Curso Varnhagen – Alcindo Sodré (1895-1952)
Américo Jacobina Lacombe
A primeira vez que fui chamado a falar a respeito de Alcindo Sodré o fiz em tom de necrológio. Foi em 1952, no ano de sua morte, quando exercia eu o árduo mister de orador oficial deste Instituto. E comecei minha oração sobre esse historiador de Petrópolis afirmando que este próprio Instituto certamente não existiria se não nos animasse, a todos que o fundamos, a convicção de que, na força e no fervor do criador do Museu Imperial, estava uma de nossas grandes seguranças. Digo criador porque muitos dos que aqui estamos fomos testemunhas de como a idéia da fundação de um museu imperial em Petrópolis, idéia que várias vezes fora agitada, encontrou, em determinado momento, e em circunstâncias históricas favoráveis, o homem capaz e decidido a corporificá-la. Daí por diante a idéia do Museu, de que o Instituto foi uma das forças convergentes e formadoras, esteve para todos nós, indissoluvelmente ligada à personalidade de Alcindo Sodré.
O tema da aula de hoje é Alcindo Sodré, o Historiador, o Intelectual, o homem que teve a vitória suprema de ver realizado na maturidade um sonho da juventude. Por isso a sua biografia tem um tom acentuado de vivo entusiasmo. Sua existência, tão harmoniosa e afinal vitoriosa, conseguiu construir, com tanta repercussão, uma vida das mais profícuas.
Foi exatamente esse o aspecto que tão bem acentuou seu antigo e dedicado auxiliar, Paulo Olinto de Oliveira, ao prefaciar o volume In Memoriam publicado em 1956.
Fixemos, inicialmente, sua biografia para depois comentarmos-lhe a obra.
Nasceu em Porto Alegre, em 30 de novembro de 1895, oriundo de velhos troncos fluminense e gaúcho. Seu pai, o engenheiro Antônio Cândido de Azevedo Sodré, descendia de tradicional família da velha província do Rio de Janeiro, e sua mãe, Helena Porto, era ligada aos Jobim.
Veio ainda menino para Petrópolis e aqui ultimou seu curso secundário no velho Colégio S. Vicente, dos padres Lazaristas, período de sua vida que emocionadamente recordou em comovente discurso ao instalar-se a Associação dos Antigos Alunos daquele educandário.
Bacharelou-se em Direito em 1916, pela antiga Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, doutorando-se em Medicina em 1921, laureado com a medalha de ouro, Prêmio Miguel Pereira.
Iniciando a vida pública em Petrópolis, aqui ficou, constituiu família e construiu residência, militando com destaque na política e na administração do Município. Por diversas vezes mereceu a preferência do eleitorado, que lhe outorgou mandatos de Vereador em 1922, em 1924, em 1929 e, finalmente, em 1936, tendo sido secretário, vice-presidente e presidente da Câmara Municipal. Em duas ocasiões assumiu interinamente as funções de Prefeito, por ele exercidas em 1923 e 1939, cargo ao qual retornaria efetivamente mais tarde, por nomeação, exercendo-o de 14 de abril a 14 de novembro de 1945. Anteriormente, de 22 de dezembro de 1938 a 1° de abril de 1940, durante a operosa administração Magalhães Bastos, muito se distinguira no cargo de Secretário da Prefeitura, prestando valiosíssima colaboração ao mencionado Prefeito.
Proveitosos, realmente, foram os serviços prestados por Alcindo Sodré à terra petropolitana no exercício dos aludidos cargos. Desempenhou-os com verdadeiro espírito público, fazendo jus à confiança que o seu nome e os seus predicados inspiraram. Serviu-os com inexcedível zelo e probidade, granjeando honroso conceito ante os próprios adversários políticos.
Vida proveitosa ao próximo, e principalmente aos habitantes de Petrópolis, cujos interesses ele procurava velar através da pena ou da palavra persuasiva, achando ainda tempo para cuidar-lhes da saúde e mitigar-lhes sofrimentos com o exercício caridoso da medicina. Nesta profissão não procurava auferir proventos; mais parecia uma devoção, praticada na medida que os demais afazeres permitiam, jamais deixando de comparecer à farmácia da Renânia para, ao cair da tarde, atender os amigos e, principalmente, os menos favorecidos da fortuna, para os quais tinha sempre uma expressão de carinho e de amparo moral. Com este espírito benfazejo, pertenceu a várias associações, entre as quais a Sociedade Médica de Petrópolis, sendo mais tarde escolhido para a presidência da Legião Brasileira de Assistência nesta cidade.
Algo também lhe ficou devendo a juventude petropolitana pelos ensinamentos que lhe foram ministrados por ele, tanto como professor de História no Liceu Fluminense, do qual fora um dos fundadores, como ainda através do proselitismo disseminado através de suas lições, escritos e conferências sobre os assuntos históricos e de caráter cívico.
Em 1945, abandonando os seus demais afazeres pela Prefeitura de Petrópolis, deixou todas as sua turmas do Liceu, que o seu dedicado amigo e auxiliar, Lourenço Lacombe, assumiu até a extinção do educandário.
Dessa data em diante, até a fundação do Ginásio Estadual embora tivesse deixado de lecionar, jamais abandonou Alcindo Sodré sua qualidade de professor. Com que prazer discorria a seus auxiliares sobre qualquer ponto de História! E nunca deixou sem explicação nenhum estudante que viesse buscar algum esclarecimento. – O que é que há, jovem? Saudava ele o aluno que o vinha procurar. E com a afabilidade do mestre experimentado, discorria sobre o assunto que ali trouxera o interlocutor.
E não era apenas a inteligência, o brilho da exposição e expressão fácil de Alcindo que atraíam a juventude, mas, principalmente, o modo de encarar os fatos históricos, buscando o que neles mais ferisse a imaginação dos jovens, incluindo o aspecto anedótico. Seu objetivo principal – dissera certa vez – era que o aluno gostasse da História, pois adquirindo esse gosto estaria apto a estudá-la onde quer que fosse.
Criado o Ginásio Estadual voltou Alcindo Sodré à missão que, depois do Museu, mais grata lhe era: o magistério. E com que espécie de volúpia comentava os casos ocorridos em suas aulas e os incidentes verificados nas lições.
Era a ele que acorriam os estudantes quando o assunto de aula parecia menos claro; era ele quem indicava a bibliografia de determinado ponto e, servido por uma memória sem par, sabia, de cor, trechos inteiros de determinadas obras que lhe haviam ferido o pensamento.
Não se lhe falasse na epopéia das Bandeiras sem acordar nele a figura de Fernão Dias e ouvir os belos trechos do Caçador de Esmeraldas:
“A agonia do herói e a agonia da tarde”…
Ou, então, bastava que se tocasse na obra do sertanista, para que se escutasse, embevecido:
“Tu cantarás na voz dos sinos, nas charruas,
No esto da multidão, no tumultuar das ruas,
No clamor do trabalho e nos hinos da paz!
E, subjugado o olvido, através das idades,
Violador de sertões, plantador de cidades,
Dentro do coração da pátria viverás!”
Mas era a Guerra do Paraguai que lhe fazia vibrar as sensíveis cordas do patriotismo. E nenhum discípulo seu terá deixado de conhecer, pela sua voz privilegiada, servida de primorosa dicção, auxiliada por expressiva mímica, as estrofes ao Barão do Triunfo:
“Armas em continência! – é um morto vivo!
Ei-lo que passa agora, erguido ao alto
No esquife da vitória!
O Brasil o saúda, e tu, História,
Um poema de luz de novo escreves;
Soldados, cortejai Andrade Neves!”
O jovem médico e advogado, vindo do Rio Grande do Sul, que aqui fixou residência, não foi somente um apaixonado pela cidade que adotou. Foi também o autor de um plano que ele anunciou nessa espécie de manifesto que é A Cidade Imperial. O livro é de 1929. Para quem percorre hoje suas páginas tão ultrapassadas, que já evocam uma época remota da sociedade brasileira – tão intenso tem sido o ritmo de nossa transformação – há um propósito que emana de todos os capítulos, de todos os parágrafos e que sintetiza, enfim, no título – que é um lema: ligar definitivamente a cidade à tradição imperial, enquadrar a paisagem da cidade no culto do regímen que deu tão gloriosos frutos ao país. Por que, afinal, escreveu o autor aquelas linhas que às vezes nos parecem ingênuas em face da grande informação que revelam as páginas iniciais? Evidentemente para colimar o ideal enunciado nas palavras finais: “Que os brasileiros do futuro, quando te visitarem, experimentem sempre a vibrante emoção de surpreender a tua deliciosa fisionomia local, e através da folhagem das magnólias, observem, como nas selvas encantadas do Tasso, as veneráveis imagens do nosso passado”. Era este o ideal a que se devotou. Percorrendo as ruas e estradas deste município, que ele conhecia palmo a palmo, o que visava, acima de tudo, era imprimir a esta paisagem a marca espiritual do respeito ao passado a que ela servira de moldura.
As conjunturas históricas, num dado momento, permitiram que o Governo Federal, o Estadual e o Municipal se unissem na execução de um plano. Transformar o antigo palácio no centro desse culto de que Alcindo Sodré se fizera apóstolo. A felicidade de ter sido a empresa entregue a quem a queria ver vitoriosa é das que raramente se repetem na administração. O que ela representa hoje, todos o sabemos. O Museu Imperial não é mais uma instituição local, nem mesmo nacional. Sua fama já ultrapassou as fronteiras do país. É citado e apontado no estrangeiro como das mais perfeitas realizações brasileiras. Nada disso se teria dado se o primeiro diretor não tivesse, acima de tudo, a alma do verdadeiro realizador de um ideal longamente acariciado e amadurecido. Quem o viu, acompanhando enternecidamente, o ideal de um museu petropolitano, desde o velho Palácio de Cristal; quem o viu nos primeiros momentos da instalação do atual, pode bem avaliar o que representou de esforço de administração a obra de Alcindo Sodré. Há um tal peso de rotina e de negativismo na burocracia brasileira que é preciso, às vezes, heroísmo para conseguir as mais comezinhas providências indispensáveis ao bem geral. Por isso o apoio que sempre lhe foi dado pelo Governo Federal, a simpatia que sempre teve pelo empreendimento o Governo do Estado, a compreensão indefectível dos poderes municipais, a assistência técnica imprescindível e eficaz da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, todos estes elementos não teriam bastado se, coordenando a todos, não houvesse a hábil e entusiástica atividade do dinâmico diretor, lutando contra todas as forças da inércia, nesta realidade que todos nós hoje contemplamos com orgulho. Alcindo Sodré tinha de que se orgulhar, quando percorria feliz os salões de sua casa. Aquilo era a realização de um grande sonho. Se a felicidade consiste, conforme a clássica definição, em realizar na maturidade o sonho da juventude, Alcindo Sodré foi um homem feliz. O seu sonho aí está. O Museu é o mais forte elemento para que os moços brasileiros vejam através da paisagem de Petrópolis “as veneráveis imagens do nosso passado”.
A Petrópolis dedicou Alcindo Sodré todas as forças de sua ação – ação política e ação cultural.
“Político, ele foi pertinazmente, em toda a sua vida adulta. Começou cedo, militando na oposição, e, não obstante, conseguindo ser eleito vereador. Mas, como toda pessoa que sente em si a vontade e a capacidade de realizar alguma coisa de positivo em prol da coletividade, não se contentava em ficar na oposição, na atitude negativa de criticar o governo. O seu anelo era chegar a este e, assim, pôr em prática as idéias que julgava úteis e oportunas. Na Câmara e na Prefeitura do Município, a sua atuação caracterizou-se pelo empenho em conservar e restaurar a fisionomia peculiar de Petrópolis. Proibiu que se destruíssem, como começara a ser feito, as grandes pedras arredondadas que adornam o leito ou as margens de alguns dos nossos rios; mandou limpar das parasitas, que as desfiguravam e matavam, as paineiras cuja florada enfeita de modo tão magnífico algumas das ruas de Petrópolis; protestou contra a derrubada que mal avisados prefeitos determinaram das magnólias que constituíam a arborização típica das ruas principais da cidade; contribuiu para a adoção do novo brasão de armas do Município; ordenou a restauração, no sentido do seu antigo destino, de uma das mais tradicionais e curiosas edificações da cidade, o Palácio de Cristal, em que pretendia estabelecer uma exposição permanente de flores petropolitanas, obra infelizmente abandonada por seus sucessores…
“Foi pela sua ação cultural, todavia, que Alcindo Sodré melhor serviu a sua pequena pátria de adoção. Exerceu-a, primeiramente, pela imprensa, dirigindo por algum tempo um ou outro dos principais jornais da terra, e dando a sua colaboração – sempre distinguida pela casticidade, por vezes mordaz, do seu estilo – a quase todos os periódicos que aqui se publicaram no seu tempo. Exerceu-a, também, de modo profundo, servindo como professor em vários colégios e, sobretudo, no Liceu Fluminense, que com outros fundou e manteve durante muitos anos, nesta cidade, e no Ginásio Estadual, de cuja existência foi um dos propugnadores. Exerceu-a, ainda, tomando parte, na fundação ou no desenvolvimento de várias associações culturais, que aqui se estabeleceram e vingaram, como a Sociedade Médica de Petrópolis, a Academia Petropolitana de Letras, o Instituto Histórico de Petrópolis, a Associação dos Antigos Alunos do Colégio São Vicente de Paulo”. São palavras do eminente sócio fundador deste Instituto, Dr. Mesquita Pimentel, que o substituiu na presidência desta Casa, em sentido artigo que lhe dedicou.
Intensamente dedicado ao passado petropolitano, foi autor da proposta formulada em 1937 pela Câmara Municipal ao Prefeito Iedo Fiúza para designar uma comissão incumbida de sugerir ao poder público as comemorações a serem realizadas por ocasião do centenário da fundação de Petrópolis. E nessa Comissão, de que foi eleito secretário geral, tomou posição definida e atuante contra a corrente que pretendia atribuir aos alemães de 1845 a fundação de Petrópolis. E provou, documentadamente, não ter sentido o fato de que a criação de uma cidade brasileira, em terras pertencentes ao Imperador, ser consequência da chegada fortuita e inesperada dos emigrantes alemães. Não se deve, pois, confundir, sentenciava ele, o ato da fundação com o da colonização.
Através dos sete volumes dos Trabalhos da Comissão divulgou farta e preciosa documentação sobre o passado local, a que juntou oportunos e bem lançados comentários, através das “Crônicas Petropolitanas”. Mas foi nos artigos polêmicos em torno de 16 de Março, estampados ainda nesses volumes, que melhor demonstrou o brilho de sua palavra e o vigor de sua dialética. Defendendo o Decreto de Dom Pedro II – como o ato fundamental de Petrópolis, ninguém mais que ele lutou, escreveu, pesquisou, provocou, e por fim venceu. E nesse trabalho de pesquisa histórica identificou-se Sodré de tal maneira com a data de 16 de março que não se pode hoje falar nela sem citar o nome do grande batalhador.
Por uma dessas coincidências do destino foi num 16 de março que se deu a sua prematura morte…
A história de Petrópolis teve nele o seu grande incentivador. Em torno da mesa de leitura da Biblioteca do Museu, que ele fundara – ou, mais precisamente, em torno de Alcindo Sodré, reunia-se um grupo de intelectuais e historiadores, que Afrânio Peixoto chamou de Clube do Lero-Lero.
Ninguém melhor que Pedro Calmon descreveu essas reuniões: “No verão, quando tanta gente se refugia na serra, o Museu era um ponto obrigatório de reunião e Afrânio Peixoto dirigia os debates com a sua verve inesgotável. Funcionava ali, intermitente, uma fábrica de boas frases, de sabedoria amável, de crítica histórica, de jovial noticiário cujo centro era, compreensivelmente, o passado brasileiro, com o seu pitoresco e o seu mistério. Dispersos, com o fim da estação, os sócios espontâneos do grêmio indiscreto, lá ficava, debruçado sobre os seus papéis, o dono da casa, interminavelmente ocupado na organização, na arrumação, no estudo do tesouro de reminiscências e relíquias a que dera uma ordem perfeita no solar do Imperador”.
Esse grupo de estudiosos era alguma coisa como o que fez Rodolfo Garcia quando diretor da Biblioteca Nacional.
Porque o Museu não é somente a reconstituição do cenário onde se desenvolveu a vida da Família Imperial. Apenas montada aquela Casa, logo se tornou ela um centro de estudos e uma escola de pesquisas. Eu tive ocasião de assistir algumas palestras que Alcindo Sodré realizava perante visitantes. Não somente os eruditos e estudiosos visitantes estrangeiros, mas perante colegiais secundários, ou até primários. Era de ver-se o carinho como o erudito descia até o entendimento dos jovens estudantes e conseguia dar à palestra o tom alegre mas entusiástico. Ao lado dessa atividade, a biblioteca, o arquivo, dos mais importantes do Brasil, desde a nunca assaz louvada doação dos papéis do Castelo d´Eu. O Museu não poderia ser uma instituição de cultura sem uma publicação à altura de suas riquezas, de seus livros e de seus papéis. Em 10 volumes (que foram os por ele publicados) o Anuário do Museu Imperial alçou-se a uma das principais publicações científicas de História do Brasil. A colaboração pessoal de Alcindo Sodré nesta publicação é digna de nota. Desde o primeiro número, o estudo Dom Pedro II em Petrópolis é o amadurecimento das idéias do livro de estréia. Na pesquisa, no cuidado das citações, revela-se o historiador que realizava, aos poucos, a obra entrevista pelo literato; no segundo número, o estudo sobre A Imperatriz Amélia é um trabalho de conservador, em torno de peças valiosas adquiridas para o Museu; no terceiro há um estudo rápido sobre Dom Pedro II, Chefe de Estado. Em todos os números aparece a marca de sua colaboração incansável; no quarto volume, relativo a 1943, há novo trabalho sobre Louças Imperiais, novamente em torno das riquezas conseguidas para o Museu. Da mesma importância é o estudo sobre os Objetivos Históricos Brasileiros na Corte da Suécia (volume V), A Biografia de José Martins da Cruz Jobim, seu antepassado, é um excelente ensaio biográfico, que honra o volume VI. Foi lida, aliás, sob a forma de conferência, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ainda em torno de peças históricas gira o estudo sobre O Grito do Ipiranga na concepção dos artistas, que ocorre no volume VII. Pedro II e os intelectuais portugueses, no volume VIII, já representa uma pesquisa no opulento arquivo do Castelo d´Eu. Fardamentos Imperiais (volume IX) são ainda tentativas em torno de um assunto de museologia. No volume X há apenas algumas notas que precedem o diário do Imperador em sua visita a Paulo Afonso.
Já que estamos falando das atividades literárias de Alcindo Sodré, não é possível deixar de mencionar a tese apresentada ao Terceiro Congresso de História Nacional sobre O Elemento Servil – A Abolição, publicada nos respectivos anais, volume IV, trabalho primoroso de pesquisa, pela forma, pelas conclusões.
“Com arraigado espírito de velho fluminense, como muito bem observou seu amigo Levi Carneiro, Alcindo Sodré estudou, particularmente, a situação da província do Rio de Janeiro considerada o maior reduto do escravagismo, comparando-a com a de São Paulo e fixando as causas do desenvolvimento desigual de uma e de outra”.
Ele recordou certa vez o que chamou de velha afirmativa: “O verdadeiro patriotismo não é o amor à terra mas o amor ao passado”. Mas não se pode, só por isso, acoimá-lo de monarquista – pois ele próprio se declarava pedrista. Se pudéssemos ressuscitar Pedro II, disse muitas vezes, seria então monarquista. Era especial e principalmente tradicionalista.
Na sua obra sobre a Abolição, escrita em 1940, comenta com seu atilado espírito de fluminense, uma questão que ainda hoje, volta e meia, se renova – a da fusão do Estado da Guanabara – no seu tempo Distrito Federal, com o Estado do Rio. E escreve:
“A Constituição de 1824, estabelecendo a sede do Governo Nacional do Rio de Janeiro, reconheceu implicitamente que esta cidade era a capital da Província do mesmo nome e, no art. 72, dispondo sobre os conselhos gerais provinciais, restringiu, genericamente, que estes conselhos “se devem estabelecer em cada província onde não estiver colocada a capital do Império”.
“A Província do Rio de Janeiro era, pois, a única que não podia constituir o seu conselho provincial porque a sua capital era também metrópole do país, cuja organização política exercia e confundia-se com a administração da Província, e isto, enquanto fosse sede do governo imperial, cuja hipótese de transferência estava constitucionalmente consignada.
“Pelo Ato Adicional, os conselhos gerais foram substituídos pelas assembléias legislativas provinciais e pelo artigo 1°. “A autoridade da assembléia legislativa da província em que estiver a corte não compreenderá a mesma corte nem o seu município”. E pelo artigo 2° o Rio de Janeiro, como grande Província, junto a Pernambuco, Bahia, Minas e São Paulo, devia ter uma assembléia de 36 membros, quando as demais estavam nas categorias de 28 e 20 membros. Em face desses dispositivos o governo da Província foi instalado em Niterói e o seu primeiro presidente foi nomeado, como se fazia para as outras, recaindo a nomeação no Visconde de Itaboraí. A situação de direito não alterou, todavia, a realidade de fato, uma vez que a representação política junto à Assembléia Geral do Império era uma só, e participando o Município Neutro nas eleições como legítima comuna fluminense. A verdadeira capital do Rio de Janeiro era a cidade de seu nome, e de toda a grandeza econômica da circunscrição participou o seu desenvolvimento, ficando como símbolo indelével o Palácio do Catete, do Visconde de Nova Friburgo.
“A Constituição de 1891 veio então determinar em seu art. 2° que “Cada uma das antigas províncias formará um Estado, e o antigo município neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser capital da união, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte”. E o parágrafo único do artigo seguinte dizia: “Efetuada a mudança da capital, o atual Distrito Federal passará a constituir um Estado”.
“A República veio ser madrasta para o Rio de Janeiro. Não só separou politicamente o Município Neutro do Estado a que pertencia, como dispôs que, no caso da mudança da Capital Federal, esse município deveria constituir absurdamente um novo Estado. Como explicar essa espoliação sumária feita ao Rio de Janeiro?
“Na constituinte republicana, só a representação fluminense protestou contra o esbulho. Como sói acontecer nas assembléias constituintes, as bancadas tinham o invariável cuidado de justificar na tribuna todas as atitudes assumidas. No importante caso do Município Neutro, apenas o representante do Distrito, ou melhor, os interessados partidaria e ocasionalmente numa separação eleitoral, Thomaz Delfino à frente, em tiradas oratórias de puro jogo de palavras, justificaram a medida. As grandes representações como as de Minas, São Paulo, Rio Grande, Bahia e Pernambuco votaram, silenciosa e maciçamente, um dispositivo que contrariava a realidade, e constituía um golpe aos mais sérios interesses fluminenses, por isso que consumava verdadeira decapitação a uma unidade política, social e economicamente organizada e facilmente reconhecível em toda a evolução de seu homogêneo desenvolvimento. Só uma explicação pode subsistir: castigava-se uma Província que por força de circunstâncias resistira à Abolição, e era apontada como baluarte da Monarquia e centro capaz de manter em fogo lento a idéia de uma restauração. E por isso, cortou-se-lhe politicamente, a sua cabeça…
“No mais, a cidade do Rio de Janeiro continuou, ainda é e será a capital do Estado do Rio de Janeiro. Que importa a ficção do moderno nome de carioca com que se pretende substituir a designação de imprensa fluminense, contida nos velhos autores daqui e de além mar, desde o jornal de Evaristo da Veiga, que se chamava Aurora Fluminense? Como se poderá apagar o fausto da sociedade imperial que se reunia no Cassino Fluminense? Ainda não está aí, no campo da cultura física, o Club de Foot-Ball Fluminense? A cidade do Rio de Janeiro é, de fato, como o é por direito, a capital do Rio de Janeiro. Todo o fluminense que prospera no Estado tem residência na Metrópole. O fruticultor de Iguaçu, o salineiro de Cabo Frio, o fazendeiro de Barra Mansa, têm casa na Cidade. As economias, as transações são colocadas e feitas nos Bancos da sua Cidade. Qual o Banco do Estado do Rio? A imprensa “carioca” não é a que noticia detalhes e circula no território do Estado? A percentagem maior, dominante mesmo, dos habitantes da Metrópole não é constituída por fluminenses que ali se distinguem nas cátedras das Faculdades, em toda a atividade do Distrito e, duma feita, até na representação do Senado foram maioria com Paulo de Frontin e Sampaio Correia?
“Não se diga que a cidade do Rio de Janeiro formou-se e engrandeceu-se pelo simples fato de ser Capital Federal. A razão principal é o seu porto, a sua localização geográfica, central e convergente, é a sua beleza natural – é ser a grande expressão gregária dos fluminenses. Washington é a capital da grande União Norte Americana, e nem por isso deixou de estacionar como centro urbano de terceira ordem na vida daquele país. No dia em que a sede do Governo Federal for transferida para outro sítio do território, a cidade do Rio de Janeiro deixará de ser o que é, ou melhor, não terá talvez um desenvolvimento mais rápido, erigindo-se numa Nova York nacional? E por que essa determinação bisantina do Distrito Federal passar a ser um Estado, uma cabeça sem corpo, quando não se pensou na mesma esdrúxula medida no momento em que a capital do Brasil cessou de ser a cidade do Salvador da Bahia?
“Já dizia Rocha Pita, que entre os governos de Minas, São Paulo e Rio, independentes entre si, e só sujeitos à Bahia, “o mais ilustre dos três é o do Rio de Janeiro, pela antiguidade, magnificência e trato político dos seus moradores”. No Segundo Reinado, a Província do Rio de Janeiro, muitas vezes governou o Brasil pelos seus homens públicos que formavam os gabinetes, e teve à frente da sua administração e como representantes na Assembléia Geral do Império os homens mais notáveis da época. Unido hoje o Estado do Rio ao Distrito Federal pela mais alta e recíproca conveniência, voltaria desde logo essa região nacional a ocupar posto de vanguarda na vida do país.
“Qual a razão de impedir-se que os dois se reajustem numa unidade que se completa sob todos os sentidos?
“Só assim seria reparada a injustiça que a República perpetrou, agravando o rude choque econômico que a Abolição cometeu na grandeza da esplêndida Província”.
Foi com esse conceito do passado, ou melhor dizendo, das melhores tradições brasileiras que, às vésperas da Constituinte de 1934, escreveu e publicou um vibrante e corajoso livro – A Gênese da Desordem – em que recorda nossos antecedentes históricos, critica palavras e atos dos próceres da Revolução de 1930, concluindo pela importância da preservação do Presidencialismo e da Federação para a salvaguarda de nossa liberdade.
O seu espírito americanista teve ocasião de chamar a atenção – e foi o primeiro que o fez – para o sentido histórico das relações entre o Brasil e os Estados Unidos. A justeza de seus conceitos e o conhecimento de nossas tradições estão estampados em Jefferson, D. João VI e o Panamericanismo, onde divulgou a Carta-Régia de 1808 dirigida aos Estados Unidos da América do Norte.
E por que não mencionar ainda o livro que deixou no prelo em torno das cartas de D. Pedro II à Condessa de Barral? É trabalho que hoje se acha incorporado definitivamente à escassa produção brasileira no gênero, feito com alma, com amor e com inteligência.
Eis o que, no limitado espaço de uma aula, me foi dado dizer sobre esse historiador petropolitano (chamêmo-lo assim) que foi Alcindo de Azevedo Sodré.
Inspirados no seu exemplo e vivificados por seus escritos, olhemos para Petrópolis e experimentemos sempre a vibrante emoção de surpreender a deliciosa fisionomia local, e através da folhagem das magnólias (já tão raras hoje, ai de nós!) observemos, “como nas selvas encantadas do Tasso, as veneráveis imagens do nosso passado.”
Petrópolis, setembro de 1966