AS GRANDES DAMAS DO RIO NEGRO NA REPÚBLICA VELHA

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

O mesmo “artista” investido das funções de guia turístico que inventou o Barão de Itararé como proprietário do castelo na esquina da Avenida Koeler com a Praça da Liberdade afirmou de peito estufado, diante de seus crédulos clientes, que o Palácio Rio Negro foi a residência de verão de todos os Presidentes da República, de Deodoro a Juscelino.

Nota zero para o trêfego informante.

No caso específico do Palácio Rio Negro, é de se esclarecer que, antes de servir aos primeiros mandatários da Nação, foi ele sede do governo do Estado do Rio de Janeiro, quando a capital aqui esteve entre 1894 e 1903. Ali viveram os Presidentes Maurício de Abreu (1895/1897), Alberto Torres (1898/1900) e Quintino Bocayuva (1901/1903).

Depois que a capital voltou para Niterói, o imóvel em epígrafe foi negociado com o Governo Federal e assim o primeiro Presidente da República a ocupá-lo foi Francisco de Paula Rodrigues Alves.

Depois esteve ali em três temporadas o mineiro Afonso Pena.

Morrendo em meados de 1909 no pleno exercício de seu cargo, foi imediatamente sucedido pelo Vice Nilo Peçanha, que, cumprindo o final do mandato presidencial, desfrutou apenas de um verão no Palácio Rio Negro, o de 1910.

É justamente aí que aparece a primeira grande dama na ocupação daquele próprio federal.

O campista Nilo Peçanha, político ardiloso e ladino, malabarista na arte do possível, era casado com uma sua conterrânea, Ana Belisário de Souza, filha do advogado João Belisário Soares de Souza e de Ana Rachel Ribeiro de Castro Soares de Souza.

O Dr. João Belisário era, por sua vez, filho do Desembargador Bernardo Belisário Soares de Souza e de Mariana Álvares de Azevedo Macedo Soares. Por um lado era primo do Visconde de Uruguai, Paulino José Soares de Souza e por outro do poeta Álvares de Azevedo. Entrocava-se na família Macedo Soares, uma das melhores linhagens brasileiras, com raízes na nobreza européia, conforme genealogia levantada, publicada e sobejamente conhecida aquém e além fronteiras.

Já D. Ana Rachel era filha do Comendador José Ribeiro de Castro, Visconde de Santa Rita e de D. Maria Antonia Netto de Castro.

O Comendador, que fora Barão por decreto de 19 de julho de 1879 e Visconde por decreto de 13 de outubro de 1883, era segundo o “Archivo Nobiliárquico Brasileiro” do Barão de Vasconcellos, publicado em Lausanne, Suíça, em 1918, filho de Manuel Antonio Ribeiro de Castro, 1º Barão de Santa Rita, nascido em Aldros, Portugal, em 8 de novembro de 1767 e falecido em Minas Gerais, aos 26 de maio de 1854. Estabelecido em Campos dos Goitacazes com fazendas, foi Barão por decreto de 15 de abril de 1847 e Barão com Grandeza por decreto de 11 de outubro de 1848.

D. Maria Antonia Netto de Castro era filha do Barão de Muriaé Manuel Pinto Netto Cruz, nascido em 1791 e falecido em Campos dos Goitacazes aos 12 de junho de 1855. Casou-se com D. Rachel Francisca de Castro Netto Cruz, que foi elevada a Viscondessa de Muriaé, já viúva do Barão, por decreto de 19 de julho de 1879. D. Rachel morreu em Campos em 28 de outubro de 1881. Era o casal dono de propriedades rurais na região de Santo Antonio de Guarulhos, atual Guarus, que fica à margem esquerda do Paraíba, diante da cidade de Campos dos Goitacazes.

Aquela que passaria à história com o nome de Anita Peçanha, filha do Dr. João Belisário e de D. Ana Rachel, era por conseguinte rebento da mais orgulhosa aristocracia rural campista e fluminense, da autêntica nobreza do melado.

Brígido Tinoco no seu “A Vida de Nilo Peçanha”, nº 114 da Coleção Documentos Brasileiros, da Editora José Olympio, traça em dois momentos o perfil de Anita:

Pág. 55:

“A jovem era de pequena estatura, mas elegantíssima e de cativante beleza. A fronte altiva e o andar firme revelavam rara personalidade. Talvez um pouquinho de orgulho”.

Pág. 56:

“Dera-lhe o pai instrução requintada. Aprendera piano com o famoso professor italiano Carlos Reinolds; sua governanta Augusta Jaeger, ilustre mestra de Hamburgo, ensinara-lhe alemão e francês e a exercitara na equitação. Era campista do coração de Campos, pois nascera no solar do avô materno, o Visconde de Santa Rita à rua 7 de Setembro”.

E foi nesse solar que os Imperadores se hospedaram quando da inauguração da luz elétrica em Campos em 24 de junho de 1883.

Com tanto pedigree, seria difícil que a família de Anita aceitasse qualquer candidato à sua mão, principalmente um mestiço do Morro do Coco, criado como ele mesmo dizia com pão dormido e paçoca, filho do Sebastião da Padaria. Era mesmo muita ousadia do então jovem deputado federal pelo Estado do Rio de janeiro, pretender qualquer aproximação com moça de tão nobre linhagem.

Entretanto, a audácia de um e a teimosia da outra haveriam de levar a melhor, selando uma das uniões mais fortes e estáveis de quantas se conheceram nesta Velha Província nas duas primeiras décadas do século XX.

Mas até a vitória final Nilo Peçanha enfrentou o pleito mais duro de sua existência, a candidatura mais difícil de triunfar, a de marido de uma autêntica aristocrata.

Foi um autêntico “coup de foudre” como se dizia então. Namoro à vista, dando muito na vista dos pais da menina. O Dr. João Belisário até que simpatizava com o rapaz declarando-se mesmo seu eleitor. Mas D. Ana Rachel, com aquela pitança da nobreza do melado, foi contrária a qualquer aproximação, não querendo nem pensar em algum tipo de relacionamento, ainda que meramente amistoso.

Foram dois anos de martírio, de marchas e contramarchas, de desfeitas ao deputado fluminense, de afrontas discriminadoras e preconceituosas, agravadas pela morte do Dr. João Belisário e pelo ciúme e até inveja de um cunhado de Anita que acirrava o ódio e a intransigência da sogra.

Até que não foi mais possível suportar o insuportável. E a jovem Anita mostrou a têmpera da mulher campista, da conterrânea de Benta Pereira que inspirou a divisa constante do brasão de armas do município: Hic Ipsae Matronae Pro Iure Pugnant, ou seja, Aqui até mesmo as senhoras lutam pelo direito.

Deixou Anita a casa materna, refugiou-se na morada de sua tia Alice e, a 6 de dezembro de 1895, casava-se com Nilo Peçanha na Igreja de São João Batista da Lagoa, no Rio de Janeiro. Foi oficiante o Padre Pelinca, antigo vigário da paróquia de São Salvador de Campos dos Goitacazes.

A lua de mel foi no Hotel White, no Alto da Boa Vista.

O casamento desses jovens e já tão sofridos campistas foi acima de tudo um pacto de solidariedade, alicerçado na árdua conquista do direito e da liberdade de escolha, sem conveniências, interesses, sentimentos mesquinhos ou subalternos.

Anita foi a companheira incondicional, presente em toda a triunfante trajetória do marido. Sua personalidade marcante, sua altivez, sua irreverência, seu espírito de renúncia, até seu berço nobilitado, foram fundamentais ao sucesso daquele que foi deputado, senador, duas vezes presidente do Estado, presidente da República, Ministro das Relações Exteriores e candidato à suprema magistratura do país, liderando a chama da Reação Republicana.

Anita Peçanha não foi o bibelô de luxo, nem o jarrão decorativo, nem a bonequinha frívola e deslumbrada, mas a consorte participativa, atuante, atenta às solicitações do mundo social e político que gravitava em torno de seu marido. Foi mulher de enorme coragem pessoal. Nunca transigiu com seus princípios, principalmente com sua fidelidade ao companheiro a quem sobreviveu 36 anos.

Enfim, atenhamo-nos ao único verão presidencial do casal Nilo Peçanha no Palácio Rio Negro, nesta urbe, à época extremamente bucólica e tranqüila.

Foi uma temporada de apenas cinqüenta dias. Retardou-a justamente um problema de saúde que tivera D. Anita no fim do ano anterior e que se estendera pelo mês de janeiro de 1910.

A Tribuna de Petrópolis de 14 daquele mês, anunciava na seção “Ecos e Fatos”:

“O Exmo. Snr. Dr. Nilo Peçanha, ilustre Presidente da República, subirá para esta cidade afim de que a sua digna consorte Mme. Anita Peçanha convalesça aqui da grave enfermidade, de que a distinta senhora acaba de ser acometida”.

“S. Excia., como já noticiamos, só descerá ao Rio de Janeiro, para dar as audiências públicas, realizando os despachos coletivos do Ministério, nesta cidade, no Palácio Rio Negro”.

Entretanto, a dita convalescença se fazia no Rio de Janeiro mesmo, já que os médicos não autorizavam a subida de sua cliente, quiçá em razão das diferenças de clima e de ambiente, elementos muito importantes para a medicina de então.

E a viagem foi sendo retardada. Passou o mês de janeiro, passou o Carnaval, que foi logo no início de fevereiro e a 12, a Tribuna de Petrópolis noticiava que a subida do Presidente mais uma vez fora adiada, já que o médico de D. Anita desaconselhara a vinda para esta cidade em virtude do mau tempo reinante.

Tudo fazia crer que perigava a vilegiatura presidencial. Até que, finalmente, Nilo Peçanha e senhora chegaram aqui às 11 horas da manhã do domingo 20 de fevereiro de 1910.

Vasto programa de homenagens havia sido montado. Entre as manifestações de júbilo recebidas pelo casal, destacaram-se as duas corbeilles oferecidas, uma à D. Anita em nome das senhoras de Petrópolis, outra ao Presidente, como reconhecimento do povo da cidade.

Nos dias subseqüentes, enquanto Nilo Peçanha seguia a sua agenda normalmente, sua consorte repousava, recobrando as energias que lhe roubara a moléstia de que fora vítima.

Na segunda feira 7 de março, entre 4 e 5 horas da tarde, o casal recebeu em Palácio os representantes do corpo diplomático que viviam gostosamente nestas serras.

No sábado 2 de abril, o Presidente e senhora abriram os salões do Palácio Rio Negro, para a festa que ofereciam à sociedade petropolitana.

“Na República, é a primeira vez que se assiste nesta cidade a uma festa dessa ordem, pois os antecessores do eminente fluminense, que ora ocupa a suprema magistratura da nação, limitavam-se, quando em vilegiatura em Petrópolis, a oferecer um ou dois banquetes a membros do corpo diplomático ou a algum ilustre hóspede”.

“Pelos preparativos, a recepção de logo à noite vai ser um deslumbramento”.

A ornamentação estava a cargo da Casa Callmann e o serviço de buffet, do Falconi. No jardim, tocaria a banda do Corpo de Bombeiros e na varanda do fundo, a orquestra dos Marinheiros Nacionais.

Trezentos convites foram expedidos, sendo contemplados Ministros de Estado, membros do corpo diplomático, famílias gradas da cidade e do Rio de Janeiro.

Vale lembrar que o casal campista era bastante festeiro e Nilo Peçanha, único fluminense de verdade a ocupar o Rio Negro na condição de Presidente da República, era conhecido como excelente pé de valsa.

Aliás há muita semelhança entre Nilo e Juscelino: progressistas, no bom sentido, democráticos, muito jogo de cintura, almas grandes, exímios dançarinos. Gente de bom astral, que não odeia, não guarda ressentimentos, não persegue, não usa o poder para humilhar e destruir.

O baile foi aberto com a quadrilha de honra em que tomaram parte o Presidente da República com Mme. Irving Dudley (senhora do embaixador norte-americano); este com Mme. Nilo Peçanha; o Marechal Hermes da Fonseca, candidato à presidência , com Mme. Cantillo; o Ministro do Chile com Mme. Enéas Martins; o Ministro do Peru com Mme. Vallin y Alfonso (senhora do representante diplomático da Espanha); o Ministro da Bolívia com Mme. Rufino Dominguez (Ministro do Uruguai); o Ministro da Holanda com Mme. Herman Velarde (Ministro do Peru); o Ministro da Áustria com Mme. Beals; o Ministro do Uruguai com Mme. Haggard (Ministro da Inglaterra); o Ministro da Bélgica com Mme. Riedl (representante diplomático da Áustria); o Dr. Leopoldo de Bulhões com Mme. Herboso (Ministro do Chile); o Ministro da Inglaterra com Mme. Advocaat (Ministro da Holanda).

Às 9 horas da manhã de 10 de abril de 1910, o casal Peçanha deixava o Rio Negro para retornar ao Rio de Janeiro.

Cinqüenta anos depois Anita Peçanha baixava à sepultura, já que morreu a 9 de abril de 1960.