Ninguém jamais agradará a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo. Os que acendem velas a um e outro se estrepam, segundo o velho dito popular. Nessa linha de raciocínio tem-se que ninguém terá a unanimidade dos juízos a seu favor, principalmente quando se detém os cordéis do poder e a capacidade de distribuir benesses, de contrariar interesses, de criar facilidades ou obstáculos. A evidência e a fama, frutos desse poder e dessa capacidade, despertam fatalmente simpatias e idiossincrasias, aplausos e vaias, paixões e ódios.
Assim ocorreu com o Barão do Rio Branco, o ministrão da primeira década do século XX, o homem que comandou com plenos poderes a política externa brasileira, liquidando velhas pendências, fechando em definitivo o perímetro do nosso território, intervindo nas questões continentais, como mediador de inegáveis recursos intelectuais e de incontestável talento diplomático.
Mudavam os governos – Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, mas o Barão com seus mapas, documentos, estudos, arrazoados e mil idéias, seguia firme no timão do Ministério das Relações Exteriores até que a morte o surpreendesse em pleno labor às vésperas do Carnaval de 1912.
Sua falta foi tão sentida, quer nos meios oficiais, quer no âmbito popular, seu enterro foi de tal sorte apoteótico, verdadeira consagração promovida por todos os segmentos sociais, que chegou-se a cogitar da transferência das festas de Momo para outra ocasião.
Mas apesar de tudo isso, apesar das muitas simpatias e admirações que despertou no Brasil e nas circunvizinhanças, o Barão teve também opositores ferrenhos, aquém e além fronteiras, que não lhe pouparam críticas e até ataques agressivos.
Entre nós, a pena ressentida e revanchista de Lima Barreto nunca deu trégua ao Barão.
Para o autor do “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, o Barão do Rio Branco era um eterno sinecurista do governo, despótico a ponto de não reconhecer o limite entre a coisa pública e a privada.
Era uma alusão ao hábito do Ministro de morar no Rio de Janeiro no seu próprio local de trabalho, o Palácio Itamarati e de fazer de sua casa em Petrópolis uma espécie de sucursal da chancelaria e um salão de festas onde recebia oficialmente o corpo diplomático.
Crítica bastante mesquinha a um homem que não tinha hora para começar nem para encerrar seu expediente, que varava as madrugadas sobre livros e papéis de modo a preparar as defesas de suas posições, os textos dos ajustes, dos protocolos e tratados.
Visão antolhada sobre um cidadão que não fixava limites entre o trabalho e o descanso, entre a febril elaboração intelectual e as horas sagradas das refeições e do sono. E tudo em prol da pátria e do equilíbrio de forças no hemisfério, esvaziando as crises e evitando confrontos.
Foi certamente Rio Branco o criador do tapetão entre nós. Afinal o Barão era único; era especial e qualquer pecadilho seu teria que ser perdoado, segundo os conceitos de Voltaire, para quem o homem inteligente e a mulher bonita estavam acima do bem e do mal .
Joaquim Menezes de Oliva, que foi meu professor de Histórica no Colégio Padre Antônio Vieira no Rio de Janeiro, costumava sempre consultar, em caso de dúvida, as obras do Barão e, sentenciava com muita graça:
– Que nos diz o Barão?
– Erremos com o Barão, porque assim erramos em boa companhia!
No Cone Sul, Rio Branco teve pelo menos dois grandes desafetos: os argentinos Estanislau Zeballos, El Tigre Del Plata, que quase provocou um conflito armado entre Brasil e Argentina e Vicente Gregório Quesada, internacionalista de incontestáveis recursos intelectuais e conhecimento de causa, porém apaixonadamente entroncado nas doutrinas de Rosas de caráter expansionista.
Correndo por fora, poderiam ser lembrados nesta oportunidade, o intolerante e intolerável Ernesto Quesada, filho e discípulo do velho Vicente e o então moço chileno Joaquim Edwards Bello, que esteve no Rio de Janeiro em fins de 1910 e começo de 1911 e que num livro intitulado “Três Meses en Rio de Janeiro”, derramou sobre o Barão toda a sua bílis mal contida, por causa das pendências chileno – peruanas vindas da Guerra do Pacífico.
Mas para que recordar esses desafetos se é tão mais gratificante fazer a intriga do bem, como dizia Mestre Câmara Cascudo?
Falemos de dois simpatizantes chilenos da figura e da obra do símbolo da política externa brasileira em todos os tempos, mesmo apesar dos excelentes trabalhos desenvolvidos por Cotegipe e pelo Conselheiro Paulino durante o antigo regime.
Falemos de Clemente Barahona Vega e de Emílio Rodrigues Mendoza.
O primeiro, teve no princípio do século XX grande prestígio intelectual entre nós, haja vista que tornou-se membro honorário da Academia Pernambucana de Letras, do Instituto Arqueológico Geográfico e Histórico de Pernambuco, do Grêmio Literário da Bahia, do Grêmio Literário Santa Rita Durão de Belo Horizonte, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e do Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas, Estado de São Paulo.
Escreveu e publicou, em 1908, pela Imprensa Universitária do Chile, um livro intitulado “Paginas sobre el Brasil”, contendo reminiscências e notícias várias do nosso país. Na abertura da obra estão o retrato do Presidente Afonso Pena e as dedicatórias a este e ao Barão do Rio Branco, sobre quem, Barahona Vega, assim se houve:
“O consenso da América Latina o reconhece como sendo o primeiro de seus internacionalistas; e, em suas luzes, talento, provado patriotismo, capacidade e energia de caráter se alicerçam os foros e interesses do continente sul e a amizade franca e leal de seus diversos Estados. Digno e zeloso colaborador dos desígnios e da atuação do Exmo. Snr. Presidente Dr. Afonso Pena, leva o timão das Relações Exteriores com pulso firme e decidido, comprometido com o acercamento e a concórdia dos povos. Merece, por conseguinte, a gratidão das Américas e em particular do Chile, que sempre recebeu dele provas de requintada cortesia e acendradas simpatias, como de resto as têm recebido de todos os filhos desse solo fidalgo e generoso”.- Santiago, 13 de março de 1908.
Emilio Rodriguez Mendoza (1875 / 1960), foi intelectual de nomeada no Chile de seu tempo e como secretário da legação do seu país, esteve no Rio de Janeiro e em Petrópolis, durante os primeiros anos do século XX, quando aqui funcionou como Ministro Plenipotenciário chileno Anselmo Hevia Riquelme.
Rodrigues Mendoza escreveu entre outras obras de reconhecido interesse para a cultura ibero-americana os seguintes livros:
“Una Pagina de Historia Diplomática”, Bogotá, 1918, em que se ocupa da independência do Panamá e do canal do mesmo nome;
“Los Estados Desunidos de Sudamerica”, Valladolid, 1927;
“La América Barbara”, Santiago, 1937;
“Algo sobre Geografia Política Sudamericana – Chile/Argentina”, Santiago, 1954, e ,”Como Si Fuera Ahora”, Santiago, 1930, livro interessantíssimo de reminiscências, que será oportunamente alvo de nossa cogitação aqui.
Emilio Rodriguez Mendoza, sobre escrever divinamente bem, com aquela graça chilena é um repórter nato com dons divinatórios.
Vale a pena repetir aqui, embora fugindo um pouco ao tema central desta matéria, o que disse sobre os Estados Unidos e sobre a América do Sul às págs. 14/15 do seu “Los Estados Desunidos de Sudamerica”:
“Enquanto correm as contendas civis, brandindo-se o temível sabre mestiço, pelo pampa e pela serra, na parte morte de ambas as Américas, não nos esqueçamos deste fato, vai sendo moldado um colosso, que não é precisamente um país, mas um continente, o que lhe permitirá superar rapidamente todas as sucessivas etapas do desenvolvimento.
Simultaneamente a América espanhola nunca se encontrou a si mesma, seguindo dissociada e assoberbada de problemas múltiplos, carecendo assim de organização.
Nossos paises não compreendiam então as conveniências da ordem, que somente agora começam a perceber vagamente, buscando maior articulação entre as porções que se desprenderam do bloco colonial, para se tornarem autônomas. Ao contrário, na América do Norte os núcleos iniciais, como Virginia e Massachussets, foram estendendo entre os dois oceanos os limites potentíssimos de uma confederação que é hoje um dos fenômenos mais interessantes dos tempos modernos; e assim, enquanto a União Americana passava em etapas sucessivas do domínio inglês ao trabalho sem tréguas, nossa América sob o peso enorme da sua inexperiência e do esgotamento econômico, distante do mundo e também de si, com limites indivisos, a projetarem o fantasma da guerra sempre que se avizinhava o deslinde, nunca pensou em unir-se e sim em desagregar-se. Dividida em vários paises, cada qual começou a fazer política externa militar, enquanto a América do Norte, por sua vez, a fazer política econômica, sem outra exceção que a guerra separatista, que por incrível que pareça promoveu a fusão definitiva daquele enorme conjunto”.
Essas judiciosas considerações foram feitas nos anos vinte do século que acaba de exaurir-se. E os fatos registrados nessas quase oito décadas, só fizeram confirma-las.
Contudo, é tempo de encerrar este artigo que já está longo. Voltamos ao volume “Como Si Fuera Ahora” para a abordagem do perfil do Barão do Rio Branco, segundo Emilio Rodriguez Mendoza. Está às págs. 90/94.
“O Brasil necessitava de alguém que fechasse de uma vez o contorno de seu mapa de abdômen voltado para o Atlântico”.
“E como nunca falta o homem para as circunstâncias, apareceu Rio Branco cheio de mapas e papéis; ele sabia bem o que era uma carta geográfica e sabia igualmente muito bem o que guardavam os arquivos. Seus olhos escuros sobre os quais se entrecruzavam grossos cílios portugueses, olhavam habitualmente para o futuro; observavam os contornos do território que enche de palmeiras uma grande parte da América do Sul”.
“… Petrópolis, que em vez de neve, tem serras vestidas de bosque, enche-se de bandeiras, de fanfarras de arcos: é o Barão que chega, dirigindo-se a um chalesinho isolado para que ninguém o interrompa”.
Mais adiante assinala o chileno:
“É um grande homem de Estado. Não ameaça, negocia, com um conhecimento total do assunto graças a seu talento penetrante; tem as maneiras de um gran senhor e a cultura apurada de um refinado, que assim fala de uma carta geográfica contemporânea do Tratado de Santo Ildefonso, como de uma pintura de Goya”.
“… É um grande homem de Estado e o senhor Zeballos se alarma e se irrita”.
E já no fim do capítulo dedicado a essa figura insigne da nossa vida pública:
“Eis aí o Barão do Rio Branco, o homem que conhecia o conjunto dos assuntos americanos; que para tratar de uma coisa, não a estudava isoladamente, senão dentro do contexto das questões do continente, questões que se relacionam cada vez mais, porque também na América já não se pensa tão isoladamente e este ou aquele tema se correlaciona com o conjunto, ligando-se a outros que pareciam longínquos e desconexos”.
“Conhecimento total, significa tratamento harmônico das questões continentais”.
Não era, pois, sem motivo que o Barão fazia a diferença ao agigantar-se com seu talento, cultura e inteligência sobre o insidioso campo da política externa no Novo Mundo.