IMPRESSÕES DO PRETO GETÚLIO

Antonio Machado

Figura evocativa de um passado que vem de muito longe, tem sempre uma passagem interessante a referir o velho Getúlio Gonçalves, cujo tipo vetusto, inconfundível, resistindo ao tempo, isolado no mundo, faz lembrar um pouco o velho buriti solitário, perdido na campina, último sobrevivente da floresta.

Abordamo-lo uma vez, há tempos, em sua casa de negócio, – especialidade em caldo de cana, quitanda e cestos de taquara, – quando ele acabava pacientemente de trançar as varetas de bambu dando por concluído mais um samburá.

Avivando-lhe a memória, provocando recordações, fomos recolhendo pouco a pouco casos velhos da sua longa existência.

– Então, tio Getúlio, é certo que conheceu o padre Luís Corrêa, da Samambaia, o primeiro vigário de Petrópolis?

– Não cheguei a conhecê-lo, que ele morreu no ano em que eu nasci; mas fui criado na Samambaia e só ouvia falar dele com louvores. Não era um padre santo, isso não; mas foi um santo homem, um verdadeiro padre pela bondade do coração. Conheci seus irmãos Tomaz Goulão, da Engenhoca, e D. Brígida, da Arca. Esses, é verdade que os conheci já velhos, mas conheci-os bem. D. Brígida comportava em seu todo pequenino uma alma grande e dera sempre provas de muita valia. Seu marido tinha sido fidalgo da côrte de D. Pedro I; era ele quem, nos dias de grande gala, ia a cavalo guardando o lado direito do coche do imperador.

Encarregado de limpar estas serras de uma horda de ladrões audazes, que eram então o flagelo das fazendas e das estradas, morreu baleado num tiroteio.

D. Brígida montava a cavalo feito homem e andava sempre armada de chicote; ai daquele que lhe faltasse com o respeito devido.

Lembro-me bem que, quando ela morreu, vieram de carruagem uns parentes de Petrópolis, que pararam aqui nos Corrêas, e o Padre Siqueira lhes forneceu cavalos para continuarem a viagem, porque os caminhos para a Arca eram maus e só a cavalo se podia chegar à casa da família.

(…) Se conheci o general Barbosinha! Pois se ele era meu padrinho! Morava ali pra baixo num sítio onde muitos anos antes vivera um carpinteiro velho que era conhecido por Pai Amaro e que legou o nome ao lugar. Há também quem trate esse ponto de Praia-mar, por causa de uma volta que o rio faz ali.

Quando a Grão-Pará atravessou os Corrêas para ir até São José, andou por aqui uma febre de reformar o nome dos velhos lugares; quiseram também mudar aquele, mas afinal continuou vingando o nome sempre usado, com muita alegria para o general, inimigo de inovações. Era um velhote bem disposto, brincalhão, que dava confiança a todos, não diferençando os humildes dos graúdos.

Como não tinha o que fazer, chegava à perfeição de recortar palavras dos jornais e formava depois notícias engraçadas. Uma vez ele deu-me um jornal em que se lia direitinho, como se tivesse sido escrito mesmo pela folha: “Levou uma coça o sr. Getúlio por ser um moleque muito sem vergonha”.

Minha madrinha foi d. Deolinda, mais tarde esposa do coronel José Cândido. Foi ela que me fez empregar de copeiro no Colégio do Padre Siqueira, aqui nos Corrêas.

Trabalhei para o Padre Siqueira e para o dr. Queiroz Carreira ali na casa velha da fazenda, onde dei, às escondidas, muito pão com manteiga a meninos que depois fui conhecer homens importantes.

(…) Sempre que atravesso a ponte de ferro do Piabanha lembro-me de um desastre daquele tempo e que teve um fim que ainda hoje me impressiona.

(…) Se conheci o Imperador? Mas muito… Pois se eu trabalhei anos a fio como empregado do major José Inocêncio e era o carroceiro que todos os dias levava as mercadorias ao palácio… Conheci muito esses príncipes. Também via o Imperador às vezes nos espetáculos. Havia sempre cavalinhos na cidade; ora ficavam na Bacia, ora onde hoje está o mercado e até onde está a Estação… Circos bons de fato, como o dos Irmãos Pereira, o do Perí e outros. Hoje o divertimento não vale nada, mas naquele tempo era importante, distinto, e todas as famílias assistiam. O Conde d’Eu costumava muito ir e o Imperador também. Ainda me lembro que uma vez havia uma prova muito arriscada. Exibia-se a “Rainha dos Ares” e o programa dizia assim em letras grandes: “maravilha das maravilhas”. Uma artista, nova e bonita, atirava-se de um trapézio lá do alto e vinha por ali abaixo que parecia um foguete. Uma outra ficava de cabeça para baixo, com o corpo balançando no espaço, os pés presos em argolas e os braços estendidos; e deveria segurar a companheira na queda, pelos calcanhares. No picadeiro estava a rede esticada, nas mãos dos casacas-de-ferro. O Imperador lá estava no seu camarote de luxo, apreciando.

A charanga parou, só se ouvia um silêncio na platéia.

Pois o trabalho falhou, a tal das argolas não agüentou a outra, que foi cair na rede, amassou o nariz e ficou toda ensangüentada. O Imperador ficou muito impressionado e foi logo saindo. Mas o espetáculo continuou; os ferimentos não foram grandes e no final a moça ainda figurou na pantomima. Parece que estou vendo isso tudo como se fosse hoje. Bons tempos que não voltaram! A vida é assim mesmo, tudo tem seu tempo e a gente deve ir sempre se acostumando. Mas como ia dizendo, eu era já então rapaz de uns trinta anos e ia todos os dias ao palácio.

Não se ia pelo caminho velho, a antiga estrada de tropas, porque estava em mau estado. Da Samambaia atravessava-se para a União e Indústria, passando-se sobre o Piabanha por uma ponte de madeira que foi carregada por uma enchente fortíssima, como nunca vi tão grande, a primeiro de Janeiro de 1895. A chegada da carroça era sempre novidade para a criançada do palácio, que a rodeava. Falei muitas vezes com os filhos da Princesa, D. Luís e D. Pedro, que me encomendavam gaiolas e passarinhos. Depois, a vida fez seu giro, eles viveram no estrangeiro e eu tenho sido de um tudo por aqui. Trabalhei uma porção de anos com o major José Cândido Monteiro de Barros.

Tive uma família numerosa. Girei com olarias por minha conta, fui capineiro, carapina e lavrador. Cidadão eleitor também. E cabo eleitoral. Gozei da confiança política de José Cândido. Trabalhava para o partido conservador, mas a certa altura virei para o partido liberal. Foi uma tentação dos demônios: nada aproveitei e perdi a amizade do major.

Bom coração o dele, incapaz de fazer mal a uma mosca. Fez falta à pobreza aquele homem! Tenho pelejado na vida, ora aqui, ora ali, mas sempre apegado a estas redondezas.

Da política conservo recordações amargas…

Já não posso trabalhar ao tempo, na roça; o reumatismo assalta-me logo sem piedade. Vou tenteando a vida, trabalhando no verão com a moenda de cana, fabricando cestos no inverno.

Passados tantos anos, o príncipe D. Pedro veio residir em Petrópolis. E certo dia, mandei-lhe uma carta, paramentei-me todo e animei-me a ir visitá-lo. Pois ele me recebeu muito bem. Recordou-se bem do antigo carroceiro da Samambaia, disse que apreciava muito a visita, fez-me muitas perguntas, lembrando coisas do tempo em que ele era garoto. Convidou-me a que voltasse. Mas não tive coragem. Lá a gente da casa, que não me conhecia, era capaz de pensar que eu ia pedir dinheiro. E eu fora visitá-lo apenas para ver se ele ainda se lembrava do rapaz que lhe levava coisas quando ele andava de calças curtas… Pois tratou-me muito bem, mandou-me sentar, apertou-me a mão duas vezes, – repetia o velho Getúlio, enquanto se levantava do tamborete e começava a limpeza da sua moenda veterana, retirando calmamente, pensativo, o bagaço de cana que ficara metido e preso na engrenagem.

NOTA: Texto resumido.

Raul Lopes