A ARTE DE EDMUNDO JORGE

Julio Ambrozio, ex-Associado Titular, Cadeira n.º 30, Patrono – Monsenhor Francisco de Castro Abreu Bacelar

Era um desses encharcados dias serranos – Quarteirão Ingelheim, três anos antes -, espalhado no chão, eu conversava ao léu com Edmundo Jorge. Algumas obras dispersas pelo seu ateliê convidavam o meu distraído olhar. Desde o seu antigo estúdio, em uma simpática casa lá pelas bandas de certa localidade que, até há alguns anos atrás, todos os petropolitanos chamavam de buraco do sapo, mas que, doutamente, homenageara, em sua rua principal, o santista-português – inventor dos aeróstatos – padre Bartolomeu de Gusmão, eu já conhecia algumas poucas colagens, a forma grácil e suave de seus pastéis, os desenhos a carvão e nanquim.

As colagens não me atraíam, jamais tivera gosto por essa técnica, mas, nesse dia cerrado de névoa, meu olhar foi arrastado para a linha de corte, transparência e cor de três colagens em vidro, verde amarelo, 1996; cores,1997; grande azul,1998; além de um óleo – fogos, 1998 – cuja forma rugosa e enlameada, ruidosamente expandia-se em cores. A vivência ótica que experimentei, irremediavelmente, abalou minha memória: todo o mundano que havia à minha volta desapareceu, agora só vejo o que está além. Atualmente devo criar o mundo inteiro e não o posso fazer. Agora devo substituir os mares, as montanhas e tudo o mais… Comoção inteira e longa, de Franz Altheim

Desde esse nublado dia apreendi o humanismo de Edmundo Jorge. Anteriormente, em sua obra plástica, enxergava uma fratura ou tensão entre o figurativo e o não-figurativo. Formado no turbilhão modernizador dos anos cinqüenta no Brasil, Edmundo fazia parte das vanguardas urbanas; elas direcionavam sua arte para idéias mais universalizantes que, plasticamente, desembarcaram no país sobretudo através do suíço Max Bill – a Escola de Ulm – e suas formas concretas. Demonstrava isso seu vínculo com o Grupo Frente, liderado por Ivan Serpa, sua ativa participação na I Exposição Nacional de Arte Abstrata, Petrópolis, 1953, e seu gosto pela colagem – estrutura múltipla e dinâmica, subdivisão prismática sem a unidade condutora do pincel-linha, tensão de formas-materiais no espaço -, técnica das mais propícias aos conceitos da arte concreta.

É fato que a graça com que o intelectual e artista plástico Edmundo Jorge recuperou a memória da Exposição de 1953, para mim, revela hoje que já nos anos cinqüenta andava meio incomodado com o concretismo. Em seu breve balanço – In Memoriam – acerca dessa exposição, uma das matérias de seu livro Guima e o Degelo, Machado Horta, editora, RJ, 1986, observa com certo humor Edmundo que a vigilância de Ivan Serpa e Mário Pedrosa não impediu o desvio do concretismo em direção a um tom geral mais próximo da fase geométrica da abstração Kandinskiana (p.18), distanciando-se, portanto, da pintura concreta que buscaria a materialização do conceito em uma forma autônoma e sem vínculo com o mundo exterior.

A clara apreensão dessas divertidas passagens só alcancei em 1999. Eu já tinha lido anos antes esse texto e percebido sua graça narrativa, característica que sempre encontrei nos diversos escritos de Edmundo, e, desconsiderando o papel do narrador, ingenuamente reputei ao permanente bom humor, aliado à capacidade de auto-crítica, de um autor cuja escrita muitas vezes se aventurou com verdade e beleza em diversos gêneros – poesia, conto, crítica, memorialística. Eu acreditava em certa espécie de antinomia entre os trabalhos abstratos e figurativos do artista Jorge; comparecia a suas exposições petropolitanas, olhava a rarefação do não-figurativo e perguntava aos meus olhos:

– Constituir-se-ia de fragmentos perdidos o abstrato de Jorge?

Bem avistada desta linha, a indagação acima revela – pelo menos até aquele dia coberto de ruço – alguma incompreensão da arte de Edmundo Jorge. A abstração, após tantos anos de modernidade, ainda é mais custosa à sensibilidade que o figurativo. Mas, especialmente, permanecia cego à reação do pintor, que desde os anos cinqüenta, em sua obra não-figurativa, investigava a expressiva abstração. Daí, aliás, seu fino sorriso no balanço da Exposição petropolitana de 1953. Desde sempre, agora bem sei, Edmundo reagira a uma arte moderna que indo ao encontro da pureza, do automatismo surrealista, da geometria e do não tectônico, resvalara muitas vezes para o simples decorativo ou interessante, cultuando forma distante da idéia antiga de beleza como bem, verdadeiro e uno.

É com esse olhar reativo que o pintor petropolitano realiza, no mesmo espaço, o contraste entre os elementos figurativos da paisagem e o inumano geométrico, civilização e barbarie, desenho,1998; ou constrói um painel de obsolescências – agressiva colagem não tectônica de detritos urbano-industriais sobre tela, quantos pelo césio goiano, colagem, 1990.

Edmundo Jorge opõe-se ao estado das formas modernas. Ele investiga o mundo exterior despregado de psicologia, mas experienciado interiormente. Sua abstração não afasta o Homem. É, pois, o humanismo do intelectual e artista Edmundo – debruçado sobre a natureza e a condição humana – que une, indissoluvelmente, sua obra abstrata e figurativa. Aquela eventual antinomia, então, mostra-se equivocada: Edmundo Jorge busca o significativo da realidade vivida tanto na representatividade figurativa quanto na verdade plástica ou pictórica do expressionismo abstrato.

Dos anos sessenta aos oitenta do século passado, o olhar do artista é, sobretudo, figurativo; a colagem aparece em seu espaço, mas é o desenho e o pastel que ocupam seu mundo. Os anos noventa parecem buscar a origem, com vigor expressivo renovado.

Do conjunto da arte de Edmundo, o que mais me emociona são os desenhos. Eu vejo a beleza em seus pastéis, essa técnica de cores e tons desmaiados e de clara iluminação. Acho verdadeiro a representatividade do mundo exterior encontrada nas cores revoltas de um céu e mar embolados, trazendo ao nosso olhar, distante, a barquinha negra assustada, retorno, pastel 1987; ou a figura do balão em meio ao fogo – quem sabe a mata seca do sertão queimando ao sol?, balão, pastel, 1980. Eu acredito no bem e na unidade do paradoxo das cores fortes de incerta, mas possível, influência fovista no azul monocromático – daquele azul tristonho das montanhas e do céu longínquo – que invade a árvore descarnada e as linhas de mata, contrastado com os cacos de neve colados à tela, a árvore a a neve, pastel/colagem, 1996.

Sensibiliza-me, porém, sua arte do desenho, cujas linhas não separam o modo de fazer do modo de ver. Disegno = segno di dio in noi. Foi assim que L’idea de’ pittori, scultori e architetti, 1607, de Federico Zuccari, o grande preceptista do maneirismo, celebrou o desenho. Eu não sei dizer se essa etmológica interpretação me autoriza a olhar a arte negra de Edmundo Jorge. Sei que concebe o carvão e o nanquim com o coração, procurando seus segredos mais profundos. Escrevo isso lembrando de alguns desenhos de Jorge. Não existe linha supérflua ou insensata em seus desenhos, pois risco e assunto vivem confluentes.

Já tive a oportunidade de escrever sobre as retas linhas de barcos em Paraty, nanquim,1978; não me canso de olhar para aquele mundo pequeno em águas incertas – marinha interpretação da atmosfera -, cujo céu, branco absoluto, invade os traços vazios de barcos, nuvens e remotas montanhas.

Edmundo procurou as linhas de praia, antigas montanhas, igrejas; coloriu de nanquim e carvão sua humanidade vivida.

O mundo exterior arrastou a vida das formas em Jorge.

Mas não impediu o desenho agudo da cenografia interior, fixando tristezas miúdas; pacíficos gestos, mãe, carvão, 1963, e sensualidades cotidianas, figura, nanquim, 1980.

– De tudo isso, o que posso dizer?

Devo escrever que a figurativa e a expressiva obra do homem de espírito Edmundo Jorge não queda ao largo da mais bela humanidade, aquela que realizando um mundo, inventa também a maneira de fazê-lo.