UM GRANDE MESTRE DA MÚSICA BRASILEIRA

Jeronymo Ferreira Alves Netto, Associado Titular, Cadeira n.º 15 – Patrono Frei Estanislau Schaette

O padre José Maurício Nunes Garcia, um dos grandes nomes da música brasileira, nasceu no Rio de Janeiro, a 22 de setembro de 1767, sendo seus pais Apolinário Nunes Garcia e D. Victória Maria do Carmo.

Órfão de pai aos seis anos de idade, José Maurício foi educado pela mãe, filha de uma escrava, a qual envidou todos os esforços no sentido de proporcionar-lhe esmerada educação.

Possuindo uma voz muito afinada, desde muito cedo manifestou grande vocação para a música, tocando de ouvido viola e violão, tomando aulas de música com o mestre Salvador José, o qual, por sua vez, fora aluno do renomado padre jesuíta Manuel da Silva Rosa, autor de notáveis composições.

Os progressos musicais de José Maurício foram de tal ordem que, ainda muito jovem, tocava vários instrumentos de corda e sopro, em bandas de música e orquestras, cantando modinhas, acompanhadas por cravo, piano ou violão.

A par de sua formação musical, possuía José Maurício sólida formação humanística, tendo freqüentado por três anos seguidos a aula pública de latim, língua que chegou a conhecer a fundo, bem como a aula pública de filosofia racional e moral, disciplina que chegou a lecionar mais tarde com grande brilhantismo.

Por volta de 1790, resolveu abraçar a carreira eclesiástica, ordenando-se sacerdote aos vinte e cinco anos de idade.

A partir de 1792, começou a reunir uma preciosa coleção de músicas e óperas, organizando uma verdadeira biblioteca, ao mesmo tempo em que abriu um curso de música em sua residência.

Seu talento musical era de tal ordem que o Visconde de Taunay, um de seus mais sinceros admiradores, procurou interessar como deputado os poderes públicos na obra de José Maurício; no sentido de divulgação da mesma, a ele se referiu do seguinte modo: “Mestre abalizado em canto-chão, conhecendo todos os segredos do ritual gregoriano, arroubado entusiasta das imensas belezas que ele encerra, como inexcedível expressão da fé e unção religiosa, na contínua e absorvente meditação dos modelos que estudava e interpretava, assentava as seguras bases do mais sólido saber musical” (1).

(1) TAUNAY, Visconde de. Uma Grande Glória Brasileira. José Maurício Nunes Garcia. São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1930, p. 69.

Sua formação musical e humanística e suas qualidades como orador contribuíram sobremaneira para que ele, com apenas trinta anos de idade, fosse nomeado mestre de capela da Catedral e Sé, hoje Igreja do Rosário, ali desenvolvendo, paralelamente às funções religiosas, suas qualidades de compositor.

A vinda da família real para o Brasil estimulou sobremaneira as atividades artísticas no país. Dom João, grande apreciador da música sacra, foi o grande incentivador desta arte na Colônia e um dos maiores admiradores do talento do padre José Maurício.

Assim, sob a proteção de D. João, o padre José Maurício deu início à modernização da atividade musical brasileira, iniciada com a reorganização da Capela Real. A esse tempo “o Coral da Capela chegou a ter cinqüenta cantores e cem instrumentistas, dirigidos por dois maestros, com uma qualidade tão notável que muitos estrangeiros em visita ao Brasil chegaram a compará-lo com os melhores grupos da Europa” (2).

(2) BRASIL QUINHENTOS ANOS. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p. 324.

Acostumado a ouvir diariamente a boa música no paço, o príncipe D. Pedro, futuro imperador, não tardou a manifestar grande vocação para a arte musical. Sua educação musical foi inicialmente confiada ao padre José Maurício, com o qual ele aprendeu a cantar e a tocar fagote, trombone, flauta e rabeca. Posteriormente, estudou com Marcos Portugal, considerado um dos maiores compositores portugueses e com Sigismundo von Neukomm, com o qual teve aulas de composição, harmonia e contraponto.

D. Pedro I tornou-se um ótimo compositor, compondo uma ópera em português, cuja ouverture foi tocada em Paris, em 1832; uma Missa apresentada por ocasião de seu primeiro casamento; Sinfonia da Independência; um Te Deum para quatro vozes e oração, executado, quando do batizado da princesa Maria da Glória; o Hino da Carta, que foi o Hino de Portugal até 1910; o Hino de D. Amélia composto quando da Campanha em Portugal e o Hino da Independência do Brasil.

Hostilizado pelos músicos portugueses, sobretudo por Marcos Portugal, foi o padre José Maurício vítima de acusações levianas, que acabaram afastando-o da Capela Real. A cada nova composição sua sobrevinham críticas dos músicos portugueses: “Falta-lhe gosto” ! “Não teve mestre; não freqüentou conservatórios”!. No bojo de tais críticas encontravam-se a disputa pela preferência do príncipe e o antagonismo entre duas escolas, com diferentes tendências: a italiana, representada por Marcos Portugal e a alemã, representada por José Maurício.

D. João, grande admirador do talento do padre José Maurício, nunca o afastou da Corte, continuando ele a receber auxílio financeiro para compor peças por encomenda, com temas e prazos preestabelecidos. Aliás, não se pode negar que, graças ao apoio de D. João VI, abriu-se no Rio de Janeiro uma fase de esplendor para a música, culminando com a inauguração, em 1813, do Teatro São João, na praça do Rossio, atual praça Tiradentes, onde hoje se encontra o Teatro João Caetano. Com capacidade para mil espectadores, foi logo transformado em grande templo da música.

Infelizmente, não se possui informação completa sobre o total de sua vastíssima obra musical, pois a maioria delas se perdeu. O Visconde de Taunay, em artigo que publicou na Gazeta de Notícias, de 17 de novembro de 1880, estima em quatrocentas composições musicais. Destas, inúmeras se encontram dispersas, sem paradeiro conhecido, e muitas irremediavelmente perdidas.

Tais composições constavam de missas, Te-Deums, credos, ladainhas, antífonas, matinas, novenas, responsórios, ofícios fúnebres, peças teatrais, sonatas, hinos, árias e modinhas.

De sua autoria é o “Requiem”, considerado uma das obras-primas da música religiosa brasileira que, no dizer de Mário Andrade, “pela invenção melódica de uma serenidade, de uma nitidez puras, se equipara ao que faziam, no gênero, os italianos do tempo” (3), e a mais famosa missa de santa Cecília.

Faleceu o padre José Maurício Nunes Garcia a 18 de abril de 1830, no Rio de Janeiro. Expirou, cantando o hino de Nossa Senhora.

(3) ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1947, p. 167.