IMIGRAÇÃO ÁRABE NO BRASIL – UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE – REFLEXOS EM PETRÓPOLIS

Vera Lúcia Salamoni Abad, Associada Titular, Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

 

A crônica da imigração árabe para o Brasil pode se valer de muitos pontos de vista. Estudos acadêmicos buscam determinar uma data para o início de um movimento imigratório, mas não chegam a uma conclusão. Estatísticas mostram em números quantos vieram, sem poder precisar suas origens pela diversidade de documentos de viagem. Recentemente, alguns importantes trabalhos foram elaborados a partir de informações colhidas em entrevistas com descendentes dos que aqui vieram ter. Enfim, são estes últimos os melhores contribuintes na obtenção de informações para a elaboração de uma narrativa consistente deste processo singular dentro de nossa história.

A história de Petrópolis também faz a sua parte e contribui com dados e fatos de alguma relevância, curiosidades talvez. Sem deixar de notar que foi seu criador, D. Pedro II, um fator importante no processo da imigração árabe para o Brasil.

1 – INÍCIO DA IMIGRAÇÃO.

Apoiada nos estudos de Knowlton (1960), Safady (1972) e outros, Maria Lúcia Mott, em seu capítulo sobre a imigração árabe no livro “Brasil 500 anos de povoamento”, registra datas para a presença de imigrantes árabes no Brasil como 1880 com a chegada de Yussef Moussa, ou dos irmãos Zacarias em 1874 ou até mesmo que a verdadeira origem de Antônio Elias Lobo, o português que doou a Quinta da Boa Vista a D. João VI fosse libanesa.

Sabemos que em Petrópolis, em 1860, já existia o Hotel Oriental de propriedade de Said Ali, de origem dita turca.

O fato é que presenças pontuais não caracterizam propriamente um movimento migratório e o modo como se deu a imigração, famílias trazendo seus membros aos poucos, um parente trazendo outros, amigos, vizinhos, sempre por conta própria em navios provenientes de Marselha ou Gênova, só permite o registro de um número significativo de pessoas a partir do final do século XIX e início do século XX. Muitos vieram antes da guerra de 1914 e mais outros logo depois, ao ser restabelecido o transporte marítimo normal até os anos 30 decrescendo em número nos primórdios da Segunda Guerra Mundial.

2 – ORIGEM

“O processo deu-se principalmente na área geográfica conhecida como Bilad al-Sham (Territórios de Damasco) ou Surya (Síria). O termo Síria era usado desde a Idade Média por geógrafos árabes para designar o território que hoje corresponde ao Sudoeste da Turquia, Síria, Líbano, Israel/Palestina e Jordânia.” (Rocha Pinto, 2010). Área que convencionou-se chamar o “Crescente Fértil” em contraste com os desertos da vizinha Arábia.

BILAD AL SHAM

BILAD AL SHAM

Tais subdivisões regionais tinham identidades próprias determinadas por fatores geográficos, culturais e religiosos. Mesmo assim, no Brasil, foram todos tratados indistintamente como árabes, por força do idioma que falavam e de turcos por serem provenientes do Império Otomano que no ocidente era conhecido como Império Turco.

É justamente sobre a identidade destes imigrantes que direcionamos nossa pesquisa. Dizer que são comerciantes porque descendem dos fenícios ou que são árabes por causa da língua que falam são simplificações que não cabem na definição desta gente. Trouxeram na bagagem uma história que não se conta em séculos, mas milênios.

Quem eram? De onde vieram? Quando? Como? Por quê? E ainda, como se estabeleceram e terminaram por se fixar no Brasil integralmente, a tal ponto que seus descendentes, brasileiros, se inserem na sociedade sem nenhum outro traço a não ser seus sobrenomes e a bagagem cultural assim herdada.

3 – HISTÓRIA ANTIGA

Para melhor compreensão da etnia tão diversificada que acabou reduzida à denominação de árabes, precisamos procurar na história os traços que deixaram marcas nos habitantes da área acima citada.

Os fenícios habitavam a costa da região que hoje integra o Líbano. Construções que atestam sua civilização estão ainda por toda parte como nas cidades portuárias de Tiro, Sidon e Biblos. Dominavam o comércio no Mediterrâneo, levando suas mercadorias em barcos de sua própria construção a portos por eles mesmos gerenciados. Eram, sobretudo, criativos e práticos. Inventaram a embarcação trirreme e nos legaram um conjunto de sinais que representam os sons da língua, em vez de ideogramas – o alfabeto. A língua dos fenícios era do ramo semita que deu origem ao hebraico e ao aramaico.

Sua civilização floresceu de 1000 A.C. até 300 A.C. quando foram conquistados, primeiro por persas e depois por gregos que os tornaram mais helenizados, seguidos dos armênios e por fim dos romanos que tomaram todos os seus portos em 65 A.C.. Gregos e romanos também deixaram suas marcas na região habitada pelos fenícios, como pontes e estradas e construções diversas incluindo templos, sendo o de Baalbek no Líbano atual até hoje referenciado como simplesmente monumental. Aquela região, principalmente a costa e as montanhas do Líbano e a Síria receberam invasões de conquistadores e migrantes de tribos das regiões limítrofes fugindo dos desertos  à procura de terras férteis. Assim, e mais ainda com a expansão do cristianismo e do islamismo a partir dos séculos seguintes à conquista romana, a população e sua etnia foram se modificando e diversificando de tal modo que é difícil dizer o que resta de fenício além da tradição e história. A religião e a língua foram os principais fatores que determinaram a diferenciação entre as etnias que ainda hoje habitam os países do Oriente Médio, por força de influências, compartilhamento e dominação.

4 – A RELIGIÃO

O Oriente Médio é berço das três principais religiões monoteístas ocidentais: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Os judeus viviam na Palestina e foi lá e em cidades do sul do Líbano que Cristo fez suas pregações.  Na época, falava-se na região o hebraico e o aramaico que, aliás, era a língua falada por Jesus.

A expansão do cristianismo através da pregação dos apóstolos se fez a partir de Jerusalém e logo, toda a região próxima, ao longo da costa e nas montanhas do Líbano, acolheu o novo credo. A pregação expandiu-se nos dois sentidos: pelo império romano na Europa e pelos povos dos desertos na Península Arábica, chegando à Pérsia e até a costa da Índia.

Nas montanhas do Líbano e na Síria existem ainda sinais muito antigos dos primórdios da cristianização: toscas igrejas construídas sobre templos pagãos, grutas que abrigaram cristãos fugitivos e monges eremitas. Estas, com seus afrescos milenares podem ainda ser visitadas por crentes e turistas, como Qannoubin em Kadicha ou a Gruta da Cruz em Hadshit.

Apesar das perseguições, em quatro séculos a igreja cristã estava firmemente estabelecida e consolidada no Oriente e no Ocidente. Encontrava-se organizada tendo cinco sedes ou patriarcados encarregados da criação de mosteiros e templos: a sede do Ocidente com o patriarcado em Roma e mais quatro patriarcados no Oriente com sede no Império Bizantino em Constantinopla: Alexandria, Jerusalém, Antióquia e Constantinopla. De início a sede era em Alexandria, mas com o fortalecimento do Império Bizantino, este tinha interesse político na primazia sobre os patriarcados orientais.

Os ritos foram se diversificando, assim como a língua utilizada para tanto – latim, aramaico, árabe…, porém a doutrina deveria ser uniformizada e aceita igualmente por todos os integrantes da Igreja. Reunidos em Concílios as discussões acabaram por resultar em dissidências e, se não houve rompimento total, estas produziram novos ramos do cristianismo com consequente animosidade entre si.

Do Concílio efetuado na Calcedônia (451 D.C.) sobre a natureza humana e divina de Cristo, surgiram as igrejas Não-Calcedonianas Ortodoxas do Oriente (monofisitas) –  a Assiríaca, a Copta, a Siríaca – e as igrejas Calcedonianas  –  a Maronita e séculos depois, como consequência do grande cisma em 1054, a igreja Greco-Ortodoxa ou Melquita – .

Tais ramos diferenciados da Igreja Cristã têm até os dias atuais importantes papéis não só de caráter religioso mas também político nas sociedades do Oriente Médio. Notadamente o papel destacado do ramo maronita no Líbano.

O termo maronita tem sua origem em importante personagem da evangelização das montanhas da Síria e do Líbano – o anacoreta São Maron. Referências a seu respeito datam de 405 A.D.. Eremita, teve muitos discípulos e sua reputação e santidade o tornou reverenciado por seus seguidores. Não só os monges seus seguidores eram chamados de maronitas, mas também os fiéis que compunham suas paróquias. Ao aceitarem as determinações do Concílio de Calcedônia, tornaram-se oponentes dos monofisitas apoiados pela corte imperial de Bizâncio. A perseguição e consequente massacre de 350 monges no ano 517 suscitou a reação do papa em Roma que manifestou-se em apoio à comunidade maronita, tornando-a mais próxima ao Ocidente.

Estes fatos e os que se seguem com referência à influência dos maronitas nas montanhas do Líbano e na Síria são importantes para a compreensão da ligação dos habitantes locais com o Ocidente há tantos séculos.

O Patriarcado de Antióquia é o mais antigo patriarcado, fundado pelo próprio apóstolo Pedro. Nos primeiros séculos, a maioria dos cristãos da região era de língua grega, mas os habitantes das montanhas convertidos pelos maronitas falavam aramaico. A língua determinava o rito e quando os arameus tornaram-se em maior número tiveram a possibilidade de eleger seu Patriarca, um patriarca maronita para a sede em Antióquia e, em 645, ante a relutância de Bizâncio em determinar um novo patriarca, elegeram um Patriarca próprio que escolheu Batroun no Líbano para ser sua sede. Tratava-se de um ato de rebeldia incutido de oposição ao governo bizantino. A perseguição armada e ostensiva de Bizâncio logo se fez e a resistência ocasionou a união de milícias árabes com os maronitas, derrotando as forças bizantinas e reforçando o relacionamento cristão com o então Califado, o Omíada. O Patriarca maronita tornava-se assim, além de autoridade religiosa, autoridade política fortalecendo a união dos habitantes do Líbano em torno de questões fora da religião. Sem dúvida, este pode ser considerado um marco histórico da situação política que se instalou desde então, com diferenciações sociais e administrativas baseadas nas organizações religiosas, não tanto nas diferenças de fé, mas nas diferenças de costumes, leis e práticas ditadas pela tradição cultural de cada religião. Tanto os entendimentos como os atritos entre cristãos e muçulmanos nas regiões da Síria, Monte Líbano e circunvizinhanças tinham e ainda têm a ver com a capacidade de organização e poder de domínio de grupos que se distinguem pela religião.

A expansão do cristianismo em nada mudou politicamente as regiões onde se estabeleceu. Bispados e patriarcados colocaram-se sob a égide dos poderes já constituídos, se bem que exercessem grande influência onde fosse possível. Já a expansão do islamismo, fundado por Maomé (571 – 632) na Arábia, foi um processo de unificação por dominação política e religiosa.

A Arábia era habitada por tribos beduínas cuja língua comum era o árabe. Maomé viveu em Meca e depois em Medina onde faleceu. Daí partiram seus seguidores impondo a submissão ao Deus único que, aliás, é o significado de Islã – entregar-se. Com isto asseguraram o que nenhuma outra religião havia conseguido até então, a união política e uma nova organização social. O processo expansionista da religião investiu-se de conquista territorial, em ritmo fulminante, a partir da península arábica tanto em direção ao Ocidente quanto ao Oriente. Em dez anos, todo o Oriente Médio, cuja maioria da população era cristã, foi conquistado. Foi estabelecido o regime dos califados, chefes de estado ao mesmo tempo políticos e guardiães da fé islâmica.

Árabes muçulmanos dominaram o norte da África e cruzaram Gibraltar, ocupando a península Ibérica. Somente Constantinopla resistiu. O Império Persa desaparecido, o Império Bizantino enfraquecido, o Islã se impôs em todos os demais espaços.

5 – A LÍNGUA ÁRABE – O ARABISMO

Durante todo o tempo de implantação do domínio muçulmano, os cristãos continuaram seus estudos científicos e teológicos. Usavam o grego como língua de estudo e o siríaco e aramaico na linguagem comum e no comércio.

Os árabes eram beduínos do deserto, acostumados a tendas e mobilidade constante. Agora precisavam viver e administrar cidades grandes, como Damasco, por exemplo. Valeram-se dos cristãos como auxiliares e intérpretes. Os califas árabes insistiram na difusão do idioma árabe não só por ser a língua do Corão e das orações diárias, mas também porque se fazia necessário transferir a administração e o comércio para os então dominadores. Obras úteis como matemática, medicina, engenharia e filosofia foram traduzidas do grego para o árabe quase sempre por tradutores cristãos.

Podemos dizer que a “arabização” das regiões da Síria e do Líbano durante o período dos califados deu-se pela difusão da língua e compartilhamento de conhecimentos mais do que pela conversão ao islamismo. Foram cristãos antes de serem árabes.

Foram quatro séculos de dominação abrangendo o califado Omíada até 750 e Abássida antes dos conflitos bélicos surgidos com a chegada das primeiras cruzadas em 1099.

6 – ASPECTO GEOGRÁFICO

O aspecto geográfico da região do Oriente Médio que compreende hoje a Síria e o Líbano impõe-se como fator importante na história dos povos que a habitam. Duas cadeias de montanhas – o Líbano e o Ante-Líbano, separadas por profundo vale escudando o acesso ao mar de planícies férteis e depois o deserto. O aspecto geológico das montanhas com altitudes acima de mil metros e cumes nevados apresenta grutas e cavernas, torrentes, nascentes, rios e cascatas, escarpas íngremes.

Grutas de difícil acesso que serviram de refúgio e moradia para os primeiros cristãos deram origem a pequenas povoações em seus arredores, em comunidades pastoris e agricultura familiar utilizando patamares cortados nas encostas.

“Depois dos Omíadas, os califados seguintes trouxeram séculos de constante perturbação: territórios eram ocupados, reocupados, divididos desmembrados, conforme o triunfo de um ou outro conquistador. Neste cenário, as montanhas tornaram-se refúgio e fortaleza. A região dos cedros e Bicharre constitui-se o núcleo e o centro de um pequeno povo feudal com pequenos grupamentos de camponeses em torno de senhores relativamente independentes, cada um em seu vale. Desta forma foram constituídas aldeias representando, geralmente o domínio de um mesmo proprietário rural. (…) estes organizavam milícias para proteção contra assaltantes.” (Harb. 1989 ; pag.74)

Estes rincões tornaram-se verdadeiro oásis para os fugitivos de perseguições e fanatismos, abrigando igualmente cristãos e muçulmanos como os drusos que eram mal vistos pelos outros grupos do Islã. Os drusos radicados nas montanhas concentraram-se de início na região sul, nas montanhas do Chuf e depois tornaram senhores de terra em toda a extensão das montanhas. Em ocasiões, fizeram coalisão com os cristãos maronitas, principalmente no enfrentamento dos Otomanos.  Os drusos por sua participação nas classes muçulmanas dominantes vieram a exercer papel importante no cenário das causas da emigração sírio-libanesa.

A união das comunidades cristãs se fazia no apego e confiança na pessoa do patriarca, como prova a carta datada de 1250, enviada pelo rei Louis IX de França em agradecimento pelo auxílio dado a seus cruzados. É endereçada a Semaan, príncipe dos milicianos cristãos Mardaítas [1] e igualmente ao Patriarca e bispos maronitas. Menciona a intervenção de 25 mil guerreiros que desceram a montanha para socorrer sua tropa e promete-lhes permanente ajuda e proteção do povo francês e de seus sucessores.

[1] Os Mardaítas eram habitantes maronitas de Ehden e de Jebbet – Becharre.

Este fato registra o reatamento dos maronitas com o ocidente depois de quatro séculos de afastamento e inaugura talvez um relacionamento com a França que varou séculos.

Outra data importante no relacionamento com o ocidente é a da criação da Escola Maronita de Roma em 1584. Os padres formados em Roma depois ocuparam cargos importantes nas principais capitais europeias.

7 – O IMPÉRIO OTOMANO

O Império Otomano que sucedeu o regime dos califados árabes não tinha mais a expansão do islamismo como objetivo principal, mas razões políticas e econômicas para estabelecer um império vasto e rico. A administração era dada a sheiks e emires muitas vezes escolhidos entre os muçulmanos locais, drusos mesmo, frequentemente por interesse na arrecadação de impostos. Havia tolerância de língua e outros credos e os judeus e cristãos podiam exercer seus cultos porque eram considerados “povos do livro”, isto é, tinham uma religião revelada. Estes viviam com o status de dhimmi protegidos. Além da liberdade de culto, tinham direito de serem julgados de acordo com sua tradição religiosa e recebiam proteção militar.

Mas havia restrições. Pagavam uma espécie de imposto, uma taxa, jizzya, da qual os muçulmanos eram isentos. Não podiam usar certas cores, nem turbantes. Não podiam usar cavalos tendo que se locomover a pé ou utilizando burros. O relacionamento com os países do ocidente se fazia apenas através das autoridades governamentais do império que se intitulava a Sublime Porta.

Enquanto os maronitas das montanhas do Líbano procuravam não perder contato com a cultura ocidental através de suas escolas e conventos, a sociedade europeia se nutria de narrativas fantasiosas para criar estereótipos e preconceitos. Histórias sobre Sheiks sanguinários, odaliscas sensuais, aventuras mágicas e riquezas incomensuráveis alimentaram de fantasias o imaginário das pessoas por longo tempo.

No século XVIII e XIX, as relações comerciais e militares entre o Império Otomano e o ocidente tornaram-se complicadas. Foram perdendo territórios e sendo obrigados a fazer concessões que acabavam por criar animosidades dentro de seus domínios. Síria, Líbano e Palestina foram divididos, retalhados ou aglutinados várias vezes.

Na década de 1820, Mahmud II empreendeu reformas administrativas para acalmar levantes e reclamações. Pensava em modernizar o Império com uma nova lei cujos itens principais foram:

1- Dissolução do velho exército e criação de um novo

2- Criação do serviço militar obrigatório

3- As leis deveriam ser derivadas dos princípios de justiça, não fazendo distinção entre otomanos muçulmanos, cristãos ou judeus.

4- Abolição dos direitos dos senhores feudais

As consequências das modificações de relacionamento entre os camponeses e os senhores feudais e donos das terras nos rincões das montanhas estabelecidos há tantos séculos, foram variadas e inesperadas.

Conflitos entre camponeses cristãos e proprietários fundiários drusos, seguidos de saques e massacres nas montanhas culminou, em 1860, com um levante em Damasco em que centenas de cristãos foram mortos, principalmente maronitas.

Chamados a intervir por autoridades cristãs, tropas francesas desembarcaram em Beirute  para forçar as autoridades otomanas a tomar providências pacificadoras. Para tanto, como consequência, foi criada uma nova autoridade político-administrativa para uma região específica, o “Monte Líbano”, Jabal Loubname a qual foi denominada Mutassarifiyya. Esta demarcava uma província autônoma ocupando as regiões montanhosas habitadas principalmente por cristãos, excluindo as cidades costeiras do Sul, o porto de Beirute e todo  o  vale do Beccaa. O administrador deveria ser um cristão não libanês, aprovado pelas potências europeias, secundado por um conselho com representantes dos diversos ramos das religiões predominantes na proporção de 7 cristãos para 5 muçulmanos [2]. Tinham por função recolher impostos e promover a manutenção da lei e da ordem para o que contavam com uma milícia local. Reportavam-se diretamente ao governo central otomano e não havia tropas turcas aquarteladas na região. Durante todo o período da Mutassarifiyya, que durou de 1861 a 1915, tentativas de implementar um governo leigo e independente imbuído de nacionalismo eclodiram em rebeliões pontuais demandando mudanças que apesar de apresentadas ao Conselho e planejadas não chegaram a se efetivar. Uma delas, a abertura do porto de Junieh ao comércio estrangeiro teria sido de grande valia para a economia da montanha, presa ao porto de Beirute o qual, excluído do governo do Monte Líbano, era o único escoadouro das mercadorias produzidas.

[2] De início o Conselho era composto de 2 membros para cada ramo religioso: maronita, druso, grego ortodoxo, grego católico, sunita e shiita. Em 1864, passaram a ser 7 cristãos e 5 muçulmanos indistintamente. (Firro, 1990)

Uma das consequências positivas de tal intervenção externa foi a possibilidade de entrada de capital europeu diretamente na região sem precisar passar pela corte Imperial, o que promoveu mudanças na economia e na dinâmica social dos povoados do Monte Líbano.

MUTASSARIFIYYA

MUTASSARIFIYYA

Diz-se que a instabilidade que se seguiu ao levante de 1860 pode ser apontada como causa da emigração do Oriente para a América, particularmente para o Brasil. Porém, trata-se de uma generalização que não abrange os que se aproveitaram do investimento francês na sericultura a partir daquela data. Aqueles primeiros emigrados foram os que sofreram mais de perto os atritos, perdendo bens e familiares e descrentes das modificações implementadas partiram para tentar novas oportunidades notadamente no Egito e Palestina.

A segunda metade do século XIX foi um período de relativa prosperidade para o Monte Líbano. O trabalho nas fábricas de seda que já substituía a agricultura rendia salários que eram gastos em bens de consumo. Os franceses investiram bastante na sericultura e na exploração da fiação. Depois, a tecelagem foi desenvolvida com sucesso. As manufaturas de Lyon e Marselha compravam quase toda a produção de fio de seda e os agricultores das montanhas passaram a plantar amoreiras nos patamares de todas as encostas. Durante certo tempo o investimento foi proveitoso conforme atestam os progressos nas habitações cobertas de telhas novas, o consumo de artigos importados como o arroz e o açúcar que, desde então, encontraram espaço na alimentação cotidiana dos camponeses. Por outro lado, a prosperidade não era para todos: a população nas montanhas cresceu em mais do dobro em função dos trabalhos nas fábricas de seda demandando maior quantidade e encarecendo  bens de consumo e alimentação; os preços da seda eram ditados pelos compradores em Lyon e Marselha, sendo que os atravessadores que faziam as exportações ficavam com a maior parcela do lucro; o contrato de arrendamento de terrenos para o cultivo de amoreiras, agricultura de ganho, era diferente do que se fazia até então para agricultura de subsistência [3] ocasionando por vezes perda de espaços do terreno para os investidores. Além disso, as hipotecas sobre os terrenos alocados para plantio de amoreiras continham juros altíssimos de até 40% endividando os agricultores em anos de produção reduzida. (TRABOULSI, 2012). Mesmo assim, em 1873, a seda constituía 82,5% das exportações que passavam pelo porto de Beirute. (FIRRO, 1990)

[3] Mugharasa, co-plantação: o agricultor preparava os terraços e plantava amoreiras em certo pedaço de terra. Seria preciso cuidar por 8 anos, até que estivessem suficientemente maduras. Enquanto isso, o agricultor poderia usar a terra ao redor para seu cultivo de subsistência desde que não prejudicasse as amoreiras. O dono da terra proveria todo o necessário para o cultivo. Ao fim, quando as amoreiras estivessem maduras, o agricultor ficaria com 1/3 da terra e o dono com 3/4 . (Firro, 1990)

Para os habitantes locais, a intervenção francesa na proteção dos cristãos do Monte Líbano tinha visíveis intensões colonialistas, como a insistência do uso da língua francesa em todo lugar, a implementação de firmas francesas e a obrigatoriedade de importação de bens de consumo, até mesmo de embalagens, vindas da França. Os franceses agradavam os cristãos em detrimento dos muçulmanos e dizia-se que os ingleses agradavam estes últimos também com vistas a estabelecerem protetorados na região. No relato dos imigrantes, os franceses foram vistos menos como amigos e mais como dominadores que os próprios turcos. Deste modo, quando a exportação encontrou concorrência com a facilidade de compra da seda vinda da China e do Japão, as outras opções de investimento nas montanhas estavam muito prejudicadas. Muitos estavam endividados, as famílias haviam perdido espaços preciosos para plantio de alimentos e as perspectivas de trabalho nas fábricas de seda locais desapareciam com o crescente fechamento da indústria. Diga-se que estas condições se referiam mais aos cristãos maronitas, visto que os drusos não quiseram tomar parte naquele tipo de trabalho nas fábricas atendo-se ao uso do solo para cultivo. Considerando-se que igrejas e mosteiros cristãos detinham quase 1/3 das áreas de cultivo, pode-se imaginar o atrito.

Portanto, com o declínio da exportação da seda e as dificuldades econômicas consequentes, a procura de outras oportunidades de trabalho e renda constituiu uma segura razão para emigração. Havia, com frequência, o intuito de fazer renda fora do país para enviar para a família que lá ficava e que poderia ter deste modo melhor condição de vida. A ideia era economizar e voltar depois. Os rendimentos enviados pelos emigrados aos seus familiares chegaram a cobrir 45% da receita total da região. Mesmo assim não era o suficiente para abater o déficit comercial. Os poucos que voltavam com um certo capital não encontravam nem terras para comprar nem no que investir, preferindo novamente emigrar e levar a família desta vez. Outra razão para emigração data da imposição das novas leis da Mutassarifiyya que ao isentar os cristãos do pagamento da taxa de proteção os colocava em igualdade aos muçulmanos no que se referia ao alistamento obrigatório para servir no exército otomano. As famílias se ressentiam de ver seus jovens de 14 ou 15 anos serem arregimentados para lutas que não lhes diziam respeito. Alguns destes jovens foram enviados para fora do país antes da convocação, geralmente para buscar trabalho junto a algum parente já estabelecido na América.

Aos problemas econômicos somaram-se as questões sociais, visto que todas aquelas inovações na produção agrícola e industrial produziram mudanças nas estruturas sociais das aldeias e do sistema patriarcal das famílias. Uma delas refere-se às mulheres que antes acostumadas a apenas cuidar dos trabalhos domésticos ou a trabalhar no campo apenas sempre junto ao marido ou pai eram agora as principais trabalhadoras nas indústrias de fiação e tecelagem. Elas traziam polpudas contribuições para o orçamento familiar [4], mas eram mal vistas e sofriam o preconceito das famílias de mais alto status na sociedade. Também muitas mulheres, na ausência dos maridos emigrados, tornaram-se chefes de família, o que para os não cristãos era inaceitável. Uma nova classe social surgiu entre os que já não eram apenas agricultores, mas obtinham rendimentos com as fábricas e exploração da seda ou voltavam do exterior para assumir a família ou para um casamento arranjado. Tinham bens e hábitos mais burgueses, mas não pertenciam às famílias tradicionais que habitualmente faziam parte da administração.  Quando o trabalho começou a faltar, o preconceito fechou as oportunidades das mulheres, e a falta de novos investimentos cortou as ambições da nova classe média.

[4] Em 1885 havia 105 fiações em funcionamento empregando 14500 trabalhadores dos quais 12000 eram mulheres, na maioria cristãs. O salário chegava a 275 piastras, cerca de um terço do orçamento da família. (Firro 1990)

A grande onda de imigrantes formou-se então, saindo dos territórios ocupados pela Síria, Monte Líbano e litoral libanês, e Palestina dirigindo-se a partir de 1870 para os Estados Unido e de 1880 para o Brasil e Argentina.

As escolas de cunho religioso implantadas na Síria e no Líbano por irmandades cristãs de origens variadas há muitos anos tinham mantido o contato e fornecido conhecimentos sobre o ocidente. Havia internatos para meninos e meninas de congregações católicas francesas e de missionários protestantes americanos. Os estudantes aprendiam várias línguas além do idioma local. As escolas americanas tiveram grande influência na escolha dos Estados Unidos e outros países de língua inglesa para a emigração com o atrativo também de realização intelectual para os que desejavam seguir uma escola superior.

E por que escolheram o Brasil?

8 – D. PEDRO II, O ARABISTA

  1. D. Pedro era interessadíssimo pelo idioma e pela cultura oriental. Procurou estudar o árabe além do hebraico e o aramaico. Queria aumentar seu conhecimento sobre os povos e costumes para poder conduzir seus propósitos de expansão comercial com o Império Otomano. Nas duas viagens ao Oriente Médio e África do Norte, 1871 e 1876, e principalmente na segunda quando visitou o Líbano, a Síria e a Palestina, enquanto saciava sua curiosidade procurando professores e cientistas locais, visitava escolas e mercados e a todos encantava com sua simplicidade e cultura. Os jornais importantes da região registraram a visita de modo elogioso e fizeram até um texto divulgando o Brasil como um país moderno, aberto a novos empreendimentos.

No jornal Thamarat al-Funum edição de 18 e 30 de novembro de 1876:

Brasil

Um reino que ocupa a maior parte da América do Sul, com uma superfície de 2,7 milhões de quilômetros quadrados, com uma população de 6,5 milhões de habitantes; atravessado pelo rio Amazonas de oeste a leste, com grande parte dentro da floresta com árvores e animais selvagens, rico em metais, como ouro e prata, além de haver diamantes em alguns rios. Seus habitantes não se interessam muito pela agricultura e o comércio do reino está nas mãos dos estrangeiros.”

Segue-se na referida publicação uma relação das principais cidades e sua população, incluindo em separado o número de escravos. (Katlab.2015 Pags.359/60)

O Imperador visitou a rota da seda passando por Zouk Mikhael e o porto de Jounieh. Admirou-se das encostas cortadas em patamares e totalmente cobertas de plantações de amoreiras. Em suas anotações queixou-se de que imaginou implantar a sericultura em Petrópolis, mas não tinha encontrado quem acolhesse sua ideia. Em trechos de seu diário comenta: “Recomendei ao superintendente Marques Lisboa que estudasse a questão de introdução da cultura da amoreira e a criação do bicho da seda em Petrópolis. (12-1-1862)” (Khatlab. 2015 pag142)

Antes de suas viagens ao oriente, preocupado com as exportações dos produtos brasileiros que sofriam com atravessadores junto aos países orientais, D. Pedro havia assinado o Tratado de Amizade Comércio e Navegação em 5 de fevereiro de 1858 entre o Brasil e o Império Otomano, ratificado em maio pelo sultão Medjid em Constantinopla o qual determinava: “Os súditos dos dois impérios poderão comercializar livremente em todas as cidades, portos e lugares abertos ao comércio estrangeiro”.

Em 1887, o Império Otomano abriu um consulado honorário no Rio de Janeiro.

Assim, fosse pelo empenho pessoal do imperador em apresentar o Brasil como país de portas abertas, fosse pela oportunidade concreta de se fazer negócios sem muitos embargos logo ao aportar no país, o destino a portos brasileiros tornou-se uma grata opção aos que desejavam emigrar.

9 – “QUANDO” “QUEM” “COMO” “PORQUE”

Em resumo, podemos dizer que imigrantes de origem árabe chegaram ao Brasil a partir da segunda metade do século XIX, sendo mais intensificada a imigração no final do século e primeiros anos do século XX. Alguns vieram logo após os conflitos gerados pela Mutassarifiyya. Muitos vieram quando do declínio da sericultura perto do final do século e a maioria pouco antes e logo após a primeira guerra mundial, abrangendo as décadas de vinte até os anos quarenta. No período que antecedeu ao conflito e durante a guerra, as plantações de amoreiras foram devastadas e as de alimentos confiscadas. A fome grassou nas montanhas matando muita gente. E esta foi a única ocasião na qual se pode dizer que emigraram por penúria.

Nos relatos colhidos de seus descendentes, sabemos que a decisão de partir era tomada pelo chefe da família e acatada por consenso familiar, sendo que poucos imaginavam uma emigração definitiva. De um modo geral, pensavam em passar alguns anos fora, enviando dinheiro para os familiares que ficavam os quais aproveitariam para fazer um capital para melhoria de vida; depois, era voltar para usufruir a nova situação. Para muitos, as contingências políticas que se seguiram não permitiram que tal fato acontecesse, de modo que apenas os que já partiram mais abastados, com negócios já concretizados também na Europa puderam voltar a Beirute. Pouco a pouco, as famílias foram se mudando para o Brasil: o chefe da família mandava vir a esposa e os filhos, junto vinha um tio, um primo, e mais outro e mais um parente e o encadeamento de tantos causava espécie aos brasileiros. Para estes, os imigrantes eram todos turcos e primos e primas.

O grau de instrução e as características sócio-econômicas dos imigrantes variavam bastante: os homens, de modo geral eram alfabetizados ou tinham frequentado escolas estrangeiras de modo que alguns eram cultos, falavam outras línguas e até se empregaram no Brasil como professores. Alguns eram de origem humilde de camponeses, outros já eram comerciantes de melhor status social. Houve os que trouxessem parcas libras esterlinas para sobrevivência inicial e os que tinham um capital necessário para iniciar um negócio. Entre as mulheres, e algumas vieram sozinhas para um casamento arranjado ou para trabalhar com a família, muitas eram analfabetas, mas algumas haviam frequentado as escolas cristãs para moças.

Também a aparência física dos que chegavam não condizia com os estereótipos de árabes de tez morena, cabelos negros e grandes olhos castanhos. Falavam árabe pelas razões já expostas, porém não eram descendes todos dos beduínos árabes do deserto. Havia igualmente louros e ruivos de pele clara, olhos claros, caucasianos, provavelmente descendentes dos cristãos evadidos das regiões da Geórgia e Armênia que, fugindo das perseguições muçulmanas, há séculos haviam se instalado nas montanhas libanesas.

Na sua grande maioria, os provenientes do Líbano eram cristãos maronitas, mas havia também coptas, ortodoxos e melquitas. Não encontrando igrejas de seus ritos nas diversas regiões onde se instalaram, atendiam aos serviços nas paróquias católicas locais. Muçulmanos vieram poucos, alguns do Egito e da Síria; muitos só vieram depois da queda do Império Otomano ou muito posteriormente.

Como não aconteceu uma arregimentação de imigrantes por agente oficial algum, compravam suas passagens com os próprios recursos, até recorrendo a empréstimos ou coletas familiares.

Uma passagem de terceira classe nos vapores que partiam de Beirute, Gênova ou Marselha podia custar em torno de 9 a 10 Libras Esterlinas. Portavam consigo alimentos para a viagem, pouca bagagem e muita determinação. A travessia levava de 30 a 40 dias. Às vezes, a decisão pela América do Norte ou do Sul dependia de quantos dias teriam que aguardar no porto porque este sim era um custo difícil de prever e calcular. Sabiam bem para onde queriam ir, apenas as circunstâncias os impeliam a tomar outro rumo por conveniência. Conheciam o Brasil e os Estados Unidos por influência da educação recebida nas escolas missionárias e pelas narrativas dos anteriormente emigrados. O que não podiam calcular era a grande extensão de tais países e os que ficavam nos lugares de origem diziam que “fulano está perto de sicrano. Estão na América” ou, “estão no Brasil, vão se encontrar…” mesmo que um estivesse em Manaus e o outro no interior de Minas Gerais.

Desembarcando no Brasil, a primeira dificuldade era determinar um sobrenome grafado em português. Os que portavam documentos fornecidos pela autoridade francesa traziam nomes grafados em francês como Marie ou Couri. Do árabe, sons difíceis de serem compreendidos e consequentemente representado com as letras do alfabeto ocidental criaram novos nomes e sobrenomes para os recém chegados. Às vezes era mais fácil simplesmente traduzir, como por exemplo, um sobrenome Dib que significa Lobo e adotar tal palavra existente na língua portuguesa. O sobrenome Curi foi grafado de inúmeras formas  ̶  Cury, Khoury, Koury, Couri  ̶  etc. e muitas vezes nem era sobrenome, mas apenas a indicação de que era uma referência ao cura, padre, que o ajudara ou enviara para o Brasil. Fued, Fouad, Fuad podia se tornar Alfredo em alguns casos. O W e o H aspirado às vezes tornava-se um problema e Hawila foi grafado Aouila e Hassim tornou-se Alcino.

Quanto à nacionalidade de origem, eram quase todos sírios, pois o Líbano como país não existia e mesmo depois da queda do Império Otomano permaneceu como protetorado francês até sua independência em 1943. Eram, portanto, até 1915, membros do Império Otomano. Por esta razão, foram todos imediatamente tratados como turcos embora nenhum deles fosse nascido na Turquia.

Ou não se importavam, ou não se davam ao trabalho de explicar e assim, mesmo tomando “turco” como um epíteto pejorativo acabavam por desarmar o preconceito conquistando a simpatia da freguesia e até adotando o termo como sobrenome como aconteceu com os irmãos Seman de Bom Despacho, MG,  que se tornaram Antonio Turco e Chico Turco.

Procuravam parentes já instalados no Brasil ou outros membros do que eles chamavam “a colônia”, isto é, a comunidade informal dos emigrados das diversas regiões da Síria e do Monte Líbano. E assim foram se fixando nos arredores de São Paulo, em certos bairros do Rio de Janeiro e se dispersando pelo país, sempre se ocupando de negócios de comércio. Adquiriam as mercadorias nos atacadistas também imigrantes estabelecidos nas grandes cidades e iam mascateando pelo Brasil afora criando novos núcleos de comércio, abrindo loja em quase todas as cidades do interior do país, notadamente, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Dizia-se que em cada praça mineira havia uma igreja, um prédio do poder público e a loja do turco.

De colônia informal onde os patrícios se ajudavam uns aos outros para associações formais como agremiações recreativas, religiosas e culturais foi um passo natural. Afirmavam sua real identidade como, por exemplo, na Sociedade União Síria (1897), ou na Sociedade Cedro do Líbano (1914).

A primeira e a segunda geração de imigrantes ocuparam-se principalmente de atividades comerciais e industriais. O pequeno capital que trouxeram unido à sua tenacidade e capacidade empreendedora resultou em grandes fortunas em diversas áreas: têxteis, confecção, materiais de construção foram os principais ramos explorados. Ainda contam entre eles a anedota das nacionalidades: chegando aqui, pobres e ávidos de trabalho, aceitavam serem chamados de turcos. Melhorando de vida, abrindo um negócio, consideravam-se sírios. Bem sucedidos, ricos industriais, enfim afirmavam ser libaneses.

Da segunda e terceira geração em diante, com a estabilidade financeira, a prole pode usufruir das vantagens do ensino superior e se destacar em todas as áreas além dos negócios de comércio e indústria. Na medicina, no direito, engenharia, letras, pedagogia, ciências e sociologia, na política, diplomacia, enfim, em qualquer área de participação social encontramos alguém com um sobrenome herdado de algum imigrante árabe que aqui aportou um dia em busca de melhores oportunidades de vida.

10 – EM PETRÓPOLIS

A relação dos imigrantes árabes em Petrópolis é extensa, a partir do primeiro aqui estabelecido, provavelmente em 1860, até alguns que vieram para esta cidade após os recentes conflitos no Líbano em guerra civil nos anos setenta.

Said Ali estabeleceu-se em Petrópolis com seu Hotel Oriental – o favorito dos casais em lua de mel, casou-se com uma descendente de imigrantes germânicos, Catarina Schiffler de cuja união nasceu Manuel Said Ali Ida o qual veio a se tornar um dos mais reconhecidos filólogos da língua portuguesa. Sua residência na Estrada da Saudade abriga hoje uma instituição islâmica o que nos faz crer que fossem eles muçulmanos. Do Hotel restou uma foto e a localização na rua 7 de abril no acervo do Museu Imperial.

Outro descendente de imigrantes árabes em Petrópolis reconhecido internacionalmente é o Prêmio Nobel Peter Brian Medawar que tendo nascido aqui em 1915, fez seus estudos e radicalizou-se na Inglaterra.

A maioria destes imigrantes é de origem síria e libanesa. Procedentes de Antióquia e Homs na Siria e de Becharre, Zahle, Mazrat – Yachou e outros vilarejos nas montanhas do Líbano, vieram para Petrópolis depois de já estabelecidos no país por alguns anos. Chegaram em maior número em torno dos anos 40. Quase todos dedicados ao comércio, pode-se dizer que foram suas lojas que deram um verdadeiro impulso na independência da cidade em relação ao mercado do Rio de Janeiro. Pontos conhecidos, tornaram-se referências em muitas áreas: flores, materiais de construção, ferragens, alimentos, tecidos, roupas, brinquedos e utilidades domésticas, confecções e aviamentos.

A “Flora Oriental”, “A Matriz”, “Casa Curi”, “Feira Livre”, “Parque Real”, “Belbom”, “Casa Galo”, “A Sentinela”, “Lojas Eduardo”, “Casa Oriental”, “Casa Clara”, “Casanova”, “Casa Xavier”, “Constrular”, “Casa Três Irmãos” são algumas das lojas de comércio petropolitanas que merecem figurar na história.

As famílias Lobo (Dib), Abi Daud, Cury, Haddad, Salim, Nassif, Curi ou Couri, Fiani,  Bailune, Abichedid, Bedran,  Daher, Khalil, Khair, Waruwar, Nassar, Lattuf, Mcauchar, Charif, Murad, Pachá, Iabrudi, Chehab, Chimelli, Simão, Salomão, Salamoni, Mussi, Zarzur têm seus nomes inscritos nas atividades comerciais e industriais da cidade e seus descendentes continuam a figurar com destaque em variadas atividades na sociedade petropolitana.

É interessante notar que três destes imigrantes dedicaram-se à indústria têxtil contribuindo para o grande boom industrial dos anos 50: Irmãos Khair, Michel Salamoni (e seus irmãos Emile e José) e Khalil Zarzur. Os dois primeiros produziram, inicialmente, tecidos de seda, como havia sonhado o imperador quando visitou Zouk Mikael na rota da seda no Líbano. E o curioso é que Michel Salamoni, depois de estar estabelecido na Bahia por mais de vinte anos veio montar sua indústria de tecidos de seda em Petrópolis. Ele nasceu na aldeia de Zouk Mikael em 1898.

11 – CONCLUSÃO

Eis a história. Sem necessidade de citar o relato de cada “brimo” e “batrício” sabemos agora que o denominador comum da emigração foi a busca de melhores condições de vida e de futuro para os filhos. Deixando para trás as dificuldades financeiras, a opressão política e religiosa, empreenderam viagem, carregando na mala um parco capital, sua fé e sua tradição cultural. A ninguém faltou coragem, ousadia e determinação. A disposição para o trabalho duro gerou os frutos de uma colônia de imigrantes dispersa e inteiramente integrada na sociedade brasileira. Tal contribuição é visível e compreensível, vai muito além dos pratos típicos que hoje fazem parte de nossa gastronomia. O que fizeram e produziram acabou ficando aqui mesmo, como os filhos que aqui nasceram: um acréscimo na cultura e na grandeza do país que os acolheu.

Juntamente com todos os outros imigrantes que vieram para o Brasil em busca de oportunidades, fazem eles parte desta enorme e variada colcha de retalhos que representa a maravilhosa diversidade do povo brasileiro.

LÍBANO MODERNO

LÍBANO MODERNO

BIBLIOGRAFIA / REFERÊNCIAS

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Maria Cury. Entrevista 2018, relatos sobre a família Cury e Fiani . Petrópolis, Rio de Janeiro.

Cyntia Fiani Cury. Entrevista 2018, relatos sobre a família Fiani.