COM O BICO N’ÁGUA MORRENDO À SEDE

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

Não há nesta velha província fluminense região mais bem provida de cursos d’água que a baixada campista. Entretanto, toda essa riqueza hidrográfica praticamente de nada serviu ao longo dos séculos para o desenvolvimento daquela área aparentemente privilegiada.

Faltaram, ao fim e ao cabo, recursos e vontade política.

A história tem demonstrado que a tecnologia aliada à determinação administrativa é capaz de sobrepujar os grandes obstáculos oferecidos pela natureza. Estão aí os canais de Suez e do Panamá, para confirmar essa verdade inelutável.

Num relatório presidencial do ano de 1860, Inácio Francisco Silveira da Motta, então à frente dos destinos fluminenses, afirmava, ao tratar das vias navegáveis de sua província, que Campos dos Goitacazes contava com as seguintes alternativas:

1º – o rio Paraíba, de sua foz até São Fidélis, por onde podiam transitar canoas, barcos e pequenos vapores. Entretanto, as muitas cachoeiras fidelenses, onde justamente o terreno sofre enorme enrugamento, impediam a navegação normal rio acima. Apenas algumas canoas ousavam romper os obstáculos naturais, atingindo a Aldeia da Pedra (Itaocara) e mesmo o Porto Velho, no município de Cantagalo.

2º – o rio Muriaé, afluente do Paraíba pelo lado norte, com apenas 8 léguas (cerca de 50 kms) aproveitáveis para o curso de barcos e canoas.

3º – o rio Preto, afluente do Paraíba do lado sul, com 4 léguas (em torno de 25 kms) navegáveis por canoas no tempo das águas.

4º – os Dois Rios, também tributários do Paraíba pelo sul, permitindo precaríssimo trânsito a pequenas embarcações.

5º – o rio Pomba, também dificultado pelas cachoeiras.

6º – o rio Itabapoana, navegável da foz até 12 léguas (cerca de 75 kms) rio acima.

7º – a lagoa Feia, permitindo navegação em toda a sua circunferência, onde desemboca o rio Ururaí, percorrido por canoas até a lagoa de cima, que também é toda navegável.

8º – o rio Imbé, tributário da lagoa de cima, que carecia na altura de alguns melhoramentos, para permitir o escoamento dos produtos do então vasto município de Cantagalo.

9º – o rio Urubu ou Quimbira, que apesar de curto podia prestar-se à navegação por canoas de médio porte.

10º – o rio Macabu, que fazia a divisa dos municípios de Campos e Macaé, navegável por canoas até os limites de Cantagalo, vertendo pelo lado sul para a lagoa Feia.

Por aí se vê que, com um pouco de esforço e com alguma inversão de capital, o então vastíssimo município de Campos dos Goitacazes poderia ter desfrutado em pleno Império de um sistema integrado de hidrovias, que se completaria, evidentemente, com a viabilização de seu porto de mar, o que também foi negligenciado, fosse pelo governo geral, fosse pelo provincial.

A inadequação do porto de São João da Barra, na foz do Paraíba, ao serviço regular e seguro da cabotagem, fazendo a conexão de Campos com o mercado consumidor da Corte, foi sempre um tormento na vida campista e um enorme entrave ao progresso e desenvolvimento comercial e industrial do município e região.

O serviço da cabotagem era precário e perigoso.

Augusto Emilio Zaluar, em artigo publicado em “O Parahyba”, na edição de 20 de fevereiro de 1859, ferindo o tema da dificuldade que opõe à navegação a barra do rio, que só é praticável na enchente das marés, alvitrou:

“Não é a estrada de ferro de Niterói a Campos … que será a linha ativa do interior para a capital do Império. A linha fluvial e marítima disputa, à nova direção que se pretende dar à comunicação daqueles pontos com os grandes mercados, a barateza com transportes, que é a primeira e principal condição, para facilitar o incremento da lavoura e do comércio e, que tem sido encarada até hoje por este motivo, pelos mais abalizados economistas, a incontestavelmente preferível, desde que se coteje a sua importância, com uma outra estrada interior.”

Mais adiante, asseverou Zaluar:

“Assim pois, parece-nos afoitamente, que o carril de ferro de Niterói a Campos, não é neste momento a via de comunicação indispensável, que deve por em contato os grandes centros produtores daquele ponto da província com o mercado da capital. Antes os melhoramentos da barra de Campos, em que o governo, conseguindo maiores vantagens, dispensaria talvez, uma soma inferior à totalidade do juro com que tem de favorecer a empresa desta estrada de ferro, que resolveriam em proveito daquele município e dos outros a quem serve de intermediário, o não difícil problema do seu pronto engrandecimento”.

Enfim, o que visualizava Zaluar, em abono de sua estupenda percepção daquele quadro comercial e geo-político, era a construção de uma estrada de ferro, que atingindo São Fidélis daí se projetasse para o interior, onde o Paraíba já não era praticável por embarcações de porte, de modo que toda a produção do norte da província e de uma parte de Minas Gerais, chegasse pela ferrovia ao porto fidelense, de onde, pelo rio, via Campos e São João da Barra, chegaria com segurança aos centros consumidores. E note-se que na altura do artigo do diretor de “O Parahyba”, já havia uma empresa que fazia a navegação regular de São Fidélis a São João da Barra.

Construir-se, pois, uma estrada de ferro paralela à costa, entre Niterói e Campos, fazendo concorrência onerosa à navegação fluvial e marítima, seria um crime de lesa interesse público. Infelizmente foi isso que se deu quando da febre ferroviária no Brasil. Por trás desse esquema estavam os interesses dos grandes capitais britânicos.

E um dia, já na República, Campos e todo o norte fluminense se tornaram reféns do monopólio desastroso da Leopoldina Railway Co. Ltda.
E o porto de São João da Barra, a ser construído segundo os melhores padrões técnicos, nunca passou de um sonho de alguns idealistas e dos que pensavam no progresso de forma racional e econômica.
Projetos não faltaram durante a monarquia, para que se viabilizasse o porto de São João da Barra, mas todos eles esbarraram na inércia e no desinteresse da Assembléia fluminense.

No fim dos anos cinqüenta do século passado, o governo da província até que tentou buscar uma alternativa para a difícil e perigosa barra do Paraíba, onde as embarcações corriam risco de naufrágio e por vezes demoravam muito tempo para se deslocarem, a espera de vento favorável para a saída. Pensou-se então na enseada de Gargaú, um pouco ao norte de São João da Barra. Mas o orçamento das obras, estimado em seis mil contos de reis, derrubou as melhores expectativas e fez o projeto gorar no nascedouro.

Entretanto, o decreto provincial 669 de 28 de outubro de 1853, autorizava o governo a contratar com Thomaz Cochrane e outros, a construção de uma estrada de ferro que, partindo de Niterói e atravessando os municípios de Itaboraí, Rio Bonito, Cabo Frio e Macaé, atingisse Campos e São Fidélis, com um ramal para Friburgo e Cantagalo.
Embora tal autorização não tenha se factibilizado de imediato o certo é que mais cedo ou mais tarde o projeto viria a furo, matando qualquer possibilidade de se criar um grande porto na foz do Paraíba.

Se a operacionalidade em termos seguros e rentáveis da barra do Paraíba foi ficando para as calendas, o mesmo não ocorreu com a regular navegação do rio no trecho São Fidélis / São João da Barra, mesmo a despeito dos desmandos administrativos que acabaram por fazer com que os transportes naquela rica região da província andassem às cabeçadas.

A Companhia União Campista e Fidelista, organizada em Campos a 12 de agosto de 1855, com o capital de 350 contos de reis, dividido em 700 ações, fazia a ligação acima mencionada, contando com dois vapores – O Ceres e o Hermes -, que tinham condições de se aventurar barra afora no rumo do Rio de Janeiro. Além destes, possuía a empresa um vapor fluvial de força, para conduzir passageiros e rebocar barcos carregados de café, oriundos do vasto interior do município de Campos, da zona de Cantagalo e da chamada Mata Mineira.

Para que se tenha uma idéia da importância desse transporte no baixo Paraíba, basta dizer que pelo porto de São Fidelis haviam passado em 1858, cerca de 140 mil arrobas de café, fora outros gêneros tidos como de exportação vindos do município de Cantagalo e dos centros produtores mineiros, através das companhias de tropas.

Todo esse movimento era contemporâneo da abertura da estrada União e Indústria que, trabalhando numa outra vertente seria escoadouro também da produção cafeeira do médio Paraíba e de alguns de seus tributários, da província fluminense e de Minas Gerais.

Inúmeras tentativas houve, na baixada campista, do aproveitamento de alguns de seus cursos d’água, de modo a possibilitar a implantação de hidrovias naquela imensa área.

O canal do Nogueira, empreendimento mal sucedido, nascido em 1829 pela mão do Brigadeiro Antonio Eliziario de Miranda e Brito, teve suas obras iniciadas em setembro de 1833, conforme José Alexandre Teixeira de Melo no seu “Campos dos Goitacazes em 1881”. Doze anos depois, os trabalhos de abertura do canal ainda estavam inconclusos e não mais avançando, arruinou-se em pouco tempo o trecho construído, perdendo-se na altura, mais de mil contos de reis.

Este canal, à margem esquerda do Paraíba, na freguesia de Santo Antonio de Guarulhos, fora projetado para ligar o rio em epígrafe com a lagoa do Fogo, ou do Campelo, facilitando as comunicações da sede do município, com a paróquia do Morro do Côco, local de nascimento do eminente republicano Nilo Peçanha.

O Valão da Onça, ligando a lagoa deste nome com o rio Muriaé, começou a ser aberto em 10 de julho de 1840, por iniciativa de José Fernandes da Costa Pereira, não tendo também alcançado o sucesso que se desejava, inclusive pela sua pouca profundidade.

Salvou-se desse quadro frustrante, assim mesmo com algumas reservas, principalmente naquilo que concerne à conservação, o Canal Campos / Macaé, que tem seu marco zero no decreto provincial de 14 de abril de 1835, pelo qual era concedido a João Henrique Freese o direito exclusivo para levar a cabo tão avultada obra.

Somente a 16 de agosto de 1846, começaram a ser desapropriadas as terras por onde deveria passar o canal. O contrato de construção foi firmado a 9 de setembro de 1850. E a obra foi inaugurada solenemente a 2 de dezembro de 1861. Custou mais de dois mil contos de reis aos cofres provinciais. Tinha 90 kms de extensão e chegou a prestar bons serviços aos habitantes dos sertões do Imbé, Urubu, Ururaí, Lagoa de Cima e Macabú. Por ele transitaram madeiras para construção, lenha, farinha e legumes.

A história desse cometimento, que honra a engenharia do Império, é tema para alentado opúsculo.

Lamentavelmente, um polvo chamado Leopoldina Railway houve por bem matar o canal, pela tenaz e absoluta concorrência que lhe fez, desde os tempos da velha Estrada de Ferro Campos a Macaé.

Esta é uma outra história que daria um livro.