1 – MAXIXE SUBVERSIVO

A canção “Cálice” de Chico Buarque de Holanda, êxito da música popular em 1978, levou cinco anos congelada até obter permissão do Governo Federal em Brasília, para ser gravada e veiculada.

Em se tratando de Chico Buarque, nosso Schubert caboclo, não admira a perseguição que sofreu da censura militar oficial, que em matéria de música, como em toda produção artística, chegava às raizes do absurdo, temerosa de um “fá” menos ortodoxo, ou de um sincopado mais extremista.

Há quem julgue que essas e outras perseguições, a depor vergonhosamente contra a cultura nacional, e o grau de inteligência dos censores, é coisa do nosso tempo, fruto da política pós 64.

Na verdade, trata-se de coisa bem antiga. Durante quatro séculos vivemos sob regime colonial com o pensamento brasileiro censurado duplamente: pelo governo de El Rei e pela Igreja. Com pouco mais de 150 anos de independência, ainda não aprendemos a viver dentro do regime da liberdade criadora, viciados na mentalidade do colonato, que passou da monarquia e atravessou a república, com raros interregnos de respeito à cultura e à arte.

No tempo do Presidente Afonso Pena, por exemplo, quando o Marechal Hermes era Ministro da Guerra (atual Ministro do Exército), mandou proibir a execução do maxixe pelas bandas militares, porque tal gênero musical popular, segundo a autoridade, depunha contra os foros de civilização do Brasil, por ser música de negros e de gentinha. O Marechal Hermes, depois Presidente da República, era admirador ferrenho do militarismo alemão e coube-lhe convidar a missão militar alemã que veio ao Brasil em 1908, para assistir as manobras militares do Exército, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Depois das manobras os oficiais prussianos foram homenageados com um desfile de bandas militares e, quando o chefe da missão visitante Von Reichau ouviu nossos músicos, ficou tão entusiasmado que pediu ao Marechal que fizesse tocar o mais recente sucesso do Carnaval carioca – o maxixe “Vem cá Mulata”, que fazia furor até na Europa, sendo conhecido na Alemanha.

Os alemães foram atendidos e a banda puxou o maxixe bem sapecado, que para os anfitriões foi um verdadeiro escândalo. Já é velha, como se vê, essa mania de nós nos envergonharmos do que é nosso e bom. Cinco anos depois, em plena Presidência da República, o Marechal Hermes, casado com D. Nair de Teffé, amiga dos artistas e ligada à alta sociedade carioca, foi obrigado a aderir ao maxixe e liberar sua execução, a partir do momento em que a primeira Dama da República, numa festa no Palácio do Governo, deu escândalo, executando ao Piano o maxixe “Corta Jaca”, da famosa maestrina e compositora Chiquinha Ganzaga, que a acompanhou ao violão.

O preconceito em relação ao “Cálice” e a outras músicas tidas depois por “subversivas”, como vemos, é apenas reflexo de uma incultura ou ignorância que remonta a bem dizer, aos tempos de Cabral. Em suma, são os herdeiros da velha elite alienada e colonialista, que temem o prestígio do Brasil Povo.

2 – MANDELLA E O BOI–BUMBÁ
O presidente Nélson Mandella, da África do Sul, visitando, recentemente, o Brasil, foi homenageado em Brasília com exibições de um grupo do bumba-meu-boi (boi -bumbá) do Amazonas e uma Escola de Samba do Rio de Janeiro. Mais uma vez, a tolice oficial, querendo agradar estrangeiros “de cor” ou dos países africanos, com demonstrações que nada tem a ver com suas supostas etnias, culturas ou raízes afro-negras do Brasil, promove desses equívocos, indesculpáveis em elites culturais que se supõem letradas.

O bumba-meu-boi, como os bumbás, bois-de-reies (nordeste), boi-calemba, boi-de-mamão, etc, como são conhecidos esses folguedos populares (Rossini Tavares de Lima) ou danças dramáticas populares (Mário de Andrade), pouco ou nada têm a ver com as atuais culturas e povos melano-africanos. Não são manifestações do chamado folclore negro, nem foram inventados em África. Em suas raízes mais remotas, esses autos populares, encontrados também no Rio de Janeiro (onde foram estudados desde os fins do século passado por Melo Morais Filho), se prendem a tradições populares de Portugal. O poeta Gil Vicente, pai do Teatro Nacional Português, que viveu no século 16, aproveitou um desses, de autoria anônima, para compor seu Auto do Vaqueiro, ou Monólogo do Vaqueiro, apresentado em 1502 na corte de el-rei D. Manuel. Essa é a mais antiga manifestação do que seria um bumba-meu-boi urbano. Alguns autores, como Artur Ramos, filiam a brincadeira “do boi” aos antigos cultos pagãos do “Boi Ápis”, o bezerro sagrado, adorado no antigo Egito. De parte essas e outras especulações, o certo é que o teatro do boi nordestino só aparece nas áreas de criação de gado, no sertão. De lá ter-se-ia irradiado para o sul e amazônia. A história é de feição européia, mesclada de importações indígenas: fadas, vilões, vaqueiros e índios. As figuras de pretos no boi-bumbá, são caricatas, como “Pai Francisco” e escravos. Os ritmos nada têm do índio ou do negro de África, mas misturam um pouco de tudo com o bumbo português, de onde vieram nossas marchinhas. Mas, ao cabo, tudo é brasileiro, mestiço, sincretizado. Em resumo, o boí-bumbá do Brasil é transformação, recriação, originalidade BRASILEIRA, não africana, indígena ou estritamente lusitana. Sendo criação nossa, da qual nos orgulhamos, não deve favores à Africa do Sul, nem o presidente Mandella tem a menor parcela de compreensão do tema. Nunca existiu bumba-meu-boi na zona do açúcar, nos engenhos, nos canaviais, onde a população era predominantemente afro-negra, ensina Câmara Cascudo, a maior autoridade

no assunto. Os folguedos dos escravos eram outros. Quanto às escolas de Samba, é outra idiotice, em termos de antropologia cultural; filiá-la à África

ou aos pretos. O que chamamos de samba, no Brasil, não existe na África. Este samba é criação nossa, brasileira, mestiça, original, não africana ou “negra”. O que os escravos praticavam aqui era a umbigada, o batuque, o lundu. Quando seus descendentes, já livres, passaram, no Rio de Janeiro, a inventar blocos, ranchos, ritmos carnavalescos, etc., toda aquela herança musical e coreográfica já estava caldeada, depurada, reformada, diferente dos originais de África. Numa palavra, o samba é nacional, fruto das contribuições de pretos e brancos. Nem a palavra escola-de-samba é invenção afro-negra. É cultura erudita, popular, mas erudita, de elites citadinas, com seus instrumentos, passos, organizações e grandes representantes. O morro não é negro, nem africano. É brasileiro. Se a escola de samba fosse africana ou negra, a África do Sul teria as suas, e Mandella não as veria aqui, como “novidade”. Novidade, sim, mas não africana ou da África do Sul, muito menos “negra”. As nossas Escolas de Samba atuais são empresas capitalistas: feição norte-americana, ou européia “Brancas”, se quiserem. Mas brancas; mestiças; mulatas; morenas, caboclas. Em resumo, nada têm que se relacione a qualquer cultura da qual Mandella seja protótipo: mesmo porque, não existe cultura negra no Brasil. O que existe é a CULTURA BRASILEIRA, resultado de uma evolução de séculos, da qual participou o escravo vindo da África e que aqui incorporou-se à cultura portuguesa, européia, a sua vez transformada, inclusive pela indígena. Quem duvidar, procure falar o nagô, em Brasília, publicar livros, jornais, revistas, romances, poesias, em um dos 600 ou 700 dialetos bantos, e veja se encontra quem os entenda, fora das cátedras universitárias. Ou vá à África e procure candoblés, ubandas, macumbas como temos aqui, e as religiões e orixás tão nossos conhecidos. Possivelmente se espante ao ver que os negros da África não são tão “negros” assim, em sua cultura, como dizem os nossos etnógrafos, etnólogos e antropólogos copiadores de fórmulas políticas, supondo-as científicas ou coerentes com a Historia.

De resto, Mandella é presidente de um país de regime parlamentarista (invenção inglesa), fala oficialmente o inglês, veste-se como qualquer europeu, não frequenta terreiros, comparece à ONU, instituição “branca” e não consta que ande perseguindo suas “raizes”, que são as mesmas de qualquer ser humano, desde a pré-história.

Nota l – Adelino Brandão é natural do Estado do Pará e há anos radicou-se na cidade paulista de Jundiaí, onde é professor, advogado, jornalista, folclorista, historiador, sendo figura de destaque a nível de Brasil no que concerne aos estudos euclideanos. Dono de uma obra consistente, onde se destacam livros dedicados à exegese das várias facetas intelectuais e humanas de Euclides da Cunha, membro de inúmeras agremiações culturais aquém e além fronteiras, Adelino Brandão tornou-se sócio correspondente da Instituto Histórico de Petrópolis, ao qual emprestará muito de seu brilho e de seu talento, através da colaboração que com certeza dará a esta já tradicional página.

Nota 2 – O maxixe foi a grande vilão da música popular brasileira no princípio do século e quis o destino, que o quadradão e superado Marechal Hermes pagasse caro tributo por have-lo perseguido injustificadamente, só para dar satisfação a uma sociedade de castas suzanas e de colonialoides. A talentosa Nair de Teffé, alma de artista eivada de brasilidade, levou o gênero proibido para dentro da Palácio do Catete, vingando assim as nossas mais autênticas raízes culturais, hoje, graças a Deus artigos de exportação com excelente desempenho no mercado internacional.

Algo parecido aconteceu no Crato, Ceará. José Alves de Figueiredo, Intendente naquela cidade caririense, nos tempos da República Velha, proibiu através de um decreto, que folguedos tradicionalíssimos naquele meio, fossem apresentados publicamente, porque contrastavam com o nosso status de civilizados. Assim é que reisados, bandas cabaçais, lapinhas, dançadores de côcos, cantadores diversos, foram rotulados de fora da lei naquele belo rincão do sul do Ceará. Anos depois, seu primogênito, José Alves da Figueiredo Filho (l904/ 1973), seria um dos maiores folcloristas cearences, com pelo menos duas obras fundamentais: O Folclore no Carirí e Folguedos Infantis Cariríenses.

Sobre a perseguição ao maxixe, vale recomendar aqui dois livros: Maxixe A Dança escomungada da autoria do cronista Jatoefagê e, A Pioneira Chiquinha Gonzaga, de Geisa Boscoli. – Francisco de Vasconcellos.