CASA D’ANGELO
Ruth Boucault Judice, associada titular, cadeira n.º 33, patrono Padre Antônio Tomás de Aquino Correia
As coisas se dividem em: animadas e inanimadas. Quando animadas, têm vida e podem ser móveis ou semoventes.
Quando inanimadas são imóveis e insensíveis.
Eu, Casa D’Angelo, sou inanimada e imóvel! Verdade. Mas até onde, e como? Não entendo, pois estou sentindo.
Sinto o abandono dos Homens, sinto o descaso das autoridades, que me dizem: “estão agindo”. Mas agindo como? Em que velocidade? Já comecei a perder minhas características. Estou sendo despida, modificada, despersonalizada talvez. Está na hora de pedir socorro. Preciso de todos e de cada um. Se nasci coisa, hoje sou tradição, alma de uma cidade centenária, um pedaço do passado de toda a Petrópolis. Por isso talvez esteja “sentindo”.
Já conto história, vocês querem ver?
Fui fundada em 24 de dezembro de 1914. Era véspera de Natal. A população da cidade não era grande, mas quantos bolos e doces vendi. Comecei enfeitando as mesas natalinas.
E como nasci? Querem saber?
O português Valentim Aguiar, dono de uma confeitaria no ponto onde me encontro, sentia-se velho e sem herdeiros. Só tinha um sobrinho que sabia ele, não ser capaz de continuar o seu negócio.
Lembrou-se dos irmãos D’Angelo, italianos de nascimento, mas que vieram para o Brasil por volta dos 12, 13 anos. Eram cinco irmãos; trabalhadores; começaram com uma vida dura. Eram engraxates, carregadores e, sobretudo, responsáveis.
Foi assim que o velho Aguiar permitiu que eu nascesse. Facilitou-lhes a venda da Confeitaria. E lá foram eles: João D’Angelo, Donato D’Angelo, Domingos, Alexandre e Nicola D’Angelo. Cada um especializou-se em algo que fosse útil ao conjunto.
João D’Angelo, tinha como esposa D. Titã (ainda viva, que nos informa), pai do grande ortopedista, Donato, era o administrador. Só aparecia na loja às tardes.
Donato foi aprender marcas e paladares de vinhos alemães, franceses, etc, para poder atender aos paladares mais exigentes.
Domingos passou a ser doceiro. Foi aluno de Giuseppi Salvatori, cozinheiro do Copacabana Palace. Criou os caramelos D’Angelo, conhecidos em quase todo Brasil.
Enquanto fui deles, estava tranqüila. Os doces eram finos e atendiam bem a nossa clientela.
Alexandre ficou com as frutas; frutas essas que vinham também de fora, não eram só brasileiras. Havia frutas até de Nova Zelândia.
Nicola ficou com os salgados. Que presunto, vendíamos então! Vinha importado, embalado em latas.
Faltava alguém para entregar a nossa mercadoria em casa. Foi aí que entrou o primo Rocco Gentile. Ele é quem saía levando a cada canto um pouquinho de mim nos pequenos caminhões com a minha sigla.
Assim ficamos anos funcionando.
Pela década de 30 (por volta de 36-37) foi demolida a casa antiga que me abrigava; térrea; herança ainda do velho Aguiar.
Foi quando construíram o prédio novo. O D’Angelo que sou hoje. Sofri influências da arquitetura do momento. Era o pó de pedra entrando como revestimento de fachadas. Arquitetura que não trouxe grande contribuição para as nossas artes, mas que marcou um período.
Não é isso que reclamo. Não sou apenas arquitetura. Sou sim a própria vida da cidade que se desenrolou às minhas portas. Sou o canto do chopinho gelado; do papo batido sem pressa, dos encontros casuais e programados, sou as mesas despretensiosas da média com pão e manteiga! Nunca fui elitista, Tive sim, champagne francesa nas minhas prateleiras, mas sempre servi a média requerida ou chá com as torradas de Petrópolis, das amigas num papo descansado.
Mas a minha maior verdade: sempre fui ponto de encontros na cidade.
– Apanho você hoje.
– Onde?
– No D’Angelo.
– Vamos nos encontrar amanhã? Cinco horas na porta do D’Angelo.
Quantos amores vi nascer nas minhas portas. Quantos desamores também presenciei quietinha!
Vi gente do povo, nomes comuns e nomes famosos, todos, ombro a ombro no meu balcão. Personalidades da nossa História sentadas às minhas mesas, sem pressa, sem pretensões.
Santos Dumont ou Rui Barbosa, curtindo uma solidão ou em papos animados.
Getúlio Vargas, alegre, risonho, sem hora de voltar para casa.
Eduardo Gomes e o General Dutra, antes e depois de momentos históricos.
É isto que eu quero. É isto que eu peço. Deixem-me ser ainda o ponto de encontro da mocidade, do bate-papo saudoso dos mais velhos (ah! A Petrópolis do meu tempo!), mas como sempre fui. Se eu virar lanchonete, serei igual a outras tantas dentro e fora da cidade. Não é meu caso. Eu sou algo mais. Estou para Petrópolis, como a Colombo está para o Rio. Foi difícil, mas a Colombo está salva. É melhor, mais rentável hoje que ontem.
Pena que, nós seres inanimados, não possamos mostrar ao Homem, animal racional, senhor das coisas e do dinheiro, que tudo que tem história, como o meu caso, pode e deve ser explorado por esse lado. Não é o imóvel, nem a arquitetura, nem o ponto que me fez preciosa. Sou eu mesma. É o meu passado, a tradição que criei. Podem servir de alicerce para o futuro de qualquer proprietário que me possuir.
Sei me fazer bela, sei atrair gente. Isso conquistei através da experiência dessa dezena de anos de minha existência. Ao meu novo dono, por favor, salve-me que lhe serei grata em retribuição!