O ARQUIVO HISTÓRICO DO MUSEU IMPERIAL A SERVIÇO DAS CIÊNCIAS

Maria de Fátima Moraes Argon, Associada Titular, Cadeira n.º 28 – Patrono Lourenço Luiz Lacombe

Os arquivos e coleções (1) que formam o acervo do Arquivo Histórico do Museu Imperial (2) não são especializados no tema Medicina e/ou Saúde, entretanto, há informações relevantes na documentação referentes a invenções, procedimentos médicos, saúde pública etc.

(1) Arquivos: Conjunto de documentos que, independentemente da natureza ou do suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas. Coleções: Reunião artificial de documentos que, não mantendo relação orgânica entre si, apresentam alguma característica comum. Ana Maria de Almeida Camargo e Heloísa Liberalli Belloto. Dicionário de Terminologia Arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, Núcleo Regional de São Paulo/Secretaria de Estado de Cultura, 1996.

(2) Instituição subordinada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN/MinC.

O acervo é formado por 54 arquivos e coleções que pertenceram a pessoas que atuaram na vida política, social, econômica e cultural do período monárquico, ocupando cargos relevantes na administração pública e papel importante na esfera da vida privada.

Destaca-se, entre eles, o arquivo particular da Família Imperial, denominado Arquivo da Casa Imperial do Brasil (1249 a 1940), doado ao Museu Imperial por D. Pedro Gastão de Orleans e Bragança, em 1948. D. Pedro II declarou, em seu diário de 1862, que nascera para consagrar-se às letras e às ciências, e Guilherme Auler (3) salienta “É curioso observar que não existiu uma preferência especial para um ramo da arte ou da ciência. A todos os setores chegou o apoio benemérito do Monarca”. O Imperador concedeu, por decreto de 20/10/1887, uma bolsa à Dra. Maria Augusta Generoso Estrela (1860-1948) para estudar na Escola Médica de Senhoras, em Nova York, sendo a primeira brasileira e a primeira sul-americana a formar-se em medicina. Ela ingressou na Academia de Medicina em 1876 com 16 anos e terminou o curso em 1879, tendo recebido o diploma de médica em 29 de março de 1881 quando completou a maioridade. Voltou ao Brasil em 1882, revalidou seu diploma e teve intensa atividade médica até sua morte em 1946.

(3) Auler, Guilherme. Os bolsistas do Imperador. Petrópolis: Tribuna de Petrópolis, 1956.

A Coleção Mota Maia merece também especial atenção, trata-se de documentos que foram produzidos e acumulados pelo médico Cláudio Velho da Mota Maia que recebeu do Governo Imperial, em 1875, uma bolsa na Faculdade de Medicina de Paris. Foi nomeado médico da Imperial Câmara em 4 de maio de 1880, sendo em seguida nomeado professor de Anatomia e Fisiologia da Escola de Belas Artes. Como médico do Paço, acompanhou o Imperador D. Pedro II na Corte, em Petrópolis e durante todo o exílio.

Outros fundos (4) poderiam ser aqui citados, mas escolhi o Arquivo da Família do Conde de Prados, um dos últimos a ser incorporado ao acervo do Museu Imperial, em 2001, cujo titular, Dr. Camilo Maria Ferreira Armond, Conde de Prados, formou-se em Medicina pela Academia de Medicina de Paris, em 1837. No ano seguinte, regressou ao Brasil e dedicou-se à clínica até 1851. Foi Diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro e fundador e benfeitor do Hospital da Misericórdia em Barbacena.

(4) Unidade constituída pelo conjunto de documentos acumulados por uma entidade que, no arquivo permanente, passa a conviver com arquivos de outras. Ana Maria de Almeida Camargo e Heloísa Liberalli Belloto. Dicionário de Terminologia Arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, Núcleo Regional de São Paulo/Secretaria de Estado de Cultura, 1996.

Entre a documentação encontramos registros preciosos como um catálogo de “Preços correntes de drogas, productos chimicos e pharmaceuticos” do ano de 1887, da drogaria e casa de importação Hermann Schlobach & Costa, situada à rua dos Ourives nº. 33, no Rio de Janeiro, que traz, além das mercadorias ordenadas alfabeticamente com os respectivos preços, propagandas de medicamentos:

“Medicamentos novos que, segundo as notícias da Europa, tem apresentado bons resultados, a saber:

Hydrochinon: Tem incontestavel vantagem sobre o sulphato de quinina, por ser menos excitante e não produzir zunidos nos ouvidos. A grande baixa do sulphato de quinina será a causa que o hydrochinon não tem por enquanto encontrado maior applicação como antisceptico.

Hyoscina: Novo alcaloide achado na hyosciamina; é um excellente remedio nas excitações da al[u]cinação. O Dr. Claussem obteve na asthma melhores resultados com a hyoscina do que com a atropina.

Iodol: Preferível no iodoformio pela ausencia de cheiro.

Ichthyol: Este producto obtem-se por meio da distillação de um rochedo betuminoso, pelo acido sulphurico concentrado. O que distingue este producto é a sua grande quantidade de enxofre, oxygeneo, carbono hydrogeneo e vestigios de phosphoro. O ichthyol foi empregado com grandes vantagens no tratamento das doenças de pelle.

Lanolina: Corpo gorduroso empregado nos unguentos; é provavel que faça forte concurrencia á vasilina, porque produz melhor resolução do que esta e é menos sujeita a tornar-se rançosa.

Papayotina: Tem-se observado que é efficaz na applicação no depheterites, humedecendo-se a garganta com intervallos de 20 a 30 minutos com uma solução de:
5,0 papayotina
100,0 agua distillada

Salol: Tem este nome o ether phenol salicylado, introduzido ultimamente na medicina para substituir o salicylato de soda nos casos em que este ultimo produza effeitos desagradaveis sobre as membranas mucosas do estomago. Os resultados obtidos com o salol nos soffrimentos rheumaticos têm sido muito satisfactórios.

Urethran: É uma substancia branca de facil solução e distillação que é administrada em dôses de 1 gramma, como energico hypnotico. Suas vantagens são: ausencia total de qualquer acção secundaria e somno tranquillo semelhante totalmente ao somno normal.”

Outros documentos relacionados ao tema estão presentes, mas é na correspondência de caráter pessoal que encontramos referências significativas para a compreensão de certas práticas e hábitos adotados pela população. Os trabalhadores rurais e seus familiares que viviam afastados dos centros urbanos eram extremamente carentes de médicos com formação acadêmica. Mesmo com a consolidação dos cursos de Medicina e Cirurgia, no Rio de Janeiro e Salvador, na década de trinta do século XIX a situação indicava a baixa freqüência de profissionais, especialmente em outras regiões como a província de Minas Gerais.

No início do século XX o quadro permanece igual, isto é, o número de médicos era insuficiente para o cuidado da população, conforme podemos apreender das cartas de Cecília (sinhá Velha) dirigidas ao irmão Balthazar, sobrinhos do conde de Prados: “Envio-te estas receitas que são minhas companheiras inseparaveis e que me valem muito quando José adoece, principalmente quando não tenho médico… E como em fazenda as vezes tem-se mesmo que tratar de muitos doentes e talvez não tenhas Chernoviz é bom te-las guardadas á mão”. [grifos meus].

Ela se refere aos livros do médico polonês Pedro Luiz Napoleão Chernoviz que veio para o Brasil em 1840 e morreu em Passy, na França em 1881. Segundo a professora Betânia Gonçalves Figueiredo, autora de “A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX, em Minas Gerais”: “Ao constatar as dificuldades de toda ordem que tinham os moradores das pequenas cidades, das fazendas, dos lugarejos e vilas para recorrer aos médicos da Capital, nascia a idéia de produzir um manual de primeiros socorros, explicações sobre o quadro nosológico, indicações de procedimentos básicos, manipulação das receitas que pudessem orientar leigos e acadêmicos nos atendimentos corriqueiros, na tentativa de realizar um primeiro diagnóstico. A novidade é que o texto seria todo em português e, na medida do possível, adaptado à realidade brasileira. O Doutor Chernoviz foi o profissional que soube avaliar bem a demanda e elaborar um manual que atendesse às necessidades mais específicas da população brasileira, especialmente aquela afastada dos centros urbanos.” (5). E a professora continua: “… A população, independentemente das condições financeiras para arcar com os honorários médicos, preferia a medicina popular à medicina acadêmica.”

(5) Autor do Dicionário de Medicina Popular e o Formulário e Guia Médico do Brasil. O primeiro voltado especialmente para os locais em que não havia médicos, uma espécie de medicina doméstica, e o segundo um livro de apoio aos boticários e farmacêuticos.

Voltando à correspondência, a menção a falta de médicos e a consulta ao Chernoviz aparecem com frequência: “… tenho tratado de muitas creanças. Ao menos nos casos menos graves emquanto não se tem medico sabe-se o que fazer”… “procurei Salva aqui e José me disse que ahi tem muita. É calmante talvez mais poderosa do que a herva cidreira, vê no Chernoviz.” [grifos meus].

As informações sobre algumas doenças vão sendo prestadas e sempre acompanhadas da indicação dos remédios próprios para cada uma delas: “Em todo caso, como elle com certesa engulio catarrho e tem tido esta febresinha, prestta attenção que elle não tenha prisão de ventre, pois só se deve attribuir a febre e tudo mais aos dentes, depois de se observar bem que não há outra cousa. Quando elles engolem catarrho o verdadeiro é um purgante e o melhor é o oleo de ricino que é tambem muito bom para bronchite. Tanto Dr. Júlio [de Moura] como Tio Camillo sempre me mandam dar um purgante a elle quando tem bronchite e quando elle teve a peneumonia. Dr. Julio me recommendou que desse-lhe o oleo de 3 em 3 dias. Elle Dr. Júlio gosta que se misture o oleo de ricino com oleo de amendoas, mas é preciso que seja oleo de amendoas puro, inglez, que não tem amendoas amargas, e quase sempre n´estas pharmacias o oleo de amendoas tem amendoas amargas e as vezes envenena as creanças. … Aqui tambem há muita bronchite e moléstia de garganta. José há muitos dias que cahio, mas graças a Deos que com muito cuidado, belladona e aquella poção principal que tenho dado simples, pois não teve febre, elle está melhor e não tem tido bronchite. Numa noite que teve tosse mais presa e parecia peor da garganta puz logo o algodão iodado no peito, garganta e comecei com a poção e o chá de poejo.” E continua com os conselhos: “Uma cousa que sempre se deve tomar cuidado é em não continuar a ir dando poaia á creança se ella não vomitar. Deve-se provocar os vomitos com uma penna de gallinha na garganta ou então dar uma colherinha de café ou um pouquinho de alcool porque excitam o estomago e provocam os vomitos.”

Entre as diversas receitas eu selecionei duas delas para servirem de ilustração:

Suador receitado por Dr. Júlio
Logo que a creança cahe com febre, respiração ligeira, pelle secca e tosse presa, deve-se dar este suador:

Antipirina 25 centigrms
Tintura de belladona 2 gottas
Acetato de ammonea 20 gottas
Tintura de aconito 2 gottas
Tintura de digitalis 1 gotta
Colherinhas d´agua 6 gottas

As 6 colherinhas podem ser d´agua ou de chá de laranja, ou de poejo, e athe de eucalypto…Dá-se uma colherinha de meia em meia hora…José tomou este suador em Petropolis quando tinha 2 annos e agora Dr. Julio me disse que podia augmentar porque elle já está com 4 annos.

Tio Camillo deu-me tambem esta receita para feridinhas de carrapato:

Banha benjoinada 30 grms.
Oxydo de zinco 4 grms.
Resorcina 1 grm.

São consideráveis as potencialidades do acervo do Arquivo Histórico do Museu Imperial, cujas fontes textuais, iconográficas, fotográficas e cartográficas auxiliam a exploração dos diversos campos do conhecimento como no caso da história, da política, da sociologia, da história das ciências e da saúde.