binot, respeitável senhora que aliava à cultura de orquídeas e cataléias, o “hobby” da criação de patos. Criava-os em casa, mas, a certas horas, soltava-os no rio e os palmípedes nadavam até longe, indo fazer evoluções em frente ao Ginásio. Ora, um dia, a rapaziada que já andava de implicância com madame Binot, resolveu implicar também com seus patos. E inventou uma brincadeira inocente: tiro ao alvo, com pedradas, na cabeça dos palmípedes. Mal começara o bombardeio, justamente os mais gordos e bonitos patos estavam emborcados ao sabor da correnteza das águas. Resultado: Madame Binot, logo após, sobraçando meia dúzia das pobres vítimas, entrava na Portaria para queixar-se da maldade.

O diretor do estabelecimento, o provecto educador dr. José Júlio da Silva Ramos, brasileiro de Pernambuco educado em Portugal, suspendeu imediatamente o recreio, mandando que todos os alunos se recolhessem ao salão. Lá, dirigiu, como era seu hábito, verdadeiro discurso aos rapazes, invectivando-os pelo ato praticado e concitando-os a procederem bem. Deveriam mostrar-se educados, recomendando com seu procedimento, o bom nome das próprias famílias e o educandário que frequentavam. Na peroração, declarou textualmente: E quem exige que os senhores assim procedam não sou eu; não são os seus professores; não são seus pais: é a lei que é soberana, é a lei que a todos obriga. Carregou tanto o sotaque que a “lei” se transformou em “lai” …

Foi aí que um aluno mais ousado, lá do fundo do salão, fez eco das últimas palavras: é a lai, é a lai! …

Sem dizer palavra, o diretor desceu do estrado, retirou-se da casa e, naquele mesmo dia, renunciou ao cargo.

Num dos últimos dias do século XIX, a moçada, na forma do hábito, estava reunida nas imediações do ginásio a dirigir gracejos aos transeuntes. Estes davam de ombros e iam andando. Eis, porém, que aparece o carro do Barão de Pedro Afonso, sem o Barão, mas tendo à boléia, todo empertigado, o “Caveira”, um cocheiro que já pelo apelido não se recomendava muito. Alvo da chacota dos ginasiais, o “Caveira” reagiu com palavrões, mas seguiu seu caminho.

Passado, no entanto, algum tempo, surge, de novo, o carro do Barão, agora com um latagão de meter medo sentado na boléia, ao lado do “Caveira”.

Parando o carro, acintosamente, defronte ao grupo, o “Caveira” desandou a ofender todo o mundo com palavras do mais baixo calão, desafiando qualquer um à luta corporal. A seu lado, o latagão sorria …

Pois foi, talvez, o mais mirradinho dos colegiais que se destacou do grupo para responder pelos colegas. Com muita lábia o rapazelho convence o cocheiro a descer lá de cima e quando o covarde, trazendo às mãos uma barra de ferro, investe … ai do “Caveira”, o menino era o Mário Tapajós!

Abaixando-se, o Mário evita o golpe tremendo que lhe é desfechado e, no mesmo instante, ganhando impulso, aplica com incrível agilidade, certeira cabeçada à altura do estômago do agressor que vai a nocaute.

Enquanto isso, o outro brutamontes, pretendendo socorrer o companheiro, também saltara da boléia, mas coitado! … Seu quengo foi pequeno para as bengaladas que recebeu.

E o que, a seguir, se viu foi os dois “valientes” – um coçando a cabeça e outro a barriga – galgarem de qualquer maneira a boléia e tocarem, de volta, a toda a velocidade, o carro do Barão de Pedro Afonso!

O jovem Paulo Campos Sales, filho do Presidente da República, matriculara-se no ginásio. E como todo o rapaz granfino da época, lá apareceu com bonito chapéu e a clássica bengala. Deixou ambos os pertences na Portaria e à tarde, terminadas as aulas teve a surpresa de encontrá-los crivadinhos de uma estranha espécie de selos ali colados, às escondidas, pelos colegas de Paulo …

Há um corre-corre generalizado, com contínuos e até professores tentando descolar os selos do chapéu e da bengala de sua alteza presidencial.

Esclareça-se que os tais quadradinhos coloridos eram as estampilhas do imposto de consumo recém-criado pelo dr. Campos Sales, as quais enfeitavam, sob a curiosidade popular, tudo que era exposto à venda: sapatos, roupas, chapéus, cigarros, fósforos, bengalas, etc, etc.

A brincadeira dos garotos, embora todo o esforço dos dirigentes, provocou, no entanto, uma encrenca dos diabos. Logo no dia seguinte, o próprio presidente Campos Sales compareceu ao Ginásio para queixar-se daquilo que, declarou indignado, era um acinte à lei e um deboche ao governo.

Foi, somente, com a promessa do diretor do estabelecimento de agir pronta e energicamente que o Presidente se acalmou e retirou-se do Palacete Mauá, retornando o carro que ficara à sua espera na entrada principal.

Após um passeio pela cidade, o dr. Campos Sales voltou ao Palácio e recolheu-se aos seus aposentos.

Só, então, é que os cocheiros puderam perceber que toda a traseira do belo carro presidencial estava coberta dos tais selos do imposto do consumo!

Fora com o carro assim enfeitado que o Presidente da República passeara pela cidade …

Eta, garotada braba!

Em meado de 1901, assumiu a direção do Ginásio o dr. Raimundo Correia, professor ilustre, poeta inspirado, magistrado íntegro e chefe de família exemplar.

Tendo a favorecê-lo a bela barba que usava, o dr. Raimundo Correia cuidou de exercer o novo cargo com a maior austeridade possível, pois sabia bem com que alunos ia lidar …

Dentro em pouco, o novo diretor se havia imposto ao respeito e à estima de professores e alunos e tudo parecia correr num mar de rosas.

Eis, porém, que, a 3 de agosto de 1901, “Gazeta de Petrópolis” publicava em sua primeira página o seguinte soneto:

BEIJOS DO CÉU

Sonhei-te assim, oh minha amante, um dia:
Vi-te no céu; e, enamoradamente,
De beijos, a falange resplendente
Dos serafins, teu corpo inteiro ungia …

Santos e anjos beijam-te … Eu bem via!
Beijaram todos o teu lábio ardente:
E, beijando-te, o próprio Onipotente,
O próprio Deus nos braços te cingia!

Nisto, o ciúme – fera que eu não domo …
Despertou-me do sono, repentino …
Vi-te a dormir tão plácida a meu lado

E beijei-te também, beijei-te e ai! como
Achei doce o teu lábio purpurino,
Tantas vezes assim no céu beijado!

Raimundo Correia

No dia seguinte, os versos andavam de mão em mão no Ginásio, provocando zombaria entre alunos e estupefação entre professores …

– Então, santarrão de pau oco! …

– Façam o que eu digo e não o que eu faço! …

Eram estas as frases irônicas ouvidas no seio da rapaziada.

Entretanto, o dr. Raimundo Correia dirigira carta ao redator da “Gazeta de Petrópolis”, manifestando sua contrariedade pela publicação do soneto feito sem ciência prévia do autor. Reclamava uma declaração a respeito, enquanto que o redator alegava não ter agido com segundas intenções, tendo-se limitado a fazer a transcrição de um jornal da Bahia.

O caso foi que o diretor do Ginásio e o redator da “Gazeta” ficaram de relações estremecidas. Mas, cá entre nós: a publicação do tal soneto, não está na cara? Só pode ter sido obra de um daqueles anjinhos sem asas do Ginásio Fluminense …

Mas, afinal, quem foram aquelas endiabradas criaturas que arrastaram nossos avós pela rua da amargura?

Ei-los, alguns, e não desmaiem: Abelardo Marques Batista Leão, Alcindo Figueiredo Baena, Ataide Parreiras, Aires Maia Monteiro, Bartlett James, Leopoldo e Roberto Duque Estrada, Manuel Joaquim Moreira da Fonseca, Raul David Sansom, João e Frederico Teixeira Soares, Carlos Newlands, Edmundo Miranda Jordão, Fernando Barros Franco, Tarquinio de Souza Junior, Alvaro Martinho Morais, Armando Palhares Aguinaga, Gastão Cruls, Jorge e Paulo Franco, Salvador e Antônio Fróes, Jorge Pereira de Andrade, Luís e Mário Tapajós, Maurício de Lacerda, Maurício e Eugênio Gudin, Luciano Gualberto, Aniceto e Ulysses de Medeiros Corrêa, Itabaiana de Oliveira, etc, etc.

Entre êles …