JOAQUIM NABUCO E O AMERICANISMO

Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima

A perspectiva temporal que nos permite examinar com equilíbrio e isenção os fatos históricos, nos leva a divisar nos promissores horizontes do Novo Mundo, à véspera do 5º Centenário do Descobrimento do Brasil, três tipos distintos de americanismo:

1º – o que poderíamos chamar de macro americanismo;

2º – o pan-americanismo;

3º – o iberoamericanismo.

O macro americanismo nasceu com a própria América. Que foram os vários cronistas dos tempos coloniais, sempre a esmiuçar tudo quanto o Novo Continente oferecia de exótico, de insólito, de curioso, de interessante, senão americanistas ? Americanistas foram Humboldt, Saint Hilaire, Maria Graham, o Príncipe Maximiliano Wied Neuwied e todos quantos por algum motivo, fossem de onde fossem se interessaram pela América, quer do ponto de vista político e econômico, quer no que toca a parte social e as suas múltiplas facetas culturais; quantos divulgaram os valores americanos; quantos refletiram e escreveram sobre a América, como um todo, do Alaska à Argentina.

Tal a chama que vem animando há mais de um século os congressos internacionais de americanistas, desde o primeiro realizado em Nancy, na França, até o 49º que teve lugar em Quito, no Equador, em julho de 1997, estando o 50º marcado para o ano 2.000 em Varsóvia, Polônia.

O pan-americanismo, veio à tona no fim do século XIX, como doutrina política de cunho muito lírico, cujas bases foram a bem dizer lançadas no 1º Congresso Pan-americano, realizado em Washington em 1889, justo quando o Brasil passava da Monarquia à Republica.

Empolgava esse movimento a idéia de que a América, fosse anglo-saxônica, ibérica, francesa ou holandesa, tinha que buscar os necessários mecanismos que lhe permitissem a união, o congraçamento, e a defesa de seus interesses e de sua integridade, em face do colonialismo europeu e da ingerência de potências européias nos negócios americanos.

Era uma doutrina de certo modo utópica, desenvolvida a partir do monroismo e que aos olhos de alguns críticos, principalmente aqueles da América espanhola, como Blanco Fonbona, Ruben Dario, Manuel Ugarte e outros, atribuia erradamente aos Estados Unidos o papel de protetor de todos, de papai grande, solução para os males e agressões eventualmente sofridos pelo Novo Continente. A História já havia demonstrado exatamente o contrário e ainda teria muito a contar para desfazer essa imagem do anjo salvador atribuída à emergente potência do norte.

Com os olhos bem arregalados e os ouvidos bem abertos, Blanco Fonbona, venezuelano como Bolivar, proclamava a plenos pulmões:

“A América do Sul detesta os Estados Unidos por causa de suas eleições falsificadas, de sua fraude comercial, de seu ridículo Coronel Roosevelt, de sua diplomacia de força, da secessão do Panamá, de sua usurpação da Alfândega de São Domingos, do sangue que derramou e da independência que roubou da Nicarágua, das revoluções que fomentou no México, de seu imperialismo agressivo e de sua conduta para com a América Hispânica, durante o último meio século”.

E que dizer-se do problema de Cuba, da anexação de Porto Rico, da imposição de títeres ditadores nas Américas Central, Insular e do Sul, da ingerência na Revolta da Armada em 1893, no Rio de Janeiro ?

Essa índole expansionista yankee, que tanto despertava a desconfiança e o temor dos hispano-americanos, justo por contrapor-se ao verdadeiro ideal panamericanista, provocara no nicaragüense Rubén Darío, este desabafo:

“Juntais o culto de Manon ao de Hércules; em Nova York a Liberdade levanta a sua tocha, iluminando o caminho da conquista fácil”.

Já o polígrafo argentino Manuel Ugarte, em sua maratona pelas republicas da América do Sul e Central, no princípio deste século, onde em memoráveis conferências alertava os seus ouvintes para os perigos do expansionismo norte-americano, foi impedido de desembarcar e de falar em alguns países onde as garras de Tio Sam estavam presentes através dos chefetes impostos a povos impotentes para barrar a voracidade yankee.

Diante de tanta resistência e desconfiança das nações de origem hispânica, o pan-americanismo não teria mesmo condições de fazer sucesso e de colimar seus objetivos, mesmo a despeito dos congressos que se seguiram ao de Washington, entre eles aquele que se realizou no Rio de Janeiro em 1906, quando alí se reuniram as maiores cerebrações do Novo Mundo na primeira década deste século.

Entre nós, fazendo coro com Fonbona, Darío, Ugarte, Rodo e outros, o pernambucano Manoel de Oliveira Lima não se cansou de apontar o lirismo panamericanista, sendo um dos maiores críticos dessa doutrina.

O iberoamericanismo, como o próprio nome indica é o movimento que proclama a aproximação e a união dos povos ibéricos da América, que através de mecanismos próprios e do fortalecimento de suas relações nos vários planos da atividade humana, teriam condições de neutralizar a ganância européia e de aparar as garras afiadas de Tio Sam.

Trata-se de doutrina que rechaça frontalmente o monroismo, que para muitos não é uma regra de direito internacional. No conceito de Oliveira Lima, a Doutrina de Monroe é egoísta, pois sempre visou reservar a América Latina para os interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. Essa doutrina, de cunho unilateral, só serviu na distensão do tempo, para aumentar o desequilíbrio entre as duas Américas, cavando cada vez mais fundo o abismo que separa o bloco anglo-saxão do ibero-americano.

Essas averiguações calcadas em fatos reais, como por exemplo a Guerra Hispano-Americana em 1898, provocaram a exacerbação de um iberoamericanismo mais radical, baseado nas doutrinas de Bolivar que tinham nos Estados Unidos o grande causador de todos os males que se abatiam sobre a América. Esse iberoamericanismo dito bolivariano, teria que partir necessariamente do mútuo conhecimento, em razão dos laços culturais que nos unem a todos pela origem comum e da nossa condição de fundamentalmente ibéricos.

O iberoamericanismo tomou vulto entre nós depois da proclamação da República e, nas primeiras décadas deste século contou com dois baluartes, por coincidência pernambucanos: Manoel de Oliveira Lima e Silvio Júlio de Albuquerque Lima.

Entretanto, os resultados práticos foram de pequena monta. O movimento insulou-se e intelectualizou-se demasiadamente. A luta pelo mútuo conhecimento com fulcro nas marcas fundamentais da cultura ibero-americana, não logrou colimar os seus objetivos e somente agora, através do Mercosul é que o iberoamericanismo ensaia os seus passos firmes e decididos no rumo do pragmatismo, que alguns dividendos haverá de produzir.

Mas é válido esclarecer que além do quixotismo dos pioneiros nessa jornada em busca do congraçamento ibero-americano, três fatores contribuíram para o seu emperramento ao longo deste século.

1º – a desconfiança dos hispano-americanos em relação ao Brasil, herança dos tempos da Monarquia, em que éramos vistos como imperialistas;

2º – o pouco caso devotado pelos brasileiros aos seus irmãos da América e o desinteresse pela história e pela cultura destes;

3º – a política externa norte-americana para Iberoamérica, alimentando velhos ressentimentos, tirando partido de idiossincrasias históricas, prestigiando o caudilhismo, fazendo a cabeça de ressentidos chefetes, bloqueando a aproximação dos povos ibéricos da América, afrontando a cultura milenar das populações indígenas, impondo um modelo cultural calcado em polpuda distribuição de dólares, enfim dividindo para reinar segundo o velho ensinamento da raposa Albion, que tantas desgraças causou ao mundo.

Então perguntar-se-á, nesta altura do presente discurso: a que corrente americanista estava filiado o nosso Joaquim Nabuco ?

Indubitavelmente ao pan-americanismo de índole monroista.

O pernambucano Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, nascido em 1849 no Engenho Massangana, intelectual e homem público de muitas facetas, embora formado à européia, deixou-se empolgar pela causa da América fulcrado na chamada doutrina de Monroe.

Em rápidas pinceladas, João Frank da Costa em “Joaquim Nabuco e a Política Externa do Brasil”, Record, 1968, assinala, que segundo o parecer do seu biografado, a diplomacia brasileira devia ser feita principalmente em Washington; que a política norte-americana não tinha por finalidade a conquista e a opressão; que o Brasil não poderia hesitar entre os Estados Unidos e a América Espanhola; que o monroismo deveria tornar-se um princípio continental; que as responsabilidades do monroismo deveriam ser partilhadas pelas maiores repúblicas latinas do continente. E Joaquim Nabuco dizia mesmo aos norte-americanos:

“Nós dormimos todos profundamente com as portas abertas, enquanto os Estados Unidos permanecem vigiando toda a noite”.

Aos olhos dos esquerdoides do nosso século Nabuco não poderia receber outro rótulo que não o de entreguista.

Mas nesse seu desvario panamericanista de cunho monroista, ele sabia que dois obstáculos impediam a aproximação dos Estados Unidos das demais nações latino-americanas: 1º – a indiferença de Tio Sam aos países latinos da América e sua tradicional repulsa às alianças; 2º – o receio dos países hispano-americanos no tocante à política expansionista yankee sempre no rumo sul.

Joaquim Nabuco nos seus arroubos panamericanistas de índole monroista, não encontrou resistência somente entre os hispano-americanos, mas também entre patrícios seus.

O primeiro deles foi Eduardo Prado que na “Ilusão Americana”, enfatizou:

“A fraternidade americana é uma mentira. Considerai as nações ibéricas da América. Mais ódios, mais disputas do que nas nações da Europa”.

Nabuco, que asseverava só confiar nos Estados Unidos, prontamente reagiria com este desdenhoso conceito:

“A ilusão Americana do Prado é um livrinho que nos faz muito mal, entretém no espírito público a desconfiança contra este país, o nosso único aliado possível”.

Oliveira Lima foi o outro crítico do norteamericanofilismo monroista de Joaquim Nabuco e as radicalizações e farpas trocadas de parte a parte foram de tal ordem, que provocaram o rompimento desses dois pernambucanos americanistas de estilos bem distintos.

Ninguém ignora que tanto Joaquim Nabuco como Oliveira Lima, tiveram forte atuação na vida diplomática brasileira e que o segundo, inclusive, deixou toda a sua biblioteca para uma universidade norte-americana, pois declarava textualmente, que não queria que seus livros ficassem a mercê da incúria brasileira, expostos às pragas temporais, às goteiras, aos maus tratos, num desvão qualquer de um próprio municipal ou estadual. E nós todos sabemos que esta realidade é bem nossa, isto é, ibero-americana. O paraguaio Manuel Gondra seguiu o mesmo caminho do grande biógrafo de D. João VI. Mas essa atitude de amor à cultura e aos objetos a ela pertinentes, o reconhecimento dos cuidados e das inversões norte-americanas nesse setor, jamais significaram, como não significam uma rendição total e irrestrita aos métodos yankees na condução da política mundial e pan-americana.

Mas Joaquim Nabuco, Embaixador em Washington, na sua exacerbação norteamericanófila, acabou rendido incondicionalmente ao way of life de Tio Sam e tanto é verdade que, numa de suas conferências em território norte-americano, depois de fazer longa louvação às qualidades de seus anfitriões, declarou:

“Falando da América, tomei aqui a parte pelo todo e apenas me referi a este país. É muito cedo para falar do papel destinado na História, à América Latina. Ainda não nos chegou a vez de entrarmos no palco”.

Para ele, a América era os Estados Unidos e nada mais que os Estados Unidos. Asseverando que ainda não raiara a presença ibero-americana no Mundo e na própria América, ele negava, na altura, quatrocentos anos de história, de lutas em defesa de nobres ideais e sobretudo da afirmação da latinidade nesta banda do Atlântico. Negava mais que tudo seu próprio país, que da monarquia à república já havia dado gigantesco passo no rumo de seu alcandorado destino.

Em dois momentos muito especiais, fixou Joaquim Nabuco as linhas mestras de seu americanismo, calcado num inarredavel êxtase diante das façanhas norte-americanas nos vários campos da atividade humana.

Na Universidade de Chicago, a 28 de agosto de 1908, Nabuco pronunciou retumbante discurso vinculado ao tema “A Aproximação das duas Américas”. Quem lê esse seu pronunciamento, percebe que ele não fez mais que uma ode em prosa aos Estados Unidos.

Num autêntico delírio, distante muitos anos luz da realidade palpável, ao tato de qualquer observador menos arguto, ousou proclamar:

“Vos, com toda alta civilização, não podeis fazer mal a nenhuma outra nação. O contato íntimo convosco, seja em que condições for, só poderá portanto trazer benefício e progresso à outra parte”.

Esta altissonante assertiva, na altura dos acontecimentos, só poderia soar como blasfêmia aos ouvidos cubanos, colombianos, porto-riquenhos, mexicanos, nicaragüenses, argentinos …

E não queria Joaquim Nabuco que Oliveira Lima o considerasse lírico, utópico e afastado da veracidade dos fatos, que a história registrava à luz das provas documentais, orais, testemunhais e até periciais.

Adiante vaticinou Nabuco só que calculando mal os resultados:

“O único efeito certo que posso enxergar no trato íntimo da América Latina convosco, é que ela viria a ser lentamente americanizada; isto é, se impregnaria em medida diversa do vosso otimismo, intrepidez e energia”.

Joaquim Nabuco esqueceu-se de que nenhum povo pode injetar no outro doses de otimismo, intrepidez e energia, porque já o velho ditado ensinava: cada roca com seu fuso, cada povo com seu uso. O que acabou acontecendo, não foi a americanização de nós todos, como pretendia o Embaixador, mas a nossa americanalhação, como arriscou o imortal Barão de Itararé, ante o domínio avassalador do império yankee, impondo o seu modelo, como qualquer império, abarrotando-nos a poder de milhões de dólares de seus entulhos made in, do chicletes ao hambúrger; da coca cola ao jeans; do bang bang ao rock; do Pato Donald aos tele tubs.

Vamos perdendo a nossa identidade, as nossas tradições, os nossos usos e costumes, os nossos ídolos, os nossos heróis culturais, o nosso civismo, a nossa auto estima, ante essa avalanche de valores culturais alienígenas, que nada têm a ver com a nossa formação e com o nosso caráter.

Naquela mesma linha de raciocínio, verberou Nabuco no seu discurso em Chicago:

“Eu nunca acabaria se houvera que enumerar todos os benefícios que à América Latina derivara do estreito intercâmbio com os Estados Unidos. Preferirieis talvez ouvir que vantagens adviriam para vos desse intercâmbio. Digo-vos francamente que a primeira seria apenas a vantagem que vem de fazer amigos; mas a meu ver não há benefício mais substancioso que esse para a nação que tem a supremacia no Continente”.

Num outro discurso sob o título “O Quinhão da América na Civilização”, pronunciado aos 20 de junho de 1909, na Universidade de Wiscounsin, Joaquim Nabuco, sempre tomando a parte pelo todo, esbanjou louvações às qualidades norte-americanas, algumas dignas de nota, mas não exclusivas daquela nação.

Com fulcro numa fala do Presidente Eliot, Nabuco sublinhou três das cinco contribuições norte-americanas para a civilização: a mais larga tolerância religiosa; a demonstração da aptidão de uma grande variedade de raças para a liberdade política; a difusão do bem estar material entre a população.

Essa tolerância religiosa é indubitavelmente um traço marcante na vida dos Estados Unidos, como não deixa de sê-lo no Brasil, menos ao tempo do abolicionista pernambucano que nos dias que correm, quando a própria Constituição Federal proíbe de maneira taxativa qualquer discriminação ou intolerância nesse setor. Já o mesmo não se poderia dizer da América Espanhola. No Paraguai do principio do século, não havia possibilidade de alguém postular a presidência da República não sendo católico e na Argentina, os chamados cultos de possessão, encontram fortes barreiras quer do ponto de vista legal quer do social.

A liberdade política para a qual convergiram todas as raças que buscaram os Estados Unidos, foi no critério de Nabuco, a maior contribuição yankee para a civilização. E em sã consciência, por um dever elementar de justiça, ninguém poderia negar essa extraordinária características da mentalidade e do comportamento norte-americanos.

O imigrante nos Estados Unidos, sobre ter sido recebido em condições muito superiores, se comparadas com as que nos, por exemplo lhe oferecemos ao longo do século passado e princípios deste, tiveram um tratamento alí muito diferente daquele que nós aqui dispensamos aos que vieram bater nos portos brasileiros.

O que tivemos no Brasil quando das grandes correntes migratórias, foi discriminação, abandono, obstáculos de toda ordem, negação de oportunidades, entraves à ascensão social, muita vez nivelamento ao próprio escravo.

Não fossem a pertinácia e a resistência desses imigrantes e a índole acolhedora e democrática da maioria do povo brasileiro e teríamos criado guetos e bolsões étnicos que haveriam de por em risco não só a nossa paz como a nossa integridade.

Indubitavelmente o norte-americano nessa matéria foi muito mais precoce do que nós e não há termo de comparação já nos dias que correm, entre a maneira como estadunidenses e brasileiros encaram tal assunto e o comportamento dos hispano-americanos em relação ao tema.

Os Estados Unidos, o Brasil, a Argentina, o Chile, o Uruguai, são a nova pátria dos velhos contigentes humanos europeus, que no Novo Mundo haviam de confundir-se, falando a mesma língua e disputando em igualdade de condições as mesmas oportunidades.

Mas de todas essas contribuições à civilização, nenhuma é mais genuinamente norte-americana que a difusão do bem estar material entre a população. Ela é fruto da liberdade de ação, da igualdade na competição e do longo exercício da democracia. Nenhum país da nossa América logrou copiar tal modelo, pondo-o em prática. E aí está um atributo que não faria mal a nenhum de nós.

De tudo aqui está exposto, nessa rápida contribuição ao painel comemorativo dos 150 anos do nascimento de Joaquim Nabuco, fica-nos tenho certeza, a imagem de um americanista centrado no monroismo utópico e lírico, divorciado das ações que a História registrou ao longo dos anos; o perfil de um norteamericanófilo exacerbado, que não podia conceber a América, como um todo, que não se espelhasse no modelo daquela privilegiada parte do Continente; o retrato de um internacionalista posto sob suspeita pelos seus pares da América não yankee, refratárias aos trejeitos e acenos dos Estados Unidos.