O FILHO DE UM FERRADOR QUE SE TORNOU MAESTRO

Joaquim Eloy Duarte dos Santos, Associado Titular, Cadeira n.º 14 – Patrono João Duarte da Silveira

 

Partamos no sonho de uma alegoria, mesmo que falseie a cronologia verdadeira da história da Escola de Música Santa Cecília:

Era uma vez um menino.
Parece que o vejo correndo por aqui.
É levado, muito irrequieto.
De repente ele pára toda a atividade, apura o ouvido; escuta…
O que escuta o menino que o faz enlevar-se?
É um som não necessariamente mavioso; mas é musical; é um som musical (arranham-se, em exercício, cordas de violino) por vezes estrídulo e irritante…

Mas, é música que o menino escuta; arregala os olhos e segue.

Atravessa a rua sem muito cuidado. É um menino sem os medos da prudência. Aproximando-se, sente que ao som nervoso do violino em estudo junta-se um exercício de escalas em piano; logo notas de uma flauta remete seu embevecimento a um êxtase que o detém diante do prédio esquinado, baixo, com uma longa varanda em curva dominando toda a fachada. No alto ele lê o que, antes, não chamara sua atenção: “Sede Própria – Escola de Música Santa Cecília”.

Como aqueles ratinhos da fábula de Hamellin ele segue o som da flauta e do violino e do piano e adentra pela varanda, toca com as pontas dos dedos na porta quase fechada, que empurra com cuidado evitando chamar a atenção. No pequeno salão vê, ao fundo, um palco e nele exercita-se um aluno de flauta observado pelo atento professor. Outros três meninos e jovens acompanham a aula, à espera de seus exercícios práticos.

Atrás de uma porta entreaberta, o som do piano aguça a curiosidade do menino que, nessa altura, nem sente que flutua de enternecimento ao tempo em que agita-se de ansiedade. Mais adiante, atrás de outra porta, um violino range em protesto pelo exercício de um aluno que experimenta a vocação.

O menino, naquela irreverência, mesmo que contida pelo êxtase, empurra a porta de onde vem o som ranhento do violino… Entra na sala, o aluno desconcerta-se, o professor censura com o olhar e adverte:
– O que é isso? O que deseja aqui?
– Eu ouvi o violino lá de cima da minha rua onde moro, vim atraído e nem sei o que faço aqui… – é trêmula sua voz infantil.
-O senhor, menino, gosta de violino? – o mestre está interessado.
-Sim, senhor, gosto e gostei muito de ouvir, um estudo irritante, mas é lindo!
-O senhor, menino, achou irritante, por que?
-Ora, senhor, o som estava ruim mas…
-E o senhor, menino, pode tocar melhor do que o meu aluno? O senhor conhece o instrumento? Sabe o que fazer com ele?
-Não, senhor. Não sei tocar violino e nem sei como apertá-lo contra o pescoço como esse seu aluno está fazendo.
-Quer tentar tocar o violino?
-Oh! não, senhor! Eu não sei nada… Eu só gosto.
-Mas, senhor menino, vamos tentar. Aqui está um violino; segure-o; assim mesmo; coloque-o nessa posição… deixe-me ajudá-lo. Assim, muito bem, está bom; agora com a mão livre segure o arco; veja a posição correta dos dedos e que partes do arco pode tocar… Assim mesmo. Muito bem, senhor menino – como é seu nome?
-César.
-César? César de quê?
-César Guerra Peixe.
-Muito bem, César, agora, suavemente, atrite o arco contra as cordas…

O menino faz correr o arco, na suavidade exigida e um som cristalino domina a sala.
– Deus meu! Outra vez! Magnífico! César, você conhece o violino, exercita-se no instrumento?
– Não, senhor. É a primeira vez… Violino, eu não conheço, mas meu pai toca violão, bandolim, cítara e sanfona de oito baixos. Eu toco, em casa, esses instrumentos, mas violino é a primeira vez.

Era um fantástico desempenho. . . César arranha de ouvido, no violino, notação que ouvira na execução do pai ao violão. Certamente com defeitos, mas é o som do virtuose que define a predestinação musical.
O professor ajusta o menino ao violino, o violino assume por inteiro César Guerra Peixe a partir daquele momento mágico.
– Qual é a sua idade? – pergunta o professor Gao Omacht?
– 11 anos, professor; desde os meus 5 anos de idade toco as músicas que eu gosto nos instrumentos de meu pai.

Corre o ano de 1925. A Escola de Música Santa Cecília recebe em suas modestas dependências para o ensino musical, aquele que seria uma das maiores expressões da composição brasileira da atualidade, mestre inovador, pesquisador, compositor de uma simbiose extraordinária de música erudita sob o folclore brasileiro, recolhendo ritmos populares e introduzindo-os nas peças musicais de sons jamais vistos pela música brasileira e internacional.

Ali começa a formação do mestre e alguns anos se passam com a Escola aprimorando aquele prodigioso talento em outros instrumentos e matérias de teoria musical, e registrando nos ares da inspiração os sons que Guerra Peixe começa a criar a partir dos primeiros passos no violino, no bandolim, no piano, no violão, na guitarra portuguesa e nos instrumentos que sua sensibilidade vai incorporando ao seu talento indiscutível.

Há exatos 89 anos e um pouquinho de dias a mais – 18 de março de 1914 – nasce aqui, na rua Aureliano Coutinho, o menino César, filho de um ferrador português, com o qual aprende a fazer ferraduras. Diz Cesar, em uma entrevista:
“Sei como se faz, e digo sempre que, quando levo um coice, já estou acostumado!”

Seu pai, profissional ferrador, não só executa as dissonâncias dos atritos das limagens, como é sensível ao tocar vários instrumentos musicais. E ambos, pai e filho, embevecem-se com os sons das ferraduras desde a confecção até o elegante desfilar de compridas pernas eqüinas nas ruas de terra e pedras dos caminhos petropolitanos. Para eles a musicalidade é integral no contexto da onomatopéia da natureza.

Corre o ano de 1931, e aos 17 anos de idade, César parte para o Rio de Janeiro, inscreve-se na classe de violino da afamada professora Paulina d´Ambrosio, a grande mestra do seu tempo e formadora de nossos maiores virtuoses. Ingressa na Escola Nacional de Música, com primeiros lugares e extraordinário destaque. O jovem especializa-se, domina a arte, e vê-se, para sobreviver, de início, junto com dois instrumentistas alemães, tocando na Taverna da Glória. Avança nos estudos, torna-se referência, aproveita-se do grande momento do rádio para fazer arranjos musicais. Dedica-se muito e é visto por seus contemporâneos como o “arranjador Guerra Peixe” e seu nome é vibrado pelas ondas radiofônicas:
“Arranjos do maestro Guerra Peixe”.

Poucos sabem que ele estuda composição com o mestre Kollreuter e integra o “Grupo Música Viva”, onde exercita o estilo que inicialmente o consagra e por ele introduzido na música brasileira, o dodecafonismo. Nesse interregno, nos anos da 2ª Guerra Mundial, filia-se à “Escola de Schoenberg”, quando compõe a peça musical “Noneto”, levada à Europa pela orquestra do grande regente Hermann Scherchen, firmando seu nome no concerto internacional. É convidado e aceita compor a peça “Sinfonia” por encomenda da BBC de Londres.

Pretendendo dar uma guinada em sua carreira porque nacionalista, renega o dodecafonismo e muda residência e atividade para Recife, Pernambuco; trabalha em uma rádio local e aprofunda conhecimentos sobre o rico folclore brasileiro, a sua melhor vertente de compositor.

Diz, mais tarde, em uma entrevista:
“O compositor que não escrever música nacionalista é uma reverendíssima besta!”
Diz, na época, sobre sua paixão pelo folclore:
“A pessoa deve saber folclore para saber utilizá-lo. Foi a razão pela qual por muitos anos escrevi suítes. Pegava um aspecto rítmico, melódico e harmônico, também, porque existe uma harmonia subentendida, e, muitas vezes, não é nem subentendida”.

Daí para diante ganha o respeito do Brasil e do Exterior e vai num crescendo até tornar-se o arauto, através da música erudita, do nosso rico e apaixonante folclore. Abominando o comportamento prolífico de muitos compositores, compõe todos os gêneros, ama a música popular brasileira, da qual, segundo o crítico Luiz Paulo Horta, é um especialista. Muitas suítes, cânticos, miniaturas, breves, marcam a produção do compositor que deixa de ser o menino da Escola de Música Santa Cecília, da sua terra Petrópolis, para alar-se ao mais elevado patamar da Música Brasileira sob respeito e consagração internacional.

Espírito alegre, brincalhão, sempre disposto a uma boa gargalhada, volta à origem, aceita aulas na Escola de Música Santa Cecília, com vivo interesse pelo crescimento e expansão do ensino musical em Petrópolis. Vem sempre aqui, hospeda-se com os parentes, ri e brinca com eles, cumprimenta, conversa, identifica-se com a terra na qual nasceu e dela se orgulha.

Mas é um homem do Mundo, que o requisita sempre. Suas obras são publicadas pelas maiores editoras do gênero; rege as orquestras “Sinfônica Nacional”, “Sinfônica Brasileira” e a Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; apresenta-se como violinista em duo com a pianista Lílian Barreto e, também, com diversas orquestras das principais cidades brasileiras; ensina e forma instrumentistas como professor da Escola de Música Villa-Lobos, da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade Federal do Rio de Janeiro; publica relevantes obras de teoria musical, como “Maracatus no Recife”, “Dinâmica da Harmonia Tonal”, “Dinâmica do Contraponto Tonal” e outras; integra-se a entidades de música e de folclore; membro titular da Academia Brasileira de Música; “Prêmio Nacional de Música da Funarte”; “Medalha de Köeler”, a mais alta condecoração de Petrópolis.

Trabalhador incansável, a morte colhe-o, aos 79 anos de idade, a 26 de novembro de 1993, há quase dez anos, em Botafogo, no Rio de Janeiro, na casa de sua ex-esposa e amiga Célia Guerra Peixe. Velado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o corpo sobe para Petrópolis onde o menino do violino fica para sempre, ante o choro de seus parentes, amigos, admiradores e da cidade que ele tanto amava.

– Menino, com quem você aprendeu a tocar violino?
– Com meu pai, que me ensinou também a fazer ferraduras e colocou-me na estrada da música, sobre montarias de talento e calçadas com as ferraduras, que atritam nas pedras dos caminhos, produzindo relampejos de luz na noite da vida por incandescer.

O maestro César Guerra Peixe merece a homenagem que lhe tributa hoje o povo petropolitano através da Prefeitura Municipal de Petrópolis e do empenho e idealização da Escola de Música Santa Cecília, no mesmo sítio onde brincou menino e a luz se fez sobre sua arte e glória.

E não é de hoje, e vem dos idos romanos, distantes no tempo mas não da memória, a célebre sentença histórica:

“A César o que é de César!”

Confere-se aqui, agora, hoje e para sempre a César o que é dele mesmo: o reconhecimento de seus patrícios e a honra que seu nome empresta a esse encantador recanto da Petrópolis onde nasceu e preparou seu vôo para a glória eterna do reconhecimento de nossa História.

A César, o que é dele mesmo!

Disse.