EUCLIDES DA CUNHA E O AMERICANISMO
Francisco de Vasconcellos
Transcorre neste ano de 2009 o primeiro centenário do trágico desaparecimento de Euclides da Cunha. Seu assassino cometeu duplo homicídio: primeiro porque tirou a vida a um homem; segundo porque roubou ao Brasil e ao mundo um desses gênios que nascem somente em séculos alternados e que ainda teria muito a contribuir para o enriquecimento da cultura universal.
Faz cem anos também o aparecimento da primeira edição da obra póstuma de Euclides da Cunha intitulada “À Margem da História”, que veio a lume cerca de dois meses depois de sua morte. Tinha muitos erros pois não contou com a revisão do autor. Recentemente saiu uma nova edição da Martin Claret com o texto integral e notas de incontestável valor.
É justamente neste livro que manifesta-se grande parte do pensamento americanista de Euclides da Cunha baseado simplesmente naquilo que ele conhecia do Brasil e da América espanhola. Não quis fazer doutrina, mas suas observações de ordem prática e objetiva são de tamanha profundidade que merecem demorada reflexão.
Numa época em que não havia computador, aerofotogrametria, gps e outros avanços tecnológicos, impressiona o leitor, por exemplo, a visão euclidiana da Amazônia, fosse do ponto de vista físico, fosse do humano, fosse ainda no que concerne ao tema geopolítico. E, se o conteúdo de seus discursos tem a marca de sua genialidade, a forma é lapidar, valorizada por um vocabulário escolhido, cheio de sonoridades e de vibrações telúricas, onde não há despropósitos nem exageros.
Embora com os olhos direcionados para as vertentes andinas do Pacífico, Euclides da Cunha nas abordagens ao alcance desta comunicação ocupou-se fundamentalmente da Amazônia e da bacia do Prata. Vamos por partes.
O Meio e o Homem Amazônicos do Ponto de Vista Euclidiano
Em frases curtas, precisas, cirúrgicas, Euclides expõe os seus conceitos. Ele é o mago dos enunciados concisos mas de cunho enciclopédico.
À pág. 18 da obra em estudo Euclides da Cunha, referindo-se à Amazônia, diz que, quando de sua conquista pelo homem branco, não se sabia se aquilo “era uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos”. E ele afirma: “O homem ali é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão”.
Daí se conclui que a chegada do homem à Amazônia foi prematura e tudo o que aconteceu naquelas paragens, de Orellana a esta parte, é mera conseqüência desse açodamento.
Já à pág. 28 assevera o filho de Cantagalo:
“A volubilidade do rio contagia o homem. No Amazonas, em geral sucede isto: o observador errante que lhe percorre a bacia na busca de variados aspectos sente ao cabo de centenares de milhas, a impressão de circular num itinerário fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias, ou barreiras, ou ilhas e as mesmas florestas e igapós, atirando-se a perder de vista pelos horizontes vazios; o observador imóvel que lhe estacione às margens, sobressalteia-se intermitentemente diante de transfigurações inopinadas. Os cenários invariáveis no espaço transmudam-se no tempo. Diante do homem errante a natureza é estável; e aos olhos do homem sedentário que planeie submete-la à estabilidade das culturas, parece espantosamente revolta e volúvel, surpreendendo-o, assaltando-o por vezes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o.
Daí a paralisia completa das gentes que ali vagam há três séculos numa agitação tumultuária e estéril”.
Tomando-se por mote estas últimas palavras de Euclides, temos que nestes cem anos contados da primeira edição da obra em exame, substituiu-se a paralisia do autóctone pela invasão bárbara e neurótica dos alóctones, persistindo a agitação tumultuária e estéril agravada com a índole devastadora dos adventícios. Criminosamente atuam estes sobre uma natureza que não conhecem, sobre um meio ainda em formação. Nesse crescendo o homem será ali um fantasma sem rumo, sem destino, sem esperança.
Amazônia: Avanços e Retrocessos de Peruanos e Brasileiros
Relata Euclides da Cunha que aí por meados do século XIX Peru e Brasil, oficial e oficiosamente, procuravam os meios necessários de integrarem-se pelos canais amazônicos, buscando os peruanos o oriente, mais precisamente o litoral atlântico, e, os brasileiros as terras ocidentais da imensa floresta tropical.
Vasculhando os desvãos da documentação peruana, encontrou Euclides nomes de brasileiros ignotos entre nós, que se vincularam a empreendimentos na Amazônia da república vizinha.
Entre eles está o de Antonio Marcelino Pereira Ribeiro que em 1841 obteve concessão do governo do Peru para operar, sob o regime de privilégio, a navegação por barcos a vapor do Rio Amazonas, na parte pertencente àquela república e de todos os seus afluentes.
O outro nome é o de José Joaquim Ribeiro, o homem que por volta de 1862 começou a explorar o caucho na Amazônia peruana.
Os grandes canais da Amazônia peruana com o Atlântico seriam os rios Purus, Juruá e Ucayali.
Para lograrem seus objetivos, abriram os nossos vizinhos inúmeros caminhos em busca dessa vasta rede fluvial, espalhando por aqueles ermos colônias militares e agrícolas. No afã de ocupar espaços regularizaram os títulos fundiários. Construíram o porto de Iquitos, ainda hoje um dos mais importantes e movimentados de toda a Amazônia. Com o que hoje chamamos de incentivos fiscais, o governo peruano tentou atrair o homem para aquele verdadeiro arquipélago, quente, úmido e promissor. Tratava-se de um trabalho de grande alcance geopolítico, sem se descurar do olhar abrangente sobre a Amazônia, onde estavam em jogo, ao fim e ao cabo, interesses comuns.
Não faltaram nessa tarefa da criação de uma “nova pátria”, conforme a expressão feliz de Euclides da Cunha, os missionários e os estudiosos de todo o gênero, empenhados no conhecimento científico do solo, do clima, da fauna, da flora e dos aborígines, velhos habitantes daquelas selvas tropicais.
Da parte do Brasil, embora sem o bafejo oficial, levas e levas de nordestinos notadamente vindas do Ceará, do Piauí e do Maranhão, deslocavam-se para noroeste buscando novas formas de vida.
Essa marcha de peruanos e brasileiros, numa via de mão dupla imbuídos ambos de um espírito construtivo, foi obstada e prejudicada aqui e ali pelos arroubos caudilhistas, pela ganância predatória de alguns segmentos sociais, pela intromissão de entidades alienígenas, estranhas ao meio, guiadas pela cobiça.
Todos esses aspectos não passaram desapercebidos à fina sensibilidade de Euclides da Cunha. Afinal esse salutar movimento de integração ibero-americana pela via amazônica seria de interesse não só do Peru e Brasil, mas de todos os paises que são tributários da imensa vertente tropical ou que dela dependem, do Paraguai às Guianas.
Tivesse sido a Amazônia pensada em conjunto, já que é um corpo orgânico multinacional, escoimadas as questiúnculas menores de ordem política, e a realidade daquele mundo ainda em formação seria bem outra. Essa conjectura esteve na cogitação euclidiana há cem anos precisos.
Uma das figuras mais nefastas à Amazônia na ótica de Euclides era o “cauchero”, nada mais que um devastador de florestas, “um bárbaro individualista”.
A propósito desse tipo representativo da cultura amazônica disse Euclides:
“A sua passagem foi nefasta. Ao cabo de 30 anos de povoamento às margens do Ucayali, tão nobilitadas outrora pela abnegação dos missionários, de Sarayaco, patenteiam, hoje, nos seus vilarejos diminutos uma decadência moral indescritível”.
E o “cauchero” peruano transformou-se no guerrilheiro a serviço do caudilhismo bárbaro e boçal.
Para Euclides o “cauchero” travestido de guerrilheiro seria facilmente batido por tropas regulares nas lutas que se travaram no Acre e adjacências nos primeiros anos do século XX. O problema era a dificuldade de encontrá-lo no labirinto dos igarapés, nos desvãos do cipoal intricado.
Para contrapor-se ao “cauchero” peruano o Brasil haveria de contar com o jagunço, mestiço pé duro, rústico, oriundo dos recônditos sertões do Nordeste, tipo também de índole guerrilheira e, como dizia o próprio Euclides, “antes de tudo um forte”.
Jagunços e “caucheros” poderiam dar-se as mãos para construírem uma Amazônia unida, psicossocial e materialmente integrada, não fossem as desconfianças mútuas, as xenofobias fomentadas pelos políticos e pelos interesses supranacionais que acabaram por colocá-los em campos opostos e preparados para a guerra.
Por volta de 1900 um grupo considerável de jagunços chegou àquelas terras indefinidas, meio brasileiras, meio peruanas. Seu patrão chamava-se Pedro C. de Oliveira que foi nomeado pelo governo do Peru “apesar de sua nacionalidade, governador de toda a zona que o seu barracão centralizava”.
Porém, viver à mercê do humor dos caudilhos é insuportável. Nenhum país pode ter estabilidade com esse tipo de gente. O mesmo Pedro C de Oliveira que recebera do governo peruano tantas regalias em janeiro de 1900, a quem o Peru deveu a fundação do importantíssimo Porto Vitória, foi expurgado por um caudilhete qualquer de plantão no comando da vizinha república, para que a sua casa servisse para acomodação da capitania, da aduana e da guarnição militar.
Um decreto do então presidente Nicolas de Pierola consumou a expropriação, determinando ainda que não seria consentido ali, no raio de 1 km, o ingresso de qualquer povoador.
A propósito disse Euclides da Cunha:
“O Peru conseguira realmente uma estação fluvial admirável. E os brasileiros retiraram-se”.
Não foi preciso muito tempo para que a desgraça se abatesse sobre o Porto Vitória. Cinco anos depois tudo aquilo virou um monte de destroços, uma autêntica ruína, onde viam-se apenas “alguns tetos abatidos e restos de culturas afogadas num carrascal bravio”.
A ninguém aproveitou portanto tanto sacrifício despendido na selva.
Uma Ferrovia Transcreana
Euclides da Cunha preconizava no início do século XX a construção de uma ferrovia transcreana que teria enorme potencial aglutinante naquela parte da Amazônia, tema que interessava ao Brasil, ao Peru e à Bolívia.
Seria a única estrada de ferro urgente e indispensável em todo o território acreano.
Numa região cortada por inúmeros rios navegáveis, a ferrovia converter-se-ia numa espécie de linha auxiliar para facilitar a ocupação racional do solo.
Nessa esteira viriam a redistribuição das populações e a maior presença do poder público naquelas áreas ainda de certo modo incultas e carentes de assistência do governo.
Na visão euclidiana as três principais seções da linha férrea – do Juruá ao Purus, daí ao Yaco e do Yaco ao Acre – “atacadas ao mesmo tempo e favorecidas pelo fácil transporte fluvial dos materiais necessários, por aqueles rios, se construirão de maneira expedita e com recursos das próprias rendas locais”.
… “Cada estação terminus extremando-se os segmentos precipitados servirá ao mesmo passo à navegação fluvial do rio correspondente e às baldeações de uma à outra margem deste far-se-ão nos primeiros tempos sem perturbarem demais o tráfego naturalmente restrito … a estrada crescerá com o povoamento”.
Euclides da Cunha, professor de lógica, estava tentando ser cronológico. O principal seria viabilizado e os acessórios viriam com o aumento da demanda dos serviços ferroviários como conseqüência lógica do povoamento do solo.
No arremate de suas conjecturas alvitrou Euclides da Cunha com aquela visão de conjunto que lhe era peculiar:
“Assim, desde que se ultime a Madeira-Mamoré, esta atrairá irresistivelmente para o levante, realizando-se o fenômeno vulgaríssimo de uma captura de comunicações. Então, ela transporá o Acre indo buscar o Madeira na confluência do Abunã ou em Vila Bela, extinguindo de golpe todos os inconvenientes de três navegações contornantes e longas. Ao mesmo tempo, no outro extremo, dilatando-se para o oeste, perlongando o Moa e indo transmontar os cerros abatidos da Contamana, alcançará o Ucayali, deslocando para Santo Antonio do Madeira parte da importância comercial de Iquitos. Então, a transcreana, modestíssima, de caráter quase local, feita para combater uma disposição hidrográfica, se transformará em estrada internacional de extraordinários destinos”.
No conceito de Euclides tal ferrovia “seria um fator de aliança civilizadora e de paz”.
Porém até hoje aquele pedaço de Amazônia espera por esse milagre que no princípio do século XX seria ferroviário e que agora poderia ser hidro-rodo-ferroviário. Sonho em uma América ainda destroçada e desunida pela desconfiança, pela ignorância, pela instabilidade psíquica e pelos interesses escusos e sombrios dos detestáveis caudilhos bárbaros.
Euclides da Cunha e o Confronto Brasil / Argentina
Duas bacias hidrográficas interessam à vertente ocidental brasileira: a Amazônica e a do Prata; a primeira aponta para o nordeste; a outra para o sul. E elas têm tudo a ver com as relações do Brasil com os seus vizinhos hispano-americanos.
Já tratamos em rápidas pinceladas da visão de Euclides da Cunha sobre a Amazônia. Agora vamos ver como se comportou o autor de “À Margem da História” sobre o Prata e adjacências.
No capítulo “Viação Sulamericana” da obra acima citada, Euclides antes de mais nada põe a nu as diferenças fundamentais entre Brasil e Argentina. Nesse quesito o filho de Cantagalo trabalha com um dos postulados básicos da doutrina americanista: o congraçamento dos povos ibero-americanos através do mútuo conhecimento.
Diz Euclides que o progresso argentino advinha de suas estradas de ferro, enquanto as nossas ferrovias eram conseqüência do nosso progresso.
Para chegarmos ao caminho de ferro levamos mais de duzentos anos a forçar as montanhas paralelas ao litoral por incipientes veredas, levando para o interior, com enorme sacrifício, em lombo de burro, os requisitos fundamentais da civilização.
Frisou Euclides:
“Para vencermos a terra houvemos que formar até o homem capaz de a combater – criando-se à imagem dela, com as suas rudezas e as suas energias revoltas – por maneira a talhar-se um tipo mestiço e inteiramente novo do ‘bandeirante’, a figura excepcional do homem que se fez bárbaro para estradar o deserto, abrindo as primeiras trilhas ao progresso”.
Já no caso argentino a situação foi inversa. Segundo Euclides, o alóctone ali “mudou de hemisfério sem mudar de latitudes”.
Embora tivesse ficado para trás o solo de origem, não houve para o recém-chegado à Argentina, mudanças climáticas e nem acidentes geográficos significativos que pudessem entorpecer os passos do emigrante em seu novo habitat. O pampa não opõe barreiras. Ao contrário, facilita os avanços do homem terra adentro. O europeu manteve-se ali com as suas características fundamentais e o chamado “criollo” não estava nem na forma, nem no conteúdo distante de seu ancestral ultramarino.
Numa tirada de gênio, sublinhando bem esse paralelo escreveu Euclides:
“ … nós tivemos que formar num longo esforço, até de seleção telúrica, o homem, para vencermos a terra; ela (a Argentina) teve que transformar e aviventar a terra para vencer o homem”.
A Diáspora Ferroviária Argentina
Ora, se o sistema ferroviário argentino era, na visão de Euclides da Cunha, a mola do progresso do país, este mesmo progresso foi retumbante máxime nas últimas três décadas do século XIX, quando esse sistema começou a ser implantado e com enorme alcance integracionista.
O autor de “À Margem da História” enumera as ferrovias de nossa vizinha, todas construídas e administradas por ingleses e partindo sempre de Buenos Ayres, pois o seu porto também estava nas mãos dos britânicos, o que sempre levou a Argentina a um excesso de centralização em sua capital, em detrimento do progresso das províncias e de uma política de regionalização.
No princípio do século XX era a malha ferroviária dos argentinos a décima do mundo. A “Andine Railway” ligava Buenos Ayres a Mendoza, seguindo seus trilhos daí para o porto chileno de Valparaiso. A “Entre Rios Railway” buscava Concórdia no Uruguai e por sua conexão com a “North Eastern” atingia-se o território missioneiro de onde se viajava a Assunção pela “Central do Paraguai”. A “Buenos Ayres and Rosario” tinha como prolongamento a “Central Norte”, que chegando a Jujuy no extremo noroeste argentino entrava na Bolívia por La Quiaca.
Esta última estrada de ferro fazia parte do projeto da “Panamerican Railway” sugerida na conferência de Washington em 1889.
No conceito de Euclides o importante era que essa via férrea chegava à Bolívia, podendo-se viajar então de Buenos Ayres às terras bolivianas em dois dias e meio.
Com o avanço dos trilhos pelo território da Bolívia a partir de 1900, Euclides da Cunha previa que em cinco anos dois trechos da Estrada de Ferro Pan-americana poderiam estar concluídos ligando Lima, La Paz e Buenos Ayres por 3.020 km de trilhos fazendo-se esse trajeto em cerca de três dias.
Tantos sonhos haveriam de esbarrar na abertura do canal do Panamá, o que faria com que os paises andinos prescindissem das ferrovias que os ligassem ao Prata, já que passariam a dispor de um transporte marítimo mais cômodo direto e seguro no trânsito para a Europa.
Para o autor de “Os Sertões” a Argentina seria a grande prejudicada com a abertura do indigitado canal. Como diria Epitácio Pessoa “tanto sacrifício por uma causa inglória”.
Mas nem tudo estava perdido. As estradas de ferro argentinas ainda cumpririam pelas primeiras décadas dos novecentos seu valioso papel para o progresso do Cone Sul e a chamada rodovia Pan-americana haveria de substituir a sonhada via férrea do mesmo nome.
O Alcance de Alguns Projetos Ferroviários Brasileiros
Antes de mais nada é preciso que se diga que o Brasil foi inteiramente pensado no Império, realizando-se muitos projetos já no período republicano.
Com enorme sensibilidade geopolítica, os estadistas do período monárquico entenderam, por exemplo, que o Rio São Francisco era o grande meio de comunicação entre o Nordeste sertanejo e o Centro-Sul interiorano. Inúmeros estudos foram feitos para viabilizar sua navegação. Desde logo os técnicos da época apontaram a Cachoeira de Paulo Afonso como maior entrave àquele intento, sem descartar outros de menor importância. Foi preciso fazer-se um trabalho por partes. Primeiro estabeleceu-se a navegação de porte no baixo São Francisco, de Penedo a Piranhas. Enquanto se faziam experiências com os barcos Saldanha Marinho e Conselheiro Dantas no trecho entre Juazeiro, na Bahia, e Pirapora, em Minas Gerais, projetou-se a ferrovia Paulo Afonso para fazer o trajeto entre Piranhas e Jatobá, evitando-se assim a portentosa cachoeira.
Mas era imperioso conectar o litoral com os pontos sertanejos onde deveria iniciar-se a grande navegação são-franciscana no sentido rio acima. Foram assim decretadas duas linhas férreas de longa distância: a Recife ao São Francisco, seguindo em direção à Petrolina e a Bahia ao São Francisco, ligando Salvador ao Juazeiro.
Na outra ponta a luta era travada no Rio das Velhas de modo a possibilitar por esta estrada líquida a conexão de Pirapora com Sabará, onde deveriam chegar os trilhos da Estrada de Ferro D. Pedro II, que do Rio de Janeiro avançavam em várias frentes, sendo talvez a principal a chamada linha do centro que servia à Zona da Mata, ao Campo das Vertentes e à região conhecida como Metalúrgica em pleno coração das Minas Gerais.
O Império pensou também no aproveitamento do Rio Doce e na ligação Vitória a Minas, sem descurar dos projetos hidro-ferroviários para o Jequitinhonha, para o Rio Grande e alguns de seus afluentes.
Na província fluminense e em São Paulo espalharam-se incontáveis linhas férreas, como também no Paraná e no Rio Grande do Sul.
Euclides da Cunha ao tratar de tão instigante tema no seu “À Margem da História” distinguiu três grandes linhas férreas brasileiras de iniludível alcance integracionista. Eram elas: a Madeira-Mamoré, a São Paulo-Rio Grande e a Noroeste do Brasil, todas projetadas antes do advento do regime republicano.
A primeira poria o departamento boliviano do Beni em contato direto com o porto de Belém, no Pará. A duras penas e com enormes sacrifícios financeiros e humanos o projeto saiu do papel mas a estrada de ferro não chegou a cumprir o seu condoreiro destino. Hoje não passa de reminiscência sintetizada num modesto museu em Porto Velho, capital do Estado de Rondônia.
A segunda, no que concerne ao trecho de Santa Catarina ao Rio Grande do Sul, já era discutida no parlamento brasileiro em julho de 1866. A partir de São Paulo ela seria o prolongamento no rumo sul da Estrada de Ferro Sorocabana, resolvendo-se na ferrovia Itararé.
Concebida pelo Conselheiro Mayrink, a Itararé ganhou forma com o Decreto Imperial de 9 de novembro de 1889. Já na república pertenceu à Companhia União Industrial. Os decretos federais de 7 de março de 1901 e de 2 de junho de 1902 abriram as perspectivas para a implantação de uma linha ferroviária que atenderia o Porto de São Francisco em Santa Catarina. Nessa esteira surgiu a Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, aglutinando os trilhos da Itararé e da São Francisco, além de criar um sistema com a intenção de conectar os três estados do sul e estes com o Paraguai, o Uruguai e a Argentina. Nascia então o projeto da Ferrovia Transbrasiliana que mereceu da revista Kosmos que se editava no Rio de Janeiro, excelente reportagem em sua edição de abril de 1906.
A idéia inicial era a de se puxar um caminho de ferro de Itararé, no extremo sul do Estado de São Paulo até o Rio Grande, com um ramal, que, partindo da linha tronco, passasse pela cidade de Guarapuava, no Paraná, terminando na Foz do Iguaçu; e um sub-ramal que, saindo de Guarapuava, fosse ter às ruínas de Ontiveros, à margem do Rio Paraná. A intenção final era fazer com que uma dessas vias, destacada do tronco ferroviário, chegasse a Assunção no Paraguai. A este sistema somar-se-ia a linha de São Francisco ligando-se assim o Brasil meridional de leste a oeste com eventual prolongamento para a capital paraguaia. São Francisco seria o porto de escoamento dos produtos da vizinha república.
Para o sul, valendo-se da rede ferroviária rio-grandense, que ensaiara seus primeiros passos nas últimas décadas do regime monárquico, a ousada estrada de ferro alcançaria Montevidéu a partir da linha de Porto Alegre a Santana do Livramento e demandaria o território argentino, por Uruguaiana, conectando-se com o pujante sistema ferroviário tão bem estudado por Euclides da Cunha.
Enfim, juntando-se os esforços de tantos paises sul-americanos, do Peru para o sul, incluindo-se nesse rol parte do Brasil, seria imensa a rede de linhas férreas a atender a passageiros e às cargas.
E havendo comunicação, aproximar-se-iam os povos da América, estreitar-se-iam suas relações, dinamizar-se-ia o mútuo conhecimento e o verdadeiro americanismo já teria raiado entre nós desde o princípio do século XX, com medidas de ordem prática e não somente através de discursos e de libações intelectuais.
Ocupando-se da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande disse Euclides da Cunha:
“Volvendo ao sul não seria penoso deduzir que o ramal de Iguaçu da E. F. São Paulo – Rio Grande desde que se construa e efetue por meio de um convênio com o governo paraguaio o seu prolongamento natural até Villa Rica, erigirá a baia de São Francisco, quase que no mesmo paralelo de Assunción, em melhor porto do Paraguai”.
Embora em tudo isso houvesse o forte empenho do prócer catarinense Lauro Muller, todo esse projeto dependia da efetiva construção do Porto de São Francisco e do lançamento de uma ponte sobre o Rio Paraná.
A seu tempo outra história seria escrita: a chamada Ponte da Amizade ligando Foz do Iguaçu a Ciudad del Este veio no bojo da rodoviarização e o porto do Paraguai não seria mais o de São Francisco, mas o de Paranaguá.
Mas foi a respeito da ferrovia Noroeste do Brasil que Euclides da Cunha mais se deteve.
Conforme suas pesquisas, tudo começou numa reunião do Clube de Engenharia em outubro de 1904. Sugeriu-se então ao Governo Federal a construção de uma estrada de ferro que partindo de Agudos ou de Bauru, em território paulista, transpusesse o Paraná dirigindo-se a um ponto do Rio Paraguai de onde se pudesse atrair para o Brasil o comércio do sudeste boliviano e norte paraguaio, possibilitando-se ao mesmo tempo a mais rápida comunicação do litoral com o Mato Grosso, evitando-se assim a passagem por território estrangeiro.
A idéia teve desde logo o aplauso do autor de “Os Sertões” que afirmou ser ela a síntese de outros tantos vindos das discussões no Parlamento do Império desde 1852.
E já assegurado o itinerário da linha escreveu Euclides às págs. 110/111 de “À Margem da História”:
“A E. F. Noroeste do Brasil parte de uma cidade paulista fundada há menos de quinze anos, Bauru (22º 19’ 22”) latitude sul, (5º 5’) longitude oeste do Rio, distante 438 km da capital de São Paulo, 517 de Santos e 934 do Rio de Janeiro e segue logo pelo ‘divortium acquarum’ do Iguapeí e Tietê, até além dos campos do Avanhandava, por onde já se alongam hoje as estações recém-inauguradas 202 km em tráfego, em 246 de linhas construídas. À medida que prossegue aproxima-se da margem esquerda do Tietê. Atingi-lo-á no canal do Inferno, 96 km além da atual ponta dos trilhos. Dali passando à margem direita sobre uma ponte de 280m acompanhará a histórica vereda fluvial até ao seu último salto, Itapura, (km 449); e logo adiante chega ao rio Paraná (km 455) no trecho em que a ilha Grande de Urubupungá, larga de três mil metros o reparte em dois canais de 75m e 540m que serão transpostos por duas pontes: uma de um só lance de 94,50m e outra dividida em quatro vãos de 94,50m, além de um central de 126,5m.
Está-se então em Mato Grosso, na borda direita do Paraná (km 453,5)”.
Minudente o relato de Euclides da Cunha que prossegue no mesmo diapasão pelo Estado de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul dos dias correntes.
A 462 km do Rio Paraná a ferrovia alcançava Campo Grande, importante entreposto de gado da região pantaneira, hoje progressista capital do novo Estado de Mato Grosso do Sul. De Campo Grande, varando “largos chapadões”, a estrada ia ter à então vila de Aquidauana no km 1.066.
Estando já à beira do Pantanal, a estrada de ferro iria encontrar algumas dificuldades em razão da natureza do solo. Mas a boa técnica empregada pelo engenheiro Eduardo Schnoor haveria de escolher o melhor roteiro para que se evitassem as grandes cheias da zona nitidamente pantaneira.
De Aquidauana a Miranda os trilhos assentar-se-iam em terrenos firmes fazendo o contorno da Serra do Maracaju; no último trecho até a margem do Rio Paraguai, num percurso de 160 km o maciço calcário da Serra da Bodoquena permitiu que a estrada de ferro rompesse aquilo que parecia intransponível ao cidadão comum e corrente. Assim, já no km 1.314 tinha-se Corumbá à vista. Entretanto, para alcançá-la seria necessário transpor o Paraguai não se podendo prescindir de uma ponte giratória e de viadutos para se chegar à margem direita daquele curso d´água. A estação terminal de Corumbá estaria no km 1.403,5 da extensa ferrovia.
A distância de Corumbá a São Paulo era então de 1.845 km; de Corumbá a Santos de 1.924 km e de Corumbá ao Rio de Janeiro, na altura Capital da República, de 2.311 km.
A reboque desse opulento estudo sobre o desenvolvimento de uma das mais importantes ferrovias que o Brasil já produziu, Euclides da Cunha, com aquela acuidade profética dos gênios, previu o aproveitamento energético dos saltos de Urubupungá, Itapura e Avanhadava o que se resolveu na usina da Ilha Solteira e a hidrovia Tietê/Paraná.
Demais, no seu conceito a Noroeste do Brasil tinha um destino inevitável: o de tornar-se intercontinental. No momento em que Euclides da Cunha lançava essas suas eruditas notas para compor este seu precioso livro “À Margem da História”, o sindicato “Fomento del Oriente Boliviano” iniciava a construção da ferrovia Santa Cruz de la Sierra a Puerto Suarez, autorizada pelo Congresso da Bolívia. Encontrando-se com a Noroeste, toda a parte meridional da vizinha república e até mesmo Cochabamba estariam conectadas com a costa atlântica brasileira.
E tudo isso, que em princípios dos novecentos começava a desabrochar, tornou-se realidade, tanto que em 1961 fiz a viagem em trem de Guararapes (noroeste de São Paulo) a Campo Grande no atual Mato Grosso do Sul e dali a Corumbá, de onde alcancei o Puerto Suarez para tomar o famoso “trem da morte”, que me levaria a Santa Cruz de la Sierra. Experiência inesquecível que só se poderia mesmo fazer com 22 anos de idade.
Fechando esse tópico sobre a vocação intercontinental da Noroeste, frisou Euclides:
“Realmente, articulando-se aos caminhos bolivianos que partam de Corumbá ou de suas cercanias na faixa ribeirinha até a lagoa Gaíba, ela se destina ligar a Bolívia e o Chile ao Atlântico, ao mesmo passo que seguindo por Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba, transpondo as cabeceiras navegáveis do Guaporé e Chimaré, prosseguindo para Oruro ponto forçado da ‘Panamerican Railway’ para La Paz, de onde derivará pela estrada de Arica, o Brasil se aproximará consideravelmente do Pacífico”.
Em conclusão, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil seria na verdade uma colossal via de mão dupla: se o Brasil tinha tudo para, por meio dela, aproximar-se do Pacífico, a Bolívia e o Chile iriam fazer de Santos e não de Buenos Ayres o seu porto no Atlântico.
Delineava-se no horizonte andino forte traço de união da América meridional, cortada de leste a oeste, de costa à costa por um sistema ferroviário que em cinco dias conduziria cargas e passageiros de Santos a Arica no norte chileno e vice-versa.
Tais os traços mais significativos da contribuição euclidiana ao verdadeiro americanismo que se completariam numa outra obra sua intitulada “Peru versus Bolívia”.
Por hoje é só. É tudo dizer..