HOMENAGEM A ERNESTO TORNAGHI

Jorge Ferreira Machado, ex-Associado Emérito, falecido

Aqui estamos, meus senhores e minhas senhoras, para que eu faça, cumprindo missão que me foi imposta, e para escutardes, o panegírico de Ernesto Tornaghi, que a morte usurpou do convívio desta Academia na manhã de 22 de julho de 1953.

Que esta casa não foi feliz ao designar-me para tão espinhosa tarefa, não tenho a menor dúvida. Não poderia recusá-la, todavia, cônscio embora da dificuldade do encargo que a mim cometeu o preclaro presidente deste sodalício, que poderia ter avocado à sua mesma capacidade de intelectual ilustre e, o que representa muito mais, à qualidade de amigo, que sei sempre o fora, muito fraternal, daquele que hoje é motivo desta homenagem, o discurso oficial desta sessão solene, na qual será recordada de um modo especial a personalidade do saudoso confrade, que meu o era duplamente nesta casa e na profissão, que ambos pela vida toda nos dedicamos ao exercício da medicina.

Aí, talvez, a razão do gesto do Exmo. Sr. Dr. Mário de Paula Fonseca, a quem agradeço, de início, tão elevada honra, aos meus ouvintes, solicitando, de antemão, as mais amplas indulgências, se vos não falar, como devera, à altura da personalidade do homenageado.

O panegírico, diz-nos o Padre Antônio Honorati, teve sua origem nos jogos olímpicos. É uma palavra grega, afirma ele, “que, significando o ajuntamento do povo que concorria para ouvir os louvores do vencedor, passou, por metonímia, a traduzir o discurso com que celebravam estes louvores”.

“Dois eram os ofícios de tais discursos: – são ainda palavras do sábio jesuíta – o primeiro, exaltar as proezas do herói; o segundo, excitar o povo à imitação”.

Esta é, assim a compreendo, a comissão que me foi nesta oportunidade imposta. Exalto, com prazer, os feitos do herói; que outra coisa não foi o ilustre confrade, em toda a trajetória de sua existência neste mundo, espero que seja a vossa conclusão ao término das minhas palavras. E que muito se tem dele a imitar, haveis de ver; eu o desejo e imploro a Deus tê-lo demonstrado, muito embora me encontre agora na mesma situação em que, pelos fins do século XVII, por volta de 1677 (segundo Solidônio Leite, Clássicos Esquecidos), se achava o Padre Francisco de Santa Maria ao escrever os panegíricos de São Lourenço e do Padre Antônio da Conceição, quando dizia, no mais puro estilo vieirense: “Mas oh! Que dificultosa matéria se oferece agora ao meu discurso! Cifrar, em breves períodos, dilatados encômios, árdua obrigação! Reduzir a poucas cláusulas ações merecedoras de largas escrituras, dificultoso empenho! O juízo pasma, a língua emudece, a mão trêmula desampara a pena, ficando-me sempre a minha incapacidade para tão árdua empresa. Ora, é certo que o mesmo que pudera desalentar minha insuficiência, anima a minha confiança; o que pudera ser ocasião de temor, é incentivo ao desempenho; a mesma grandeza da matéria, a mesma inacessibilidade do assunto me anima, me incita e me provoca”.

Foram precisamente esses sentimentos que de mim se senhorearam, fazendo-me aceitar a designação do preclaro Presidente, para lembrar a pessoa de Ernesto Tornaghi, para mim três vezes companheiro, pois acadêmico, médico e professo na mesma fé. E em todos os três aspectos, verdadeiro paradigma.

Não sei como destacar, isoladamente, cada uma destas facetas de seu fulgurante espírito.

Se falo do acadêmico, tenho que lembrar o médico; se deste me ocupo, forçado sou a recordá-lo como homem de fé.

Por isso que na profissão foi um sacerdote, do seu exercício mesmo sempre se valeu, para servir ao seu Deus e Senhor, em obediência ao mandamento supremo do amor – o amor ao próximo como a ele mesmo – quantas vezes mais do que mesmo a ele, subindo e descendo os morros desta cidade, prestando seus serviços, desinteressados da pecúnia, na órbita das Conferências Vicentinas de que foi um grande baluarte, ou simplesmente dentro do seu espírito de verdadeiro clínico, na real expressão do juramento hipocrático, que é um apostolado, pleno de dedicação, realizando aquilo que escreveu René Dumesnil – “a alma do médico conserva sua frescura alimentada pela fonte perene da caridade”.

E quantos momentos houve em que ele mesmo, pasmo da insuficiência da medicina, não ergueu os olhos aos céus, clamando pelo supremo Senhor de todas as criaturas, Aquele que dispõe de todo o universo, implorando-lhe misericórdia para seu enfermo arquejante e auxílio, um raio de luz emanado de sua Divina Graça, para sua frágil inteligência humana.

É o mesmo autor da “Alma do Médico” quem coloca na boca de um enfermeiro de campanha, também sacerdote, essas maravilhosas palavras: “Tu quoque sacerdos, medice… Deus docet manus tuas”.

O nosso Tornaghi, fazendo medicina, jamais deixou realmente de ser sacerdote, e sacerdote de Deus. Eis por que uma imprecação nunca se ouviu do seu coração tantas vezes magoado pelo aparente fracasso profissional, pois ele em tudo enxergava o supremo desígnio da Providência Divina e lhe era obediente. E seria isto amesquinhamento? Seria porventura uma conformação comodista? Ou meramente convencional? Nunca, jamais!

Era porque Tornaghi, católico fervoroso, consciente de ter cumprido sempre, em toda a sua plenitude, o dever profissional, possuía certamente aquele espírito de que nos falam estas frases do saudoso Bispo de Niterói e Petrópolis, que ilustrou no seu tempo esta Academia, palavras que peço vênia para, neste passo, reproduzir.

“O conceito católico de obediência”, escreveu Dom José Pereira Alves, “é honroso para a humanidade. A obediência de caráter humano é humilhante. O homem, que é um vassalo sublime, só depende de Deus. Toda a obediência que não tem caráter divino é uma grilheta. Na doutrina católica, a razão de obedecer se funda na autoridade que vem de Deus. Obedecemos ao Papa, não porque seja homem, porque seja douto ou eminente, mas porque é Vigário supremo de Deus. Obedecemos, portanto, a Deus, cuja autoridade se encarna no homem. A obediência, em vez de ser uma diminuição, exalta-nos”. E arremata esses lapidares pensamentos o insigne Pastor, de tão saudosa memória, com essas edificantes expressões: “A obediência cristã não é uma escravidão. É a vontade humana que se conforma com o plano providencial e, alegremente, se submete à ordem querida da Divindade”.

Aí estava o segredo de sua personalidade. Modesto, simples, boníssimo, aos seus contemporâneos se agigantando nas campanhas de idealismo, nas lutas contra as trevas da ignorância, nas porfias pelas coisas da inteligência. Dotado de tal espírito de fé, não pode causar admiração tenha Tornaghi usado a sua inteligência e aproveitado a sua cultura para esmiuçar questões religiosas, combatendo, em conferências e trabalhos, erros e heresias, divulgando, pelo mesmo veículo, esclarecimentos doutrinários ou debatendo assuntos sociais que, ontem como hoje, continuam tendo especial relevo.

Tratando temas religiosos, filosóficos ou sociais, Tornaghi revela-se sempre o homem de profundidade, conhecedor do assunto em seus mínimos detalhes, possuidor de sólida cultura. E os apresenta sempre sob a forma mais bela que se lhe poderia exigir, como primor de linguagem.

O Círculo de Estudos São Norberto foi ambiente para alguns trabalhos seus, conferências ali proferidas no transcurso de vários anos de atividade daquele sodalício nesta nossa cidade. Consegui ter sob as vistas algumas delas, das quais darei aqui breve notícia, apenas para, nomeando-as, salientar o interesse dos temas versados.

Em 9 de outubro de 1932 tratou do “Espiritismo”, apreciando seus aspectos histórico e evolutivo, escavando-lhe as origens nos tempos mais primitivos, a ponto de recordar as imprecações de Moisés contra semelhantes superstições, exaradas no Deuteronômio e no Levítico. Examinou, com abundância de erudição, a doutrina espírita pelo seu lado pseudocientífico. Abordou a sua face moral e sociológica para, em conclusão, advertir: “É preciso instruir o povo, ensinar-lhe a distinguir, em meio às roupagens enganadoras de que o espiritismo se reveste, sob seus aspectos multiformes, o engano, a fraude, o embuste, o sofisma de todas as suas práticas nocivas que arruínam a saúde do corpo e infiltram na mente humana o tóxico terrível que conduz às sombras da loucura, noite terrível, pior mil vezes que a própria morte. E tudo isto em nome de quê?” Responde ele mesmo, com esta sentença: “Duma doutrina sem base, sem fundamento lógico e que somente tem servido para o atraso, para o retrocesso da humanidade”.

No ano seguinte, 16 de julho de 1933, ocupou-se o nosso saudoso confrade de “O direito dos pais na educação moral e intelectual dos filhos”.

Preocupara-o a tendência que vinha sendo observada no Estado de se tornar “onipotente, onisciente e onidocente”, numa legislação intervencionista e até mesmo monopolizadora – para usar suas expressões – dos problemas educacionais.

E depois de versar a tese com erudição magnífica, ele termina sua bela conferência com as seguintes palavras: “chamando, por fim, a vossa atenção para a colaboração recíproca da Escola e da Família, para o auxílio mútuo prestado, cabe-me salientar o proveito que do fato advém para a obra comum da educação. A colaboração dos pais facilita sobremaneira a atuação dos mestres. Sobre os pais se exerce, muitas vezes, a ação educativa da escola. Um apelo, pois, aos pais, que têm consciência dos seus deveres: o interessarem-se pelo que se passa nas escolas ou nos colégios frequentados por seus filhos. Acompanhem o progresso do aluno; examinem os métodos e processos educacionais e, concomitantemente, verifiquem o cuidado que se dispensa à saúde física, mental e moral do discente”.

Ainda se dedicaria ele, nesse mesmo ano de 1933, aos problemas da mocidade, falando na data nacional de 15 de novembro, no salão do Ginásio Pinto Ferreira, escolhendo como motivo de sua oração “A apologia do trabalho e o valor da educação”, que mais tarde sairia a público nas folhas do quinzenário que nesta cidade se editou, sob o título de “Terra e Céu”.

“O anseio supremo da humanidade consubstancia-se na conquista da felicidade. Em busca deste ideal, quase sempre inatingido, todos os seus esforços convergem. E nunca, como nos tempos atuais, se mostrou mais evidente o conceito do mens sana in corpore sano, aplicado com eficiência”; assim inicia ele este discurso, verdadeira página de civismo e de fé que legou à juventude daquele Ginásio.

“Impressões sobre o Congresso Eucarístico de Buenos Aires”, foi matéria para outra conferência, proferida em 11 de novembro de 1934, no Círculo de Estudos São Norberto, e também publicada. Aqui observa quem o lê a sua capacidade de relatar, repórter todavia de alta estirpe, fixando com fidelidade as menores minudências do fato vivido naqueles dias de homenagem a Jesus-Hóstia, na qual tomara parte, como Legado Pontifício, este mesmo Pacelli que hoje, sob o nome augusto de Pio XII, dirige seguro, por entre um mundo tempestuoso, a barca insoçobrável de Pedro.

Ainda sobre a Eucaristia, dedicaria Tornaghi outra conferência, como mais além irei recordar-vos.

E por ter-me referido às qualidades de repórter que ele possuía, deixai que um parênteses eu faça à exposição de suas conferências, para lembrar-vos os seus escritos na imprensa profana, geralmente impressões de viagens, como aquelas que publicou ao retornar de Recife, sua cidade natal, da qual se afastou quando menino e aonde somente voltava já três décadas decorridas. E que ele muito a amava, não padece dúvida, pois lá está escrito no contexto esta frase: “Agradeço ao nosso bom Deus o ter-me proporcionado a ventura de ali passar alguns dias de férias, felizes e tranquilos, e que foram para mim de descanso para o corpo e muito proveito espiritual no meio daquela boa gente que se desfaz em obséquios e agrados”. Entre outras, desejo ainda referir a crônica por Tornaghi publicada sobre “Retiro espiritual”, vindo frequentar os Exercícios de Santo Inácio no Colégio Anchieta, de Friburgo, na qual ele dá a lume magnífico soneto, que ali mesmo compusera dedicado aos Padres Pregadores e que, em breves momentos, ireis ouvir recitado pela voz cheia de arte e beleza da Senhorita Marinha Marques.

“Não é possível pensar seriamente fora do âmbito marcado pelos mestres imortais do pensamento humano, de acordo com as normas traçadas ou diretrizes estabelecidas pelos grandes pensadores”.

“Para quem quer estudar conscienciosamente, constitui o filósofo o guia necessário e imprescindível e se, além de cultor da filosofia, for teólogo, do seu saber e do seu ensino vemos jorrar a luz que ilumina o caminho da verdadeira cultura humanística”.

Estes dois períodos, que acabastes de ouvir, constituem o intróito da conferência proferida em 12 de agosto de 1936, ainda no mesmo Círculo de Estudos a que tanto brilho e relevo conferiu, sobre a “Importância da doutrina filosófica de Santo Tomás de Aquino”. E ei-lo, com profundeza de conhecimentos, discorrendo sobre o Doutor Angélico e sua doutrina, expondo, argumentando e discutindo as obras daquele sobre quem disse o Pontífice João XXII, e para o que chama atenção nosso querido e memorável companheiro, – “tantas luzes não se explicam sem o milagre”.

É que Ernesto Tornaghi, numa avidez de estudo própria dos privilegiados, já vinha se dedicando a perquirir, em todas as suas profundezas, a doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana, da qual, sem qualquer resquício de respeito humano, ele se considerava filho dedicado.

E, destarte, dois anos antes, 10 de junho de 1934, entretivera seus ouvintes e leitores com um tema perigoso e difícil, pela possibilidade de ver-se de braços com árdua e delicada polêmica. Reporto-me ao seu trabalho sobre o “Pretenso liberalismo católico”.

A primeira parte desse interessantíssimo estudo dedica o seu autor à apreciação do liberalismo em geral. Procura defini-lo, analisá-lo sob variados pontos de vista, quer filosófico, quer político, e situá-lo dentro dos princípios da Igreja, à luz dos ensinamentos dos Pontífices, especialmente Pio IX, Leão XIII e Pio XI. A segunda e mais importante parte deste aprofundado trabalho, destina Tornaghi à discussão do pretenso liberalismo, palavras que serviram de título à sua tese.

E depois de muito respigar, conclui assim: “Só temos um caminho a seguir como bons católicos, e este vem a ser a adesão completa, sem restrições, a todas as doutrinas emanadas da Santa Sé, a obediência a todos os ditames doutrinais, morais ou disciplinares, estabelecidos pela autoridade inconteste do Sumo Pontífice. É este o nosso lema, a nossa divisa, o nosso galardão – e servirá, estou certo, de broquel contra doutrinas malsãs, de antemural seguro a tudo quanto se queira opor à convicção sincera que nos anima, à confiança absoluta em Nosso Senhor Jesus Cristo, e à fé segura que deve existir no coração de todos aqueles que se dizem católicos, honrando este nome, que, por si só, constitui evidentemente uma glória legítima e uma suprema vitória”.

Os problemas sociais não poderiam deixar de interessar a um espírito culto de tal envergadura; assim é que o vejo abordar momentoso assunto, com a mesma profundeza de sempre, no seu trabalho “Crises econômico-sociais”, proferido no mesmo palco do Círculo São Norberto, em 21 de novembro de 1937. Resolve a questão em todos os seus meandros, estuda-lhes os pródomos, dando relevo ao papel representado pela quebra da unidade religiosa, com a heresia de Lutero, dizendo das influências da Revolução Francesa, até chegar ao materialismo de Marx, desenvolvendo seu raciocínio no sentido de estudar o problema da chamada luta de classes, que investiga com detalhes, apontando, na cristianização da vida, a solução almejada.

O mesmo tema serviria, no ano passado, 1952, ao Professor Renato Costa, ao paraninfar a colação de grau dos bacharelandos da Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ao ler esta oração, a que neste instante me refiro, pareceu-me ver, em outras palavras, aquele mesmo argumento de Tornaghi. “Só o cristianismo – afirma o professor gaúcho – resolve o problema das relações de Deus e do homem; só em Cristo a raça humana pode encontrar a solução; só o espírito cristão pode construir uma sociedade e uma cultura, que não destruam o homem”.

A fé que possuía era firme e resoluta. Tornaghi a ela se dava por inteiro. Do que afirmo, deixou expressivo documento o seu trabalho “A Eucaristia e o Amor Paterno”, tese apresentada ao Congresso Eucarístico de Petrópolis, nesta cidade reunido em maio de 1943.

Eucaristia é um tema ao qual se dedica Tornaghi com enlevos de amor, ao Sacramento de Amor. Ele todo se emprega ao analisar o dom da Eucaristia, para defini-lo assim: “Dá-nos o Homem-Deus, o assombro da natureza dos homens e dos anjos, o desejo das colinas eternas, o amor dos patriarcas, a glória dos predestinados, o Redentor do mundo, o Rei do céu, o Verbo eterno do Padre”.

O Amor Paterno, este ele define como “um reflexo do Amor Divino, a se infiltrar no coração dos pais, com todas as veras da alma, zelando pelo bem que Deus nos confiou e que são os nossos queridos filhos, procurando educá-los cristãmente no verdadeiro amor a Nosso Senhor, a fim de fazer deles nossos verdadeiros amigos e nosso amparo na velhice”.

E adiante diz ainda: “O Amor Paterno constituirá, deste modo, a base, o fulcro, o fundamento da nossa vida cristã e certamente se transmudará na recompensa que Deus não deixa de conceder aos pais que, imitando-o no seu amor de Pai, seguem o exemplo de Cristo, num amor bem compreendido, num amor que frutifica e que consola, num amor que é a expressão legítima do coração bem formado, de todo aquele que vem ao mundo para ensinar os seus próprios filhos e fazê-los compreender o valor sem jaça do Amor Paterno, que se pode dizer, com orgulho e alegria, é a expressão máxima do nosso dever de pais e da nobre missão que Deus, aqui na terra, nos outorgou, fazendo-nos entender a importância das prerrogativas dos verdadeiros pais”.

Linhas atrás ficou dito que não seria possível destacar, para apreciá-las isoladamente, cada uma das facetas do espírito brilhante de Ernesto Tornaghi. E se tal assertiva agora repito, é porque não consigo falar-vos somente sobre o médico, como neste instante desejava.

Aqui, nesta Academia, ao recebê-lo Salomão Jorge, em 1925, já então assinalava a multiforme atividade de sua inteligência, médico estudioso, empolgado pela sua profissão, cronista sutil e delicado poeta; e profundamente modesto. Esta sua virtude, todavia, não inibia a sua capacidade criadora, o seu espírito de iniciativa. Assim está o seu nome entre os fundadores da Sociedade Médica de Petrópolis, da qual deixou escrito, com o humilde título de “esboço histórico”, uma verdadeira memória ao atingir a agremiação médica desta cidade o seu primeiro decênio de vida.

Presidente por 3 vezes daquela Sociedade, a segunda, pela ordem cronológica, a ser fundada no Estado do Rio, pois lhe antecedera a de Campos, com o nome de Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia, Tornaghi, por largos anos, quinze se não me engano, foi o seu secretário, espinhoso cargo a que se dedicava com afinco e denodado esmero, tornando-se a sua viga mestra, na verdadeira acepção do termo. Dela apenas se afastou quando a doença já o retinha em casa, tendo sido galardoado, em 1949, com o honroso título de decano de sua classe, para a qual sempre foi um verdadeiro benemérito.

A sua atividade científica, na Sociedade Médica, foi das mais intensas. “Constante de Ambard”, “Acidentes causados pela eletricidade industrial”, “Acerca dos hospitais de Recife”, “Um caso de ectasia sacciforme da aorta torácica”, “Estudo terapêutico dos núcleos da base”, “Análise da icterícia”, “A respeito da chamada gripe intestinal”, “Um caso de polisserosite”, “Um caso de sodoku”, etc., foram contribuições várias levadas àquela casa e muitas publicadas nos jornais
médicos do país.

Isto sem falar nos discursos diversos de saudação a novos sócios, recepções, agradecimentos, por isso que era frequente estar sendo homenageado pelos seus pares; e nos relatórios vários anuais que teve ocasião de apresentar ao término dos seus mandatos na Sociedade, onde a sua presença ainda se faz sentir, pela memória dos seus exemplos de trabalho e idealismo.

A monografia sobre Sodoku, apresenta à Sociedade em 1935 e publicada na revista “Medicina, Cirurgia e Farmácia”, reveste-se de real importância pela extrema raridade da entidade, tendo sido este o primeiro caso registrado no Estado do Rio. Tornaghi o estudou cuidadosamente e, obtida a cura do seu doente, deu a publicidade a sua contribuição científica, com a modéstia que lhe era inata, apresentando-a com a mais esmerada probidade e com boa e cuidadosa linguagem, a servir de paradigma aos que se dedicam à literatura médica em nossa terra. Não fora ele, porventura, um dos brilhantes discípulos de Miguel Couto, mestre que admirava profundamente e cujas lições recordava a cada passo e sobre qualquer pretexto!?…

O nosso eminente confrade, de quem estamos agora recordando o vulto com tanta saudade, tinha aliás, como patrono nesta Academia a Francisco de Castro, personalidade que constituiu o motivo central do seu discurso de posse nesta Casa, e que tive a ventura de ler. Dele, do Divino Mestre, disse Tornaghi nessa bela peça literária a que acabo de aludir: “A sua figura empolgante, realizando o tipo do homem sereno e superior, que sabia guardar em todas as contingências da vida a mesma linha impecável de nobreza, fascinava a todos que dele se aproximavam, atraídos pelo olhar, pela palavra erudita e pela gentileza do trato”. E aprecia Tornaghi como em Castro se aliavam o médico e o literato, de tal forma que, escrevendo medicina, fazia-o com tal apuro de linguagem e propriedade de estilo que assinala o nosso ilustre confrade – justificou a Cândido de Figueiredo a seguinte referência: “A perfeição é tal que, lendo-se o Tratado de Clínica Propedêutica, tem-se a impressão de que se está lendo Latino Coelho e Alexandre Herculano”.

Nesse discurso de posse, na análise do qual, ligeiramente embora, estou me detendo, vale assinalar o senso crítico de Tornaghi ocupando-se da questão do ensino médico, das falhas do curso secundário, da necessidade de um currículo de humanidades bem feito, para, com base de tal jaez, enfrentar possa o moço o curso superior e lançar-se na vida devidamente apto ao exercício de suas atividades. E encarece o alto interesse e mesmo a necessidade de cultura humanística aos médicos, que devem dedicar-se também ao culto pelo apuro da linguagem.

Neste tópico, desejo frisar quanto vem sendo tal apuro descurado. Na leitura de trabalhos médicos – e hoje, entre nós, eles são muito numerosos, estimulados, de um lado, pelas revistas especialistas que se multiplicam, por outro lado suscitados pela frequência maior dos congressos e encontros científicos; na leitura desses trabalhos, não é raro sejam eles desprovidos desse cuidado, revelando descaso dos autores pelos cânones da língua, tornando o seu estudo, por vezes interessante no conteúdo científico, fastidioso e até mesmo repelente pela forma.

Ainda recentemente tive sob as vistas uma publicação sobre esquistossomose, cuja leitura causou-me espanto pelo verdadeiro desprezo do autor às comezinhas questões de gramática e a qualquer laivo de amor à boa linguagem, levando-o a usar expressões de gíria, desmerecendo todas as suas páginas. É mister que o médico cuide das boas letras, para melhor exteriorizar o seu pensamento, divulgando, com maiores possibilidades de frutos, as conclusões de seus estudos, de suas pesquisas ou mesmo dos achados alheios, as contribuições dos outros ao tesouro científico comum da humanidade.

Já dizia Cícero que “o discurso compõe-se de pensamento e palavras; e assim como não pode haver lugar para as palavras se suprimirmos os pensamentos, assim nunca poderão brilhar os pensamentos se as palavras não lhes derem luz”. Que outra coisa é um trabalho médico senão um discurso escrito, quando não um verdadeiro discurso, uma comunicação oral dos seus estudos?

“A literatura” – escreveu meu muito querido e saudoso mestre, Padre Luís Gonzaga Cabral, insigne jesuíta que dividiu sua vida entre Portugal, sua Pátria idolatrada, e o Brasil, sua terra de eleição, vivendo na Bahia onde morreu e repousa para a eternidade – “a literatura é o complemento natural da ciência”. E não é preciso se perca o escritor – refiro-me ao escritor médico – a preencher as suas páginas com figuras de retórica, em busca de puro ornato para as suas palavras. Basta que ele se reduza à propriedade.

É ainda Gonzaga Cabral quem o diz: “propriedade nas palavras, propriedade nas frases, são o melhor e o mais aquilatado dessa formosa e boníssima coisa que se chama vernaculidade”.

Quanto ao mais… é o estilo.

A propósito, dou a palavra ao meu querido jesuíta e dele, aos que me dão a honra de ouvir, transmito esta bela página: “O célebre dito de Buffon le style c´est l´homme – já quase está gasto, tantos o têm repetido de viva voz e por escrito. Mas não sei se todos lhe penetram o profundíssimo sentido. Sem dúvida estas palavras podem perfeitamente significar que a feição particular dada por cada um a seu pensamento é um retrato fiel da própria individualidade; mas ainda dizem mais do que isso. Se atendermos não já ao estilo individual, senão à acepção mais universal desta palavra, também podemos dizer com toda a verdade: Le style c´est l´homme.

Com efeito, o estilo é o homem todo, porque exige do homem a aplicação de todas as faculdades sem exceção. A inteligência deve comunicar-lhe as suas qualidades soberanas: solidez e encadeamento; a imaginação deve dar-lhe o brilho, a vivacidade e a graça; a vontade deve inspirar-lhe o calor, a força e a dignidade; até o ouvido e a língua fazem valer seus direitos e têm, acerca do estilo, suas legítimas exigências”.

E o poeta, meus senhores e minhas senhoras? Que direi do poeta? Salomão Jorge, ao recebê-lo nesta Academia, analisou, em discurso, a produção poética de Ernesto Tornaghi e encontrou afinidade entre os seus sentimentos e os de Vicente de Carvalho, reproduzindo, para documentar seu parecer, as “Quadras Inéditas”, nas quais o nosso confrade aproveitou o tema do vate “olhos verdes, olhos cor do mar”.

“Olhos verdes, cismadores,
Que guardais a cor do mar,
Através de longas dores
Já cansados de chorar!…

Estas cismas e pesares
De tão grande padecer,
Não cabem mais nos olhares,
Chega de tanto sofrer.

Penas assim não merece
Quem na vida entrando agora,
Ergue ao céu ardente prece
E um alívio a Deus implora!

Olhos verdes, cismadores,
Não deveis assim chorar…
Já se foram vossas dores,
Podeis o pranto estancar.

Não quero ver estes olhos,
Chorando em triste agonia;
Da dor se vão os escolhos,
Ao raiar de cada dia.

Olhos verdes, cismadores,
Que guardais a cor do mar,
Afastai as vossas dores
Para nunca mais chorar…”

O soneto era, todavia, a forma de poesia que mais de perto tocava o espírito de Ernesto Tornaghi.

“Outono” (1932), “Resignação” (1934), “Mocidade”, “Prima inter pares”, “Recordando” (1944), “Ano Bom” (1945), “Em louvor”, são títulos de alguns dentre os que deu a lume na imprensa desta cidade e que ficaram esparsos, à espera de alguém que os haverá de compilar em volume de poesias.

Terminadas as minhas toscas palavras, ides ouvir, pela arte da Senhorita Marinha Marques, que tanto encanto tem derramado nesta cidade pelos seus recitais de declamadora insigne, alguns desses sonetos do nosso boníssimo Ernesto Tornaghi e podereis, desse feito, aquilatar melhor o seu estro poético.

Senhoras minhas e meus senhores: Ainda tenho gravada na memória aquela triste manhã de 22 de julho deste malfadado 1953, quando, ao iniciar minhas lides no Sanatório São José, desta Petrópolis a que ele tanto amou, me foi dada a notícia de que Tornaghi acabara de falecer. Ali estava ele, imóvel, naquele leito do quarto 17, com o semblante transparente e tranquilo de um santo, que repousava para a eternidade depois de ter feito na vida, pelos de sua família e pelo próximo, pois aos seus doentes e aos amigos ele se dedicava como se à própria família pertencessem, tanto bem, realizando aquilo que dos outros ele tantas vezes dissera, “transiit benefaciendo”.

Manhã triste aquela, que dava fecho a uma agonia de nada menos de cinco meses, pois tanto tempo ele estivera, naquela coma e naquele quarto, apenas vivendo, por isso que a doença já lhe transtornara toda a vida de relação. Imaginai, senhoras e senhores, a dor daquela que foi sua companheira fidelíssima de todos os tempos, Dona Antonieta da Fonseca Tornaghi, figura que eu via todos os dias nos corredores do Hospital, durante todos aqueles meses, com uma fisionomia sempre angustiosa e aflita, percebendo-o terminar aos pouquinhos, dia após dia, minuto após minuto, tanto tempo até aquele instante fatal!

Imaginai, senhores, e vede se podeis explicar como pode aquela mulher resistir tamanho sofrer! A fé, somente a fé, tal lhe permitiria.

Não vos vou dizer aqui a biografia do nosso pranteado confrade. Todos vós o conhecestes. A sua vida pública nesta cidade foi muito intensa, como fora no lapso de tempo em que esteve em Alberto Torres, Matias Barbosa e Areal. Repousando em Porto Novo do Cunha, conheceu aquela que seria a sua esposa, também filha de médico, o Dr. Henrique Duarte da Fonseca, residente em Angustura.

Pernambucano, pois que nascera em Recife no dia 17 de fevereiro de 1883, filho do engenheiro Pedro Tornaghi, italiano de Milão e Dona Julieta da Silva Tornaghi, natural de Pernambuco, o nosso saudoso companheiro, após o curso de humanidades, orientou-se para a Escola de Engenharia de Ouro Preto, abandonando-a logo depois do 1º ano, pois sua vocação o impelia para a medicina, matriculando-se na Faculdade do Rio de Janeiro. Cedo revelou a sua fibra, pois, pelo seu próprio trabalho, como revisor do Jornal do Comércio e, posteriormente, do Diário Oficial, após provas de concurso nas quais lograra ser classificado em primeiro lugar, custeou ele mesmo o seu curso médico, recebendo, ao findá-lo, uma homenagem dos seus colegas, que lhe ofertaram o anel simbólico da profissão.

Foi interno, e dos mais queridos, do Professor Miguel Couto, por cuja inspiração fez sua tese de doutoramento, intitulada “Exsudatose e Transudatos”, após pesquisas e estudos procedidos na cátedra daquele Mestre da Medicina Nacional e no Instituto de Manguinhos.

Quisera eu ter podido compulsar este seu trabalho inaugural, no qual ingressaria na literatura médica, como também não me foi possível conhecer outros escritos seus, científicos ou literários, como os discursos proferidos nesta Casa, ao receber os acadêmicos Mário Aloísio Cardoso de Miranda e Monsenhor Francisco Gentil da Costa.

A última vez que aqui compareceu, foi para receber a Plínio Olinto, que vinha empossar-se na cadeira patrocinada por Vicente de Carvalho. Ocupou Tornaghi esta tribuna já doente, tendo dificuldade de coordenar suas frases, num esforço supremo para homenagear ao amigo para o qual a Academia abria as suas portas, e também para não desobedecer à ordem que a presidência de então lhe tinha imposto. Esforço supremo que recordo, para senti-lo, mesmo agora, bem perto de mim, bem perto de todos nós.

Este é o homem a quem a Academia Petropolitana de Letras rende o preito de sua saudade, na homenagem que nesta noite lhe tributa, pela voz do menos categorizado dos seus pares.

Bem razão tinha eu, ao tomar para mim aquelas palavras de Santa Maria, de início citadas: “que dificultosa matéria se ofereceu ao meu discurso…”