A INTELIGÊNCIA E A POLÍTICA PETROPOLITANA
Julio Ambrozio, ex-Associado Titular, Cadeira n.º 30, Patrono – Monsenhor Francisco de Castro Abreu Bacelar
Eu gostaria de iniciar estas linhas recordando um pequeno passo de Darcy Ribeiro – Sabedoria Kaapor -, Diários Índios, Cia. das Letras, SP, 1995, no qual ele anotava que o intelectual seria aquele que mais compreenderia e melhor expressaria o saber de seu povo; saberes abundantes como os dos índios em seu território, ou nem tanto como os dos sertanejos, mas saberes da natureza e do homem. Acoplada a essa passagem, embora Darcy não faça comentário, estaria a forma imanente a essa definição: o ensaio, circulador de diversos ou copiosos saberes, descerrando portas que a monografia não conseguiria abrir; cruzamento entre a escrita científica e a ficcional, pois admitindo o plano de composição como realizador de sabedoria.
Demarcado provisoriamente o intelectual, é evidente, não se trata aqui do homem que sabia javanês, pois muitas vezes recolhido às gavetas de armários governamentais, ou mesmo ocupando cargos de relevo, sem terno, vive tão somente para o alpinismo social. Já conceituado pelo ilustre escritor carioca, Afonso Henriques de Lima Barreto, esse pouco respeitável personagem, falador de língua estranha, notabilizar-se-ia devido à baixa auto-estima da província. Menos caricato do que o “javanês”, e, por isso, talvez mais perigoso, não se trata também daquele conversador de diversas línguas, mas que não fala a sua. Dedicado à metrópole, vivendo, tal como o “homem de Java”, para o montanhismo social, sua cobiça – como mazombo – seria a morada permanente ou, paciência, diria, uma representação no exterior.
O primeiro parágrafo não diz respeito ao “javanês” porque, de fato, ele é o velhaco ou o mandrião – valendo o forâneo gastador de elogio com o Poder – que percebe como a metrópole é capaz de confundir o juízo provinciano em benefício de apreciação, assimilada como superior, do indivíduo metropolitano. Seja ele originário de São Paulo, Rio de Janeiro ou Nova York. Não deseja, por outro lado, o parágrafo inicial saber do mazombo boquirroto porque vive esse de costas para o seu povo, menoscabando qualquer arte e tecnologia – como a biomassa – genuinamente criada no território de seu nascimento.
O intelectual delimitado através de Ribeiro, ademais, necessariamente não viveria acoplado à Instituição universitária ou Centro de Pesquisa, pois, sendo o ensaio substrato material desse homem de espírito, o professor ou pesquisador aprisionado à monografia não seria um intelectual, mas alguém vinculado ao trabalho mental ou de inteligência. Sob esse aspecto, aliás, o ex-presidente falador de muitas línguas, Fernando Henrique Cardoso, mais seria sociólogo; enquanto Manoelito de Ornellas, Francisco de Vasconcellos, Sílvio Júlio, Eduardo Lourenço, e tantos outros, intelectuais verdadeiros.
O caso é que, gradativamente no país, sobretudo a partir das décadas de sessenta e setenta, a universidade pública foi se expandindo, fortalecendo-se como centro de saberes. O que foi muito bom. Ao longo desse processo, aqueles homens de cabedal, descendentes de tradição antiqüíssima que ultrapassa o Brasil, dispersos em várias profissões, mas unidos pela cultura, foram – alguns – incorporados à universidade. Outros morreram. Os seus herdeiros, contudo, doravante aparecerão quase como obsoletos, supeitando-se mesmo dos seus saberes, uma vez que despregados de Instituição. O ensaio cairia então desconsiderado, pois a universidade, fracionada em departamentos, avistará na monografia a sua legítima escrita. Esse intelectual de corte antigo, diga-se de passagem, é um dos muitos exemplos, no Brasil, da individualidade insubmissa ou flexível à severidade das Instituições – individualidade constituinte do caráter nacional brasileiro, aqui apreendida sob os conceitos desenvolvidos por José Guilherme Merquior, em Saudades do Carnaval – Introdução à crise da cultura, ed. Forense, RJ, 1972.
Não se deve ainda confundir o artista com o intelectual, embora os dois, certas vezes, coabitem um mesmo indivíduo. No interior do Poder, o primeiro – como o bobo, em Rei Lear – grita verdades divertindo, enquanto o segundo, aceito pela sua inteligência, existiria como bibliotecário ou conselheiro: guardião de livros, como Giovanni Giacomo Casanova, no castelo de Dux, na Boêmia do Conde de Waldstein; ou jurisconsulto e chanceler-mor, como João das Regras, desenhado por Alexandre Herculano, em seu O Monge de Cister, como grande e misterioso conselheiro na corte olisiponense de D. João I.
Reconhecido pelo seu intelecto, mas submetidos ao Poder, na história da inteligência, poucos intelectuais se rebelaram contra essa condição vexatória. É fato também que, no Poder, o homem de espírito cairia nas armadilhas da ação, deixando de lado a sua inclinação para as coisas da inteligência. Insurgindo-se contra esse duplo enredo, contudo, buscando o raro caminho que une vida contemplativa e ação, alguns poucos intelectuais souberam encontrar o procedimento que leva à aliança entre a biblioteca e a política. Foi o intelectual-estadista, José Bonifácio de Andrada e Silva, o provável fundador, no Brasil, dessa conduta; personagem fulcral no processo de nascimento do país, acreditava na miscigenação e defendia, já naquela época, reformas como o fim da escravidão, a reforma agrária e o acesso de toda a gente à educação. É admirável apreender o vigor espiritual desse patriarca, no início do século XIX, discorrendo sobre vários temas: da filosofia e religião à economia, dos índios às mulheres, da literatura à escravidão e à política, preocupado, sempre, com um projeto para o novo país. Homem de ação e de reflexão, José Bonifácio, com seu procedimento, estaria na origem de indivíduos como Alberto de Seixas Martins Tôrres e Darcy Ribeiro, notáveis continuadores dessa paradigmática conduta. Embora todo intelectual verdadeiramente brasileiro, apenas com a sua biblioteca, também viva preocupado com o Brasil e o seu povo.
Fixado dessa forma o homem de espírito – não sendo, portanto, jornalista -, qual o espaço e o papel do intelectual na política da cidade? Não é preciso esforço para notar a cotidiana ausência de prestígio desse indivíduo, com as exceções de praxe, conseqüência do profundo descaso do Poder político e econômico com o mundo da cultura. Desapreço devido à ignorância, é certo. Mas, igualmente, resultante da pesada influência que a metrópole – sobretudo com a sua indústria cultural – exerce sobre a província, dificultando a admissão de vida inteligente em seu território. Em Petrópolis – no interior do Poder – o indivíduo de cultura nem sequer desempenha a função de conselheiro ou bibliotecário, quando muito, atribuem-lhe o papel de bobo sem talento. É de se observar, por exemplo, que, caso houvesse – com Poder – gente de cabedal no interior da antiga administração PSDB-sem biblioteca-Leandro Sampaio, o D.O. do município, 12/07/1997, não publicaria relatório de licitação da carta convite número 010/97, cujo objeto foi, por 0,06 (seis centavos) o quilo, a venda de dez toneladas de livros, revistas, jornais, publicações, etc, da Biblioteca Central.
A inserção da cultura na política de Petrópolis, contribuindo para a qualidade das idéias em confronto, agregando memória e imaginação – passado e futuro -, inibiria certa acrimônia que atravessa o cosmo político da cidade. Falta a esse campo público ampla visão do horizonte – o sentido ou a direção de toda ação cotidiana; afinal, o mundo pode cair sobre nossas cabeças. Causa espécie que a Política, privilegiada liça de transformação da sociedade, nestas montanhas não tenha ainda apreendido, aquilo que, em círculos de relevo da cultura e das artes petropolitanas, é já – de alguns anos – admitido com preocupação: a ruína e devastação deste território serrano – decadência escoando por anos, mas com inflexão grave nas duas últimas décadas do século XX, cujo exemplo, ao léu, é a carta convite de número 010/97, da anterior administração PSDB-sem biblioteca-Leandro Sampaio.
José Bonifácio é a sombra desses parágrafos debruçados sobre ação e biblioteca, vale dizer, política e contemplação, antinomia permanente a que o patriarca procurou dar termo. No país, desde sempre, o homem de espírito está condenado moralmente a imiscuir-se na política. Claro, por índole ou posição, nem todos olhariam o intelectual-estadista como fonte inspiradora. Mas não vivemos em outro mundo. No Brasil, ameaçado em se transformar no novo Oriente Médio, e em Petrópolis, carente de reação à demasiada decadência, a política guarda descomedida importância para ser deixada somente com os políticos – tudo está para ser feito – e a cultura, com gente empenhada embaraçando o sofisma, aperfeiçoaria o discernimento na vida pública. Discernimento de coisas, homens e pensamento.