O CENTENÁRIO DA MORTE DO VISCONDE DE TAUNAY
Francisco de Vasconcellos, Associado Emérito –
O teuto-riograndense Karl von Koseritz, crítico desabrido e contundente das mazelas do Brasil Império, cronista do Rio e de Petrópolis durante sua viagem de 1.883, foi quiçá o primeiro a fazer um esboço bio-bibliográfico do Visconde de Taunay.
Fe-lo em meados dos anos oitenta do século passado, ainda em vida do retratado, através de um opúsculo, cuja segunda edição, existente no Museu Imperial é de 1886.
Este folheto fez carreira brilhante e não incorreria em erro quem afirmasse ter sido aquele esboço a fonte de que se socorreram ao longo dos anos, os que intentaram construir a imagem dessa figura singular da intelectualidade brasileira, que recebeu na pia batismal o nome de Alfredo Maria Adriano D’Escragnole Taunay.
Alfredo nasceu no Rio de Janeiro aos 22 de fevereiro de 1843. Filho do comendador Felix Emílio Taunay, Barão de Taunay (1795/1881) e de Gabriela Hermínia D’Escragnole Taunay, era neto paterno de Nicolau Antonio de Taunay, que foi um dos fundadores da Academia de Belas Artes. Descendia na verdade de dois velhos troncos da nobreza da França e da aristocracia de espírito daquele país.
Menino de muito talento, demonstrando desde cedo múltiplos pendores, tornou-se bacharel em ciências físicas e matemáticas, graduando-se como engenheiro geógrafo em 1863. Tinha então vinte anos e já metido na carreira militar, pois sentara praça em 1861, acabou engajando-se na campanha do Paraguai, tendo participado da histórica e dramática retirada da Laguna, que lhe deu argumento para escrever obra de renome internacional, já que foi traduzida até para o sueco. Fez-se auxiliar direto do Conde D’Eu, já na última fase da guerra e voltou ao Rio de Janeiro coberto de glórias, fazendo jus à medalha do Mérito Militar, que recebeu com todas as honras. Chegou ao posto de major.
Foi professor de história e línguas, na Escola Militar.
Superada essa fase guerreira, Alfredo D’Escragnole Taunay dedicou-se à política, às letras e às artes. Trabalhou como jornalista, historiador, romancista, crítico, músico e pintor.
Em 1869, ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de que foi membro dos mais destacados e laboriosos.
Em 1874 casou-se com Cristina Teixeira Leite, filha do Barão de Vassouras.
Taunay era oficial da Ordem da Rosa e cavaleiro das ordens do Cruzeiro, de Cristo e de São Bento da Aviz.
No apagar das luzes do Império, a 6 de setembro de 1.889, recebeu o título de Visconde com grandeza de Taunay.
No seu brazão quartelado, ostentando as armas dos Escragnole e dos Taunay, lia-se a divisa eloqüente na concisão francesa: “Devoir fait Droit”.
Dois anos antes de morrer, participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, tendo sua cadeira como patrono, o renomado poeta Francisco Otaviano.
Morreu o Visconde de Taunay no Rio de Janeiro, aos 25 de janeiro de 1899, portanto há cem anos exatamente.
Uma das vertentes mais significativas na vida de Alfredo D’Escragnole Taunay foi a política. Foi deputado geral por Goiás e Santa Catarina, Senador por esta província e Presidente dela em 1.876. Foi justamente neste ano que nasceu no antigo Desterro, hoje Florianópolis, Afonso de Taunay, filho do casal Alfredo e Cristina e que, seguindo as pegadas do pai, viria a ser um dos maiores historiadores do bandeirantismo paulista e dos mais seguros estudiosos da evolução histórica de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Em 1885, era o futuro Visconde de Taunay, Presidente da província do Paraná. Na sua cidade natal, tornou-se administrador da Floresta da Tijuca, antecipando-se, por sua eficiência e dedicação a uma das maiores florestas urbanas do mundo tropical, aos ecologistas modernos.
Alfredo D’Escragnole Taunay foi filiado ao Partido Conservador, mas nunca deixou de ter idéias avançadas para a sua época, para o país em que vivia e para a estrutura política de que fazia parte.
O conservadorismo foi sempre uma tônica na vida brasileira. Ele deu sustentação à Corte de D. João VI; respaldou o primeiro reinado, barrando os arroubos dos liberais mais afoitos; impactou a Regência nos seus momentos de intensa turbulência. E já grupados em agremiação partidária, os conservadores deram régua e compasso ao longo do reinado de D. Pedro II. Muito antes de Augusto Comte, o brasileiro já havia aprendido que o segredo da vida é conservar melhorando. Ma non tropo. Silvio Romero, estudando as manias nacionais, alinhara entre elas o horror às mudanças. Com efeito, temos sido muito tímidos no que concerne às transformações estruturais, limitando-nos a cambiar o periférico, o circunstancial, o adjetivo. Caminhamos devagar, cautelosamente, apalpando o terreno, dourando a pílula, seguindo o velho lema – devagar com o andor que o santo é de barro…
Mas os próprios conservadores do Segundo Reinado, por vezes nos surpreenderam. Não o partido em si, posto que, na altura dizia-se que nada mais se parecia com um conservador que um liberal e vice-versa. Mas, o espírito conservador, que de resto sobrevive até mesmo nos dias que correm. Ao tempo de chamada Guerra Grande, em que Montevideo se convertera na Tróia americana, refém que estava das forças dos ditadores Oribe e Rosas, enquanto os liberais brasileiros manifestavam, estranhamente, a simpatia por estes, os conservadores pendiam para o lado da chamada La Defensa, de que era emissário entre nós o fino intelectual e político D. Andrés Lamas.
Assim pois, não seria de estranhar que Alfredo D’Escragnole Taunay, conservador convicto, pautasse sua carreira política pela defesa intransigente de idéias libertárias e democráticas.
Antes de explorar esse tema, apenas para dar um fecho a ação dos conservadores no Brasil, vale lembrar, que foram eles que ajudaram a construir a primeira República, mantendo-a a salvo dos retóricos e líricos e dos liberais radicais, incapacitados para a paciente urdidura da trama política e para o exercício do pragmatismo.
Quintino Bocaiúva, em importantíssimo depoimento para a História, na memorável reunião do Partido Republicano Fluminense, levada a efeito aqui em Petrópolis, em setembro de 1896, disse da sua participação no aliciamento de conservadores da velha província, para dar mais consistência e estabilidade à República no nascente Estado do Rio de Janeiro.
Nesse contexto entre paradoxal e surrealista, o Visconde de Taunay moveu-se com aquela naturalidade dos livres pensadores à francesa. Na sua vida parlamentar bateu-se pela secularização dos cemitérios, pelo casamento civil, pela liberdade de culto, temas que o Brasil republicano haveria de consagrar.
Mas talvez uma de suas maiores e mais profícuas atuações tenha sido como diretor da Sociedade Central de Imigração, a frente da qual foi intransigente na defesa da nacionalização do migrante e do reconhecimento de seus direitos civis e políticos no Brasil. Foi aí que o Visconde se entrosou com Karl von Koseritz e dessa comunhão de idéias e propósitos, certamente nasceu o folheto adrede mencionado.
Taunay via o homem num contexto universal e não discriminado aqui ou alí por sua condição de estrangeiro, pelo seu credo religioso ou por suas doutrinas.
Dos colonos alemães foi o Visconde amigo de todas as horas, assim como reptou com energia os chamados nativistas. Era em síntese, o nosso biografado um pensador desfronteirizado e ecumênico.
O aqui tantas vezes lembrado Karl von Koseritz no seu folheto de 1886, fazia um perfil do intelectual Alfredo D’Escragnole Taunay.
Na livraria Faro & Lino na rua do Ouvidor, reuniam-se entre 2 e 3 horas da tarde dos dias úteis, escritores de grosso calibre do Rio de Janeiro das últimas décadas do século passado. Ali faziam ponto Ferreira de Araújo, redator chefe da Gazeta de Notícias; Demerval da Fonseca; Valentim Magalhães, crítico implacável; André Rebouças, engenheiro de escol, amigo do Imperador, que o acompanhara na viagem ao exílio; Joaquim Serra, folhetinista; Machado de Assis, poeta e romancista e Alfredo Taunay, homem de muitos instrumentos, que nos seus quarenta anos, era no conceito de Koseritz, o mais vivo, o mais chistoso, o mais falante daquele grupo iluminado.
Desde 1871 Taunay havia se consagrado na literatura brasileira com o seu “A Retirada da Laguna”, peça única entre nós, obra traduzida em várias línguas, sucesso na Europa e na América. Aliando o tecnicismo das manobras militares, à epopéia dos dois mil soldados, que em meio aos maiores sofrimentos fizeram por trinta e cinco dias a retirada do inferno mato-grossense, num momento difícil da guerra contra o Paraguai, o futuro Visconde, soube deixar um documento vivo daquele momento histórico, inscreveu seu nome com letras de ouro nas páginas cobiçadas na literatura universal.
Não bastasse esse feito insólito e raro, eis que em 1872, Taunay dá à luz o seu “Inocência”, romance que se passa em Goiás e que faz a ponte entre o romantismo e o realismo.
Como autor de Inocência, poder-se-ia dizer que o Visconde de Taunay é precursor da literatura regional desenvolvida por Afonso Arinos, Hugo de Carvalho Ramos, Mário Palmeiro, Bernardo Elis, João Guimarães Rosa e Oliveira Melo.
Mas não ficou aí a sua produção literária. Com o prestígio que lhe deram esses dois rebentos, passou a produzir obsessivamente. E saíram à rua “Lágrimas do Coração”, “Ouro sobre Azul”, “Histórias Brasileiras”, “Céus e Terras do Brasil”, “O Ensilhamento”, romance de costumes urbanos que tem como tema a jogatina na bolsa nos primeiros anos da República.
Taunay tentou também a crítica literária e, em 1881, produziu “Estudos Críticos”, em dois volumes, obra rejeitada tanto por Koseritz como por Alcides Bezerra, que, em memorável conferência na Academia Carioca de Letras, em 1931, declarou enfático:
“O que se nota logo à primeira vista, é a sua incapacidade de síntese ao criticar”.
No jornal do Comércio do Rio de Janeiro, manteve Taunay uma seção de crítica musical chamada “Teatros e Música”. E aqui, na nossa Gazeta de Petrópolis, colaborou sob os pseudônimos de Agenor e A., durante os anos noventa do século XIX, últimos de sua curta existência, já que faleceu com 55 anos. São exemplos de sua atuação na “Gazeta”, as matérias “O Sistema Kneip e o Padre José Maria” e, “Impressões de Viagem ao Interior do Brasil”.
Uma pergunta calharia bem neste momento: Teria sido Alfredo D’Escragnole Taunay historiador? Tecnicamente não. Como bem assinalou Alcides Bezerra na conferência citada, publicada no Rio de Janeiro em 1937, Taunay “foi um historiador do tipo especial: o do momento que passa”. Então, poder-se-ia afirmar que ele foi essencialmente cronista, mas cronista veraz e minudente, elaborador de um repertório de informações e de documentos, de que a posteridade não pudesse prescindir, para lavrar com segurança a fidedignidade a certos campos da história brasileira.
Assinalou Alcides Bezerra:
“Ninguém poderá escrever a história da Guerra do Paraguai, sem tomar em consideração suas cartas e narrativas, seus diários e comentários dessa campanha, que agora estão vindo novamente à luz, coordenados pela piedade filial de seu eminente continuador, o Dr. Afonso de Taunay”.
Merecem portanto registro as seguintes obras vinculadas ao tema da também chamada Guerra da Tríplice Aliança:
“Marcha das Forças”, (Expedição de Mato Grosso – 1865/ 1866); “Do Rio de Janeiro ao Coxim”; “Em Mato Grosso Invadido”, (1866/ 1867); “Diário do Exército”, em dois volumes; “A Campanha da Cordilheira”; “Dias de Guerra e de Sertão”; “Narrativas Militares”; “Cenas de Viagem”; “Cartas de Campanha”.
A longa vivência do Visconde de Taunay no então ignoto Mato Grosso, fe-lo pioneiro da historiografia mato-grossense, fato que aliás nunca deixou de ser reconhecido pelos órgãos culturais, tanto do velho Mato Grosso, com capital em Cuiabá, como do Mato Grosso do Sul, com capital em Campo Grande.
São da lavra de Taunay:
“A Cidade de Ouro e das Ruínas”, (Mato Grosso antigo, Vila Bela); “Augusto Leverger – Barão de Melgaço” (Dados biográficos).
Alfredo Maria Adriano D’Escragnole Taunay, Senador do Império quando deu-se a República e cogitado por esta, ao tempo de Deodoro, para integrar a Câmara alta do Parlamento, quiçá em homenagem às suas idéias avançadas, que o novo regime homologara, deixou-se, entretanto, ficar no recesso de sua família, trabalhando intelectualmente até quase o momento de reintegrar-se ao uno.
Faltava um mês para completar seus 56 anos. Morreu, no Rio de Janeiro, a 25 de janeiro de 1899. O enterro saiu da então rua Larga de São Joaquim (hoje Marechal Floriano) nº 148. O corpo de Taunay foi sepultado no carneiro nº 1.464 do Cemitério de São João Batista. Seu caixão foi coberto com a bandeira da Sociedade União do Cocheiros.
À beira do túmulo falaram José Veríssimo e Joaquim Nabuco, estando o belo discurso deste publicado nos seus “Escritos e Diversos Literários”.