GUARANÁ FOI CASCATA!

Oazinguito Ferreira da Silveira Filho, associado titular, cadeira n.º 13, patrono Coronel Amaro Emílio da Veiga

Como diabético fui surpreendido por um refrigerante de guaraná de uma multinacional do tipo “zero”. Seu sabor lembrou-me não somente algo de minha infância como também de minha juventude. Conduziu-me ao passado, a minhas lembranças.

Peter Burke considerado atualmente um dos maiores historiados do mundo e também o pai da nova história cultural (NHC), o fato de se relevar uma “história dos odores e sabores”, essencial para o registro da memória das comunidades.

Para reforçar esta dinâmica processual histórica ele recorre com grande prazer a literatura pesquisando cenas, narrações, onde os grande escritores recorreram a este fenômeno como expediente para reforçar característica de regiões ou de momentos da sociedade humana.

Discussão à parte sobre os defensores da História das Mentalidades nos restringirá, teoricamente a esta citação, já que nosso ensaio destina-se em sua maioria a leigos.

Petrópolis, como não poderia deixar de ser, também possuiu recentemente esta memória dos odores. Desde a era Koeler com a preocupação da construção das casas, nossos “rios”, acabaram se transformando em esgotos a céu aberto, não importando a área ou quarteirão próximo onde estiverem após vários dias sem uma manifestação pluviométrica somos abordados pelo “cheirinho” tradicional. Cheiro este que já nos acompanha a quase quatro décadas seguidas, basta que se consultem os jornais e colunistas dos períodos citados. Nos primórdios da organização urbana da era Koeler, os moradores próximos à área onde se encontra hoje a Catedral, reclamavam do abatedouro de gado a céu aberto, que impunha aos nobres moradores da região não somente o cheiro fétido das carcaças jogadas ao rio, assim como a presença dos urubus, o que conduziu a reclamações freqüentes (O MERCANTIL).

Esta linha de odores é tão tradicional, que os jornais petropolitanos já acentuavam outro odor também característico de uma “era”, o odor das anilinas químicas que eram lançadas aos rios pelos tintureiros das fábricas, desde a década de 40 (Jornal de Petrópolis & Tribuna de Petrópolis). Odor hoje que só se faz presente por força de uma única fábrica presente na cidade, a Werner. De meus tempos de infância trago o cheiro forte da chuva tocando a terra seca em pleno verão, inconfundível odor prazeroso em algumas ruas do Bingen que não eram calçadas.

Porém outra história que Burke e outros pesquisadores também assinalam seria a dos sabores, desenhado também com grande maestria pelos literatos.

Quanto a este fato, recentemente trouxeram-me um guaraná mineiro, tão saboroso que me lembrou minha infância, quando saboreava com grande sofreguidão o famoso guaraná caçula da Cia. Antártica.

Mas, tornei-me escravo de um sabor mais apurado, lembrado por este refrigerante do tipo “zero”, cuja lembrança era incomparável, ao do nosso guaraná da Cascata, da fábrica dos irmãos Mora na Washington Luis. Que tão pouca lembrança os petropolitanos possuem.

Seu sabor era de uma pureza inigualável, assim como a própria fruta do guaraná.

Quando na década de 70 tornei-me funcionário desta empresa, pude satisfazer minha curiosidade com seu processo de fabricação, artesanal, que impressionava, assim como os rótulos das bebidas famosas produzidas pela própria.

Tanto o extrato como a essência eram distribuídos pela C.N., Concentrados Nacionais, que fica localiza-se ainda hoje na rodovia Rio-Petrópolis, na altura de Campos Elíseos em Duque de Caxias, e da qual empresa também me tornei poucos anos depois funcionário.

Nesta, descobri que os citados produtos eram comercializados para três Cias. Brasileiras, desde o fim dos anos 60, no mesmo contexto de sua fórmula para o xarope. Estas eram: a própria Cascata; a Alterosa de Belo Horizonte e a Brahma. Mas mesmo assim, quando saboreávamos havia uma diferença que sempre girava a favor do produto da Cascata. Descobrimos tempos depois que esta diferença se processava motivada pela água, esta se originava de uma fonte próxima à empresa, uma “mina”.

Água! Assim como a água que hoje representa a diferença entre a Bohemia que era produzida em Petrópolis e a que atualmente é produzida pela Antártica em suas fabricas de São Paulo e do Rio.

Assim como Bohemia é história para Petrópolis (não em 1953, como assinalado em sua publicidade), a Cascata dos Mora e seu inconfundível guaraná também se tornaram história para nosso contexto memorialístico industrial e como observamos sócio-cultural.

Suas imagens publicitárias se faziam constantes nos jornais petropolitanos após a 2ª guerra. Observamos atentamente a frutinha que consta da mesma, copiada pelo caçula da Cia. Antártica Paulista. Outra publicidade, que é genérica quanto aos produtos, analisada de cópia extraída de publicação de 1928 fornece como endereço original a Rua Bernardo de Vasconcellos na Cascatinha onde a família Mora começou a fabricar seus produtos, mudando-se posteriormente para a Rua Washington Luís onde adquiriram grande terreno, instalando à frente do mesmo sua fabrica e nos fundos uma vila de casas para a própria família, assim como o prédio que foi construído sobre o edifício da fábrica.

Vamos a um pouco de história: a Cervejaria Mora, foi originalmente fundada em 1903, quando organizou-se como pequena indústria. Mas somente quando tomou a denominação de Fábrica de Bebidas Cascata, transformada de Sociedade Coletiva Mora & Cia., para Fabrica de Bebidas Cascata S/A. (1946), ganhou importância no mercado cervejeiro fluminense com a produção das cervejas Cascata Preta e Cascata Branca.

Em 1928, ao analisarmos sua publicidade, observamos que era distribuidora oficial dos produtos da Cia. Cervejaria Hanseática do Rio de Janeiro, em Petrópolis. Mas em 1942, a Cervejaria Hanseática foi adquirida pela Brahma, o que conduz ao fim do contrato de distribuição dos produtos na região serrana.

O anúncio da Cervejaria Cascata em 1928 também era especifico quanto a seus produtos. Produção das famosas cervejas Branca e Preta, sendo que a preta era vendida em todos os pontos da baixada fluminense onde houvesse um ponto dos ônibus da Única e Útil em direção à Petrópolis e concorria com a famosa cerveja preta da “Americana” ainda de rolha.

Os demais produtos segundo o citado anúncio eram, licores finos; águas gasosas, um glamour entre as damas; os famosos xaropes para refrescos, que dominavam o comercio popular nos quarteirões, e servindo também às cozinhas para fazer iguarias de primeira qualidade, sendo algumas, alemães; finalmente a bebida em que os Mora eram considerados experts na fabricação, assim como todos os italianos tradicionalmente de origem, o Fernet chamado aqui por Fernet-Mora.

Ainda nos recordamos com constância que nos anos 70 o mesmo Fernet era o hábito tradicional nos quarteirões e distritos de Petrópolis, onde nos bares, desde o começo do século 20, era costume servir “uma patrícia com botões dourados”, ou seja, “uma parati” ou ainda se quiserem a famosa “mineira”, com gotas de Fernet.

O Fernet era uma bebida da linha dos “aperitivos amargos” como o bitter, o absinto, entre outros. O fernet é originário da mistura de álcool de indústria diluído com princípios amargos de origem vegetal, ervas tais como a genciana, camomila, noz-vômica, quássia, safrão, mirra, entre outras. Em alguns casos encontra-se a presença de até 40 ervas, sendo a receita original da Fratelli, um segredo.

Estas bebidas são geralmente consideradas mais nocivas, porque eram preparadas no passado com álcool de indústria, muito mais impuro. O álcool de indústria ou retificado contém, além de álcool etílico, aldeídos (acético, furfúrico ou furfural), éteres (acético, butírio), álcoois superiores (amílico, butílico, propílico, etc.). Na Argentina, onde possui consumidores radicais, as ervas são maceradas em álcool de uva. Muitos produtores deixam fermentar por até doze meses. O fernet possui uma cor escura e um aroma intenso, seu teor alcoólico é de 45o a 52o G.L.

O aperitivo é de todas as bebidas alcoólicas a mais prejudicial à saúde por que: em primeiro lugar é ingerido com o estômago vazio; e em segundo lugar, contém certas tinturas ou essências tóxicas, como o absinto.

A fórmula foi criada em Milão por um farmacêutico chamado Bernardino Branca em 1836, que criou em 1845 a empresa Fratelli Branca para produção comercial do produto. Tornou-se uma bebida de grande consumo dos italianos, principalmente para os trabalhadores e operários que o saboreavam com a “barriga vazia” antes das refeições, outros as sorviam com fins medicinais para o aparelho digestivo.

Imigrantes italianos passaram a produzi-la em outras regiões, como na Argentina pela própria Fratelli e no mesmo período pelos Mora no Brasil.

Na Argentina existe o hábito de servir com água mineral ou qualquer outra bebida gaseificada. A Fratelli chegou a produzir uma versão com sabor de menta.

O consumo da Fernet em nossos dias, pela elite, levou a produção da chamada Fernet Branca que é servido geralmente como um digestivo após uma refeição, mas pode também ser apreciado com café-expresso, ou ser misturado em bebidas. Pode ser puro apreciado na temperatura de quarto ou com gelo. Uma versão “flavored mint” do Fernet Branca, o Branca Menta, estava também disponível.

Como já dito, seu consumo entre os petropolitanos pobres era tradicional, existem registros locais (jornais) de que durante a epidemia de Gripe Espanhola em 1918, seu consumo foi exagerado, pois consideravam popularmente que quem consumisse diariamente a bebida ficaria imune a própria gripe, pois as ervas presentes na bebida lhe dariam essa imunidade.

Outra característica era a presença da propaganda deste produto dos Mora nos bares e “botecos” próximos aos estabelecimentos industriais como os da Cascatinha, da São Pedro de Alcântara, ou Santa Irene, entre outros. Os descendentes de italianos corriam com sofreguidão para a bebida antes de suas refeições.

Na atualidade poucos são os consumidores desta bebida ante a explosão das Cias. Cervejeiras brasileiras e de sua luta pelo mercado consumidor.