O ARQUIVO BORBÔNICO DE NÁPOLES E A SUA HISTÓRIA

Carlos Tasso de Saxe-Coburgo e Bragança (Dom), associado correspondente

Falar de arquivos é sempre um argumento difícil, sobretudo por quem como eu não é arquivista.

Peço portanto aos amáveis ouvintes que não aguardem um desfile de fascículos, dossiers, pastas e documentos.

Desejo, antes de mais nada, apresentar os detentores do arquivo em questão, fazendo uma introdução, que possa posicionar do ponto de vista histórico a presente comunicação.

Será somente um tênue fio que nos levará do momento da passagem do Vice-Reinado espanhol e da ocupação austríaca ao Reino das Duas Sicílias até ao seu desaparecimento.

Temos que omitir, por falta de espaço, muitíssimos acontecimentos políticos importantes desse período a fim de seguir exclusivamente a continuidade da família real e a preservação dessa valiosa documentação.

O dia 10 de maio de 1734 foi um dia importante para Nápoles. Concluíam-se vinte sete anos de ocupação da Áustria, que foram precedidos por dois séculos de Vice-Reinado espanhol.

Esta data mudou o destino do Reino das Duas Sicílias e Nápoles voltava a ser uma capital. Era um reino autônomo e independente apesar da tutela de Madrid.

O novo rei foi Carlos, filho de Philippe V da Espanha e de Elisabetta Farnese. Tinha apenas 18 anos e foi originariamente Duque de Parma e Piacenza. O jovem Carlos encontrou um reino saqueado e em grande desordem, mas ele se jogou de corpo e alma nesta tarefa, para o saneamento do estado.

Casou com 22 anos com Maria Amália, filha do Rei da Saxônia, que tinha no momento da assinatura do contrato matrimonial 14 anos.

Tiveram 13 filhos.

Carlos trouxe para Nápoles o precioso arquivo, repleto de valiosos pergaminhos, todas as coleções e tesouros artísticos herdados dos Farnese, começando as construções mais imponentes, que ainda hoje enfeitam o ex-reino.

Podemos mencionar o “Albergo dei poveri”, onde centenas de deserdados encontraram abrigo, assim como os palácios de Portici e Capodimonte.

Foi um bom rei, mas com a morte do meio irmão Ferdinando VI foi chamado a reinar sobre a Espanha com o nome de Carlos III.

A sua aventura napolitana acabou, depois de 20 anos em 6 de outubro de 1759 com a sua abdicação e a investidura do herdeiro.

Foi um homem justo e honesto.

Antes de embarcar, entregando aos ministros as jóias da coroa, tirou um anel do dedo, encontrado nas escavações de Pompéia, dizendo: “este também pertence ao Estado.”

O herdeiro foi Ferdinando IV, um menino de oito anos. Foi entregue a uma regência de oito membros, que deveria curar da sua educação física, intelectual e moral, sob a égide de Bernardo Tanucci.

Tanucci pegou firmemente nas mãos as rédeas do governo e com a maioridade de Ferdinando o Conselho da Regência foi transformado num Conselho do Estado.

Tanucci, com a desculpa das muitas ocupações, não cuidou minimamente da educação do jovem monarca.

O tutor do jovem rei, o Príncipe di Sannicandro se preocupava somente que tivesse boa saúde, que estivesse o mais possível no ar livre e que se dedicasse às caçadas e à pesca.

William Hamilton, Embaixador inglês, relatava para Londres, que o jovem rei não tinha professores capazes e nem tutores, que poderiam inspirar-lhe idéias dignas da sua posição.

Crescia na ignorância, falando o dialeto napolitano, que tornou-se quase a língua da corte, o que o tornou muito amado pelo povo.

Casou com Maria Carolina, filha da Imperatriz Maria Theresia da Áustria.

Foi a sua sorte, pois foi ela que tomou as rédeas na mão e influenciava abertamente as decisões do rei.

Napoleão dizia que Maria Carolina era o único homem na casa de Bourbon.

Anos difíceis estavam reservados a Nápoles e ao reino.

Seria demasiadamente comprido, mencionar os acontecimentos que Ferdinando e Maria Carolina tiveram que suportar.

Tiveram que deixar Nápoles e se exilar na Sicília, por volta de 1799.

Criou-se então o Reino de Sicília com Ferdinando rei, que assumiu o nome Ferdinando III.

O estabelecimento de Murat como Rei de Nápoles de 1806-1815 foi também um triste acontecimento. Murat todavia praticou muitas reformas administrativas e sociais.

Finalmente o Congresso de Viena entregou novamente o reino a Ferdinando que foi Rei de Nápoles como Ferdinando IV, III da Sicília e foi feito Rei das Duas Sicílias como Ferdinando I.

A “vox populi” em Nápoles murmurava: “Fosti quarto, fosti terzo, ori t’intitoli primero. Se continui nello scherzo, finirai per esser zero.”

Os Sicilianos se divertiam menos, pois esta mudança significava para eles a perda da autonomia da ilha.

Ferdinando I teve um longo reino e entrou na história, pela sua saliência nasal, com o apelido de “Re Nasone”.

Faleceu em 1825, poucos dias após uma das suas caçadas.

O herdeiro, Francisco I já estava aproximando-se do meio século, e era pai de uma numerosa família. Foi casado duas vezes. A primeira vez com a sobrinha da mãe, a Arquiduquesa Maria-Clementina, que foi o grande amor da sua vida e também venerada pelo povo napolitano.

A segunda mulher foi Maria-Isabel da Espanha, sobrinha desta vez do lado paterno.

Francisco I foi um hábil negociador com a Áustria e as demais grandes potências.

Foi um conservador, tendo o seu reinado durado somente 5 anos.

Antes de entrar no argumento principal dessa comunicação precisamos acabar com a relação dos reis, que deixaram e aumentaram consideravelmente este patrimônio histórico, verdadeira fonte para a história européia da época.

A sorte quis que a preciosa documentação tivesse sido conservada com desvelo mesmo durante a ocupação francesa e austríaca.

O sucessor de Francisco I foi o seu filho mais velho, Ferdinando II. Este foi sem dúvida o membro mais capaz da dinastia borbônica em Nápoles.

Deixou um país rico, adiantado e respeitado.

O primeiro trem da Itália se deve ao seu governo, assim como o primeiro selo postal, a primeira companhia de navegação a vapor e o primeiro telégrafo elétrico.

Muitas outras foram as inovações como casas para os pobres, hospitais e escolas.

Ao mesmo tempo a administração foi ordenada, assim como o Arquivo Real, detentor dos preciosos documentos, sejam relativos ao reino, como relativos à Espanha, ao Vaticano, Portugal, Inglaterra e estados italianos da época.

Ferdinando reordenou a marinha, que chegou a ser uma das mais avaliadas da Europa. Através do exército, manteve, com mão de ferro, a ordem, não admitindo insurreições inspiradas pelos carbonários de Mazzini.

Isto lhe valeu o apelido de “Re Bomba”.

Casou duas vezes. A primeira mulher foi Maria-Christina de Sabóia, que lhe deu o herdeiro e a segunda foi a Arquiduquesa Maria Theresa.

O seu longo reinado foi dos mais profícuos.

Por ocasião da sua morte em 1859, o filho Francisco II teve que enfrentar as invasões de Garibaldi e de Vittorio Emanuele de Sabóia, o rei do Piemonte.

Certamente Francisco II ainda não estava preparado para uma incursão desta espécie, feita sob o pretexto da unificação da Itália e apoiada sorrateiramente por Napoleão III.

Após sérios combates, apesar dos piemonteses terem vergonhosamente corrompido muitos oficiais borbônicos, Francisco II teve que se retirar com a mulher, a Rainha Maria, irmã da Imperatriz Elisabeta da Áustria, na fortaleza de Gaeta.

O Rei entregou Nápoles com medo de causar muitas mortes entre a população civil.

Isto foi uma sorte também, pois muitas preciosas obras de arte foram salvas.

Vários meses durou o cerco de Gaeta, canhoneada dia e noite.

Com notável heroísmo, ele e a Rainha, se mantiveram entre as tropas.

Eu vos cansei com esta longa introdução histórico-genealógica dos proprietários do arquivo, mas era necessário mostrar também a passagem do mesmo através os trágicos momentos daquele tempo.

A natureza do arquivo, a sua complexidade é estritamente ligada ao desenvolvimento do estado borbônico, a estrutura administrativa e aos contatos diplomáticos do mesmo.

No primeiro período borbônico de 1734 a 1806 a evolução política, social e administrativa é caracterizada pelas reformas.

A única Secretaria (ou Ministério) existente naquele tempo era a Secretaria da Casa Real.

Até então a administração e também a justiça era conduzida, podemos dizer ditatorialmente, por Bernardo Tanucci.

Realizou-se em seguida uma ampliação dos encargos chamados “Affari di Stato”, que compreendiam os assuntos eclesiásticos, da guerra, da marinha e da administração geral.

Seguiram o Secretariado do Exterior, Graça e Justiça, da Polícia e da “Azienda Generale Jesuítica” para cuidar da administração das propriedades sequestradas aos jesuítas.

Os 10 anos de gestão francesa marcaram uma transformação radical na administração e um agravamento na economia.

O segundo período borbônico naturalmente é caracterizado por uma reelaboração, e às vezes a supressão das estruturas administrativas introduzidas por Murat.

O dinâmico Rei Ferdinando II havia conseguido saldar completamente o débito público, não deixando de lado novos investimentos e a modernização do país.

O arquivo da Casa Real naturalmente é um reflexo de todos os atos públicos e de transformação do país.

Muito ampla é a correspondência pessoal e diplomática e familiar em geral, com a casa real portuguesa, naturalmente com a espanhola e com todas as demais dinastias européias.

Certidões, diplomas, decretos, tratados diplomáticos, não somente do Congresso de Viena, formam um conjunto imponente.

Eu tive a sorte de adentrar-me neste meandro, ainda jovem em 1958 e no começo deste ano, o que me permitiu colher informações sobre esta estrutura notável e do seu conteúdo.

Notei a perfeita conservação, o fácil acesso e um pessoal competente.

Naturalmente, como em qualquer instituição, não existem somente os momentos felizes, mas também as trágicas perdas.

Assim durante um bombardeio e consequente incêndio em 1943 perderam-se 791 importantes pastas.

Naquele tempo, por sorte, não todo o arquivo real estava em Nápoles, escapando dos bombardeios.

Uma parte havia sido evacuada para uma localidade perto de Nola, onde, todavia, uma parte foi incendiada pelas tropas alemãs, que se estavam retirando.

Queimou uma parte do arquivo da chamada “Secretaria Antiga” .

O arquivo foi em seguida enriquecido com a transferência dos arquivos existentes nos vários palácios reais como os de Caserta, Portici, Capodimonte e o do palácio real no centro da capital partenopéia.

A odisséia e a fortuna do arquivo começa em 1860, quando Francisco II levou consigo 70 enormes caixas da parte mais importante para Gaeta e em seguida para Roma, onde ele foi acolhido por Pio IX.

Os Bourbon de Nápoles possuíam na “Cidade Eterna” o magnífico Palácio Farnese, hoje Embaixada da França. Lá eles e o arquivo conseguiram um seguro abrigo.

Francisco II de Roma fez ainda tentativas para recuperar a coroa, apelando para as grandes potências, inclusive com o apoio de Pio IX, grande amigo da família.

Tudo isso se revelou em vão.

Antes da tomada de Roma pelos piemonteses, esta preciosa documentação, que incluía os famosos pergaminhos do tempo dos Farnese, foi translada para Alemanha.

As tropas dos Sabóia já estavam ameaçando o Papado e naquela ocasião Francisco II achou prudente evacuar os seus poucos haveres e o arquivo para Munique.

Na Baviera, na terra da Rainha, estaria seguro.

O arquivo foi instalado em Munique, numa casa na Blüthenstrasse, e arrumado em 44 armários.

Francisco II faleceu na então Áustria, na localidade de Arco, perto do lago de Garda, em 1894.

Devemos notar que os Sabóia em Nápoles, não somente se apoderaram da famosa pinacoteca que os Bourbon haviam herdado dos Farnese, mas também dos objetos particulares da família.

As propriedades imobiliárias também foram expropriadas, sem a menor indenização.

O país sofreu um verdadeiro saqueio e foi tratado como uma colônia.

Os Bourbon ficaram pobres, e assim é comovedor ver como quiseram levar em primeiro lugar as suas cartas, os seus documentos, podemos dizer a sua história.

Francisco II pode ter sido pouco hábil em conduzir o seu governo, mas foi de uma absoluta retidão e honorabilidade.

O seu sucessor dinástico foi o seu meio irmão o Conde de Casérta, pois não teve filhos.

Em 1939 o então diretor do Arquivo de Nápoles, o Conde Filangieri, teve noticia da existência dessa importante documentação.

Começou a entabular um contacto com o então Chefe de Casa, o Duque de Calábria, pois o estado italiano tinha desejo de adquirir este precioso acervo.

Sobreveio a segunda guerra mundial, enquanto as tratativas ainda estavam em curso.

O Duque de Calábria decidiu transferir o tombo, que durante 80 anos esteve fechado nos velhos armários em Munique, para o interior no Castelo de Hohenschwangau, de propriedade da Casa da Baviera.

A mudança estava-se realizado, era quase a fase final, quando as bombas destruíram a casa onde estava ainda uma quarta parte do acervo.

Em 1946, o novo governo italiano enviou outra vez Filangieri, para examinar a consistência da parte supérstite e para fazer um inventário.

Após longas tratativas, em sete de agosto de 1953, o arquivo voltava a Napóles após 93 anos de ausência.

A história desse arquivo foi movimentada, sofreu nas invasões e a guerra o feriu cruelmente.

O governo italiano todavia, mesmo não sendo demasiadamente generoso na manutenção dos arquivos em geral, providenciou uma meticulosa reorganização do Arquivo Borbônico.

Este hoje é distribuído em XXXIX departamentos, os quais se dividem em 1818 secções.

Grande relevo tem o departamento relativo ao Arquivo Farnese, que atinge a idade média.

Encontramos na parte relativa ao século XIX, a administração da Casa Real, a Marinha, o importante setor diplomático com os tratados internacionais e o setor das embaixadas e legações.

Os comandos militares e a estruturação do exército e da polícia ocupam uma parte relevante.

Importante secção é relativa à Santa Sé e à da administração dos bens eclesiásticos.

Um setor do maior interesse é o chamado “Archivio riservato di Ferdinando II”, o qual manteve uma imponente correspondência com os ministros e com os membros da família.

Esta última era, em parte cifrada. A vasta relação dos vários membros da família, com o parentesco de outras dinastias, também é significativa.

Muitas são as missivas, entre outras, as de Dom João VI, de Dona Carlota Joaquina e do Infante Dom Sebastião de Bourbon e Bragança.

Naturalmente encontramos dezenas e dezenas de contratos matrimoniais e dotais, inclusive aqueles de Dom Pedro II com Dona Theresa Christina. Numerosas são as cartas de Dona Theresa Christina aos irmãos, sobretudo ao Rei Ferdinando II, mas sem um valor histórico, pois são missivas de felicitações para os aniversários ou as festas de Natal ou pascais. Notamos que a Imperatriz era muito cauta em sua correspondência. Notamos muitas cartas cifradas dirigidas aos representantes diplomáticos do Reino das Duas Sicílias no Brasil. Infelizmente falta a “chave” para a leitura.

Um outro departamento conserva a documentação das escavações de Herculano e Pompéia, já iniciadas sob o reino borbônico.

O arquivo é instalado num antigo convento, e naturalmente, como em qualquer tombo, o espaço é extremamente reduzido, mas o ambiente é dos mais sugestivos.

Devemos dizer que o arquivo borbônico de Nápoles é hoje um dos mais preciosos da Europa, relativo, sobretudo aos Farnese, apesar das graves lesões sofridas. A parte relativa ao Brasil necessitaria um exame mais profundo, pois à primeira vista os documentos examinados não vão trazer novidades fundamentais.

Ilustre Presidente, eminentes Confrades, eu quis com esta modesta comunicação participar aos historiadores desta casa a minha visita ao arquivo de Nápoles e sublinhar o valor que o mesmo tem para história européia em geral e em particular para aquela de Portugal e do Brasil.

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