A ESTANTE GEOGRÁFICA PETROPOLITANA
Rascunho Crítico

Julio Ambrozio, ex-Associado Titular, Cadeira n.º 30, Patrono – Monsenhor Francisco de Castro Abreu Bacelar

Os saberes geográficos acerca de Petrópolis, neste artigo, oscilam entre um pequeno livro descritivo-enciclopédico e duas monografias urbanas, passando por uma pesquisa da função industrial petropolitana e outra, bem mais recente, sobre os impactos e reações do meio físico ante a ocupação urbana. O livro noticiado é de autoria de Paulo Monte (1) , cento e vinte sete páginas arranjadas em bonita edição com sete capítulos: município, história, lendas, geografia física, geografia política, geografia econômica, costumes, além de dois subtítulos que descrevem a fauna e a flora.

(1) Monte, P. Chorographia do Município de Petrópolis, Typographia Ypiranga, Petrópolis, 1925.

Descritivo e laudatório, cheio de informações saborosas para um ledor distante setenta e oito anos, sem dúvida, estava Paulo Monte em campo oposto ao de Carlos M. Delgado de Carvalho, que já antes da fundação da USP e da vinda de Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, guerreava contra o ensino enciclopédico e de relação. (2)

(2) Sobre Delgado de Carvalho ver Abreu, M.A. “O Estudo Geográfico da Cidade no Brasil: evolução e avaliação, contribuição à história do pensamento geográfico brasileiro”, pp. 204-205, in Os Caminhos sobre a Cidade e o Urbano, org. Fani Alessandri Carlos, Edusp, Sp. 1994.

É de se notar que no mesmo ano e cidade em que Delgado de Carvalho publicava “Methodologia do Ensino Geográphico” (3) era editada a corographia de Paulo Monte.

(3) Delgado de Carvalho, C. M. Methodologia do Ensino Geográphico — Introdução aos Estudos de Geographia Moderna, Typographia Vozes, Petrópolis, 1925.

Afastada do livro de Paulo Monte, a primeira monografia urbana acerca de Petrópolis também é um dos primeiros estudos de geografia tradicional de corte francês no Brasil. “Petrópolis – Esboço de Geografia Urbana” (4) , de Philippe Arbos, configura-se como perfeito exemplar da seqüência metodológica encontrada em “O Estudo Geográfico das Cidades”, de Pierre Monbeig (5), embora Maurício Abreu (6) noticie que já em 1937 Arbos teria proposto idêntico modelo, sugerido em aula de geografia urbana na antiga Universidade do Distrito Federal.

(4) Arbos, P. “Esboço de Geografia Urbana”, Comissão do Centenário de Petrópolis, P.M.P., vol. VI. pp. 173-225.

(5) Monbeig, P. “O Estudo Geográfico das Cidades”. In: Boletim Geográfico, ano I(7), RJ, outubro-1943. pp. 7-29. A primeira publicação de “O Estudo…” é de 1941, pela Revista do Arquivo Municipal de São Paulo.

(6) Abreu, M. “O Estudo Geográfico da Cidade no Brasil”, op.cit., p.208.

É possível, aliás, que Abreu, não conhecesse a primeira edição em português, 1943, do esboço urbano-petropolitano de Arbos. Está indicado na bibliografia (p.284) do trabalho de Maurício Abreu, afora a editada pela Révue de Geógraphie Alpine, apenas duas publicações, ambas de 1946, da monografia do professor francês. As duas no Boletim Geográfico. Abreu, ademais, indica 1938 como a data da pesquisa de Arbos (p.206). Não sei. Porque Alcindo Sodré, na apresentação do Esboço… para a primeira edição petropolitana e brasileira, 1943, informa que estava sentado na Biblioteca Municipal de Petrópolis, quando adentrou certo indivíduo, “…baixo, grosso de corpo, o crânio calvo, olhos claros e penetrantes, barbas cheias, longas e brancas, como acontece ver-se na reprodução das respeitáveis personagens dos episódios bíblicos”, procurando por Nereu Rangel Pestana, diretor de Educação e Cultura do Município, para algumas indagações. Escreve Sodré que Arbos anotava com precisão e “profundidade própria de quem possue um plano prévio e seguramente estabelecido”. O que confirma o domínio do método por Philippe Arbos antes da publicação do texto de Monbeig, conforme nota Maurício Abreu. Arbos, aliás, está citado na bibliografia do artigo de Monbeig. A dúvida é que, adiante, Sodré anota: “…munido de alguns dados e esclarecimentos por nós fornecidos às suas largas pesquisas bibliográficas já realizadas (grifo meu), Arbos conseguiu escrever este seu apreciável Esboço…” Ora, Alcindo Sodré data o verão de 1937 como o período da visita desse francês. Por aqui, possivelmente, poder-se-ia depreender que o grosso da pesquisa estava já feito em 1937. O ano 1938 foi para escreve-la. A tradução do Esboço… para a edição petropolitana foi feita da Revue de Geographie Alpine, Universidade de Grenoble, pelo prof. Dr. Odilon Nogueira Matos, da USP. Resta saber se as duas publicações feitas no Boletim Geográfico tem origem nesta tradução.
De fato, o professor francês não apenas expusera o método, como o aplicara integralmente em Petrópolis. A preocupação com a paisagem, com a evolução histórica, com as estruturas e funções urbanas, claramente, vive nesse “Esboço…”. Philippe Arbos gostou de Petrópolis. “Organismo Urbano” é o título que deu ao último subtítulo de seu trabalho, conclusão que, apreendendo as partes da cidade, enxergava orgânico equilíbrio entre todas elas. Se, por exemplo, a indústria era a grande responsável pelo crescimento populacional, ela “…não mancha a natureza, pelo contrário, às vezes forma com ela quadros pitorescos…” (7) . É possível que, em 1937, não tenha sido difícil para Arbos configurar um texto que transpira amor pelo objeto. Àquela altura, Petrópolis poderia bem ser uma bela cidade. A monografia do geógrafo Arbos, contudo, não deixou de ser espécie de um gênero, pois, lendo a serrana Petrópolis como “cidade-parque”, (8) subsumiu em todas as suas páginas o olhar da elite brasileira para a cidade.

(7) Arbos, P. “Esboço de Geografia Urbana”, Comissão do Centenário de Petrópolis, P.M.P., vol. VI. , p.223.

 

(8) Idem, op. cit., p.224.

A segunda monografia, do engenheiro Virgílio Corrêa Filho (9) , assistente técnico do C.N.G., é estudo intra-urbano – apesar de tratar de três cidades serranas fluminenses. Não é trabalho sobre as eventuais redes ou hierarquias urbanas entre Petrópolis, Teresópolis e Friburgo – nem ao menos um subtítulo existe acerca do tema.

(9) Corrêa Filho, V. “Cidades Serranas, Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis”, Revista Brasileira de Geografia, nº1, ano IX, janeiro-março, 1947, pp.4-56.

As três cidades aí estão unidas devido à posição de proximidade que ocupam em uma seção da serra do Mar, à nordeste da baía da Guanabara. Esse arranjo exterior, diga-se de passagem, impediu que esse engenheiro sopesasse a “atração” que a calha do rio Piabanha (10) exerce sobre Petrópolis, vinculando mais a cidade às Minas Gerais do que à serrania fluminense. Contraparente do método proposto por Pierre Monbeig, “Cidades Serranas” não carrega a acuidade e beleza do texto de Arbos.

(10) O rio Piabanha, escoadouro dos rios e riachos petropolitanos, atravessa a cidade à procura do rio Paraíba do Sul, próximo à cidade de Três Rios, sítio de união do Piabanha, Paraíba do Sul e Paraibuna, este com suas nascentes em Minas Gerais. O Rio Piabanha foi a linha física que inspirou, paralelo a ela, parte do traço da antiga e macadamizada estrada União e Indústria — Petrópolis-Juiz de Fora — , fundada em junho de 1861. [NdA].

“A Função Industrial de Petrópolis” (11) , o quarto texto mencionado, é o mais relevante trabalho conhecido sobre um aspecto da cidade – a indústria – ainda hoje escassamente estudado.

(11) Cezar de Magalhães, J. “A Função Industrial de petrópolis”, Revista Brasileira de Geografia, IBGE, ano XXVIII, janeiro-março, 1966, nº 1, pp. 20-55. Refiro-me as páginas 29-33.

Cezar de Magalhães constrói sua pesquisa debruçado sobre as linhas da paisagem, valorizando o lugar, os fatores locais, tais como os transportes, recursos hidráulicos, clima, mão-de-obra, etc, (12) notando, por exemplo, a forma longa e delgada dos estabelecimentos fabris ligada à estreiteza longitudinal dos vales petropolitanos; descrevendo o clima úmido como elemento de influência de localização, pois deixava os fios da indústria têxtil de algodão menos quebradiços. Cezar de Magalhães percebeu o papel da atividade indústrial na evolução do espaço urbano petropolitano. Importante e informativo, “A função Industrial de Petrópolis” – já o nome anuncia – é capítulo econômico da Geografia tradicional realizada no Brasil, portanto, despregado das determinações invisíveis geradas pelas relações sociais de produção, que muito explicariam a divisão territorial do trabalho petropolitano.

(12) Cf. Estall, R. C. e Ogilvie Buchanan, R. A Atividade Industrial e Geografia Econômica, Zahar, editores/MEC, 2º ed. , RJ, 1976.

O quinto trabalho mencionado aqui, “Movimentos de Massa na Cidade de Petrópolis (Rio de Janeiro)” (13) , quase ia dizendo, subsídios ao planejamento estatal urbano, embora trazendo pertinente contribuição ao saber ambiental dessa cidade, não permite melhor compreender o significado do impacto urbano que afeta o ambiente serrano-petropolitano, pois dista do aparato crítico-geográfico, para o qual o espaço é materialidade social.

(13) Gonçalves, L.F.H e Guerra, A.J.T. “Movimentos de massa na Cidade de Petrópolis”, Impactos Ambientais Urbanos no Brasil, org. Guerra, A.J.T. e Cunha, S.B., Bertrand Brasil, RJ, 2001.

Guardados nesta estante geográfica da literatura petropolitana, existem ainda quatro trabalhos: “Caráter Geográfico da Cidade Industrial” (14) , “Monografia do Município de Petrópolis”(15) , “Aspectos da Geografia Industrial de Petrópolis” (16) e “Geografia Petropolitana”(17) .

(14) Santos, J. E. D. dos. “Caráter Geográfico da Cidade Industrial”, Boletim Geográfico, IBGE, ano XXV, nº 194, setembro/outubro, RJ, 1966.

(15) “Monografia do Município de Petrópolis”, nº455, IBGE.

(16) Carvalho. P.R.P. de. ‘Aspectos da Geografia Industrial dePetrópolis – Petrópolis e seu destino industrial”. O Retorno da Princesa, org. Joaquim Eloy Duarte dos Santos e Paulo Gerônimo Gomes dos Santos, P.M.P/ Câmara Municipal, Petrópolis, 12-13/05/1971.

(17) Ambrozio, J. Geografia petropolitana, ed. do autor, Petrópolis, 1993.

O segundo é um dos títulos da série de monografias urbanas realizadas pelo IBGE. O primeiro e o terceiro, unidos pelo tema econômico, são artigos intra-urbanos fraturados entre a descrição laudatória e o resultado, na província, da influência da geografia “clássica”. Se bem que meritórios por seus esforços no conhecimento de sua cidade, de fato, circunscritos à bibliografia reveladora, esses artigos não arranham o movimento mais geral – e influente – da dinâmica industrial e urbana brasileira, presos a uma preocupação locacional e descritiva que os isolam das relações sociais. (18)

(18) Por exemplo: “Aspectos da Geografia Industrial de Petrópolis”, de Pedro Rubens Pantolla de Carvalho, reserva interesse para o leitor de hoje, 2004, apenas naquilo que guarda de retrato instantâneo tirado em 1971. Não incorporando em seu artigo outros textos, Pedro Rubens retirou de sua escrita a possibilidade de uma descrição mais informada e envolvida com os grandes processos sócio-espaciais. Conseqüentemente, trinta anos após, revela-se diminuida a sua fotografia otimista de época, uma vez que no mesmo instante em que escrevia Pantolla de Carvalho, estava em curso os processos sócio-espaciais que, adiante, iriam destruir a industria petropolitana.

O quarto trabalho, aqui avistado pouco mais de dez anos de sua publicação em livro, permaneceria como uma geopoética que procura afirmar o valor do plano de composição como realizador de conhecimento. Raiano de vários saberes, afastando-se muitas vezes de seu próprio título, esse pequeno livro percorreria a paisagem, o lugar e o território serrano-petropolitano com procedimentos vizinhos aos da literatura e da arte. Poder-se-ia escrever que a realidade do homem nesta serra da Estrela, em “Geografia Petropolitana”, não foi somente apreendida pela descrição científica que mira as generalizações, mas sobretudo lida através da subjetividade, que instituiria torcido e nebuloso acordo entre o homem petropolitano e a sua montanha.

Este debuxo crítico acerca de uma parte da biblioteca geográfica de Petrópolis, quis delinear o estágio atual do conhecimento urbano-geográfico nessa cidade serrana. Está ausente desses trabalhos petropolitanos uma articulação intestina entre vilegiatura e indústria que, ademais, enxergasse o espaço urbano como conseqüência e ao mesmo tempo condição dos processos sociais e históricos de produção e reprodução do capital. Está ausente a preocupação com processos espaciais urbanos modelados pela força de trabalho e pelos proprietários dos meios de produção – está afastada, por exemplo, a inquietação com o Estado, com a circulação, a renda da terra urbana e as empresas imobiliárias de construção.

É também necessário aprofundar a dimensão urbano-cultural, da qual “Geografia Petropolitana” é seu rascunho importante.