Lugar de Petrópolis na Ditadura  e o Mestre da Tortura Dan Mitrione (O)

Júlio Ambrozio, ex-Associado Titular, Cadeira n.º 30, Patrono – Monsenhor Francisco de Castro Abreu Bacelar

Se dúvidas restavam acerca da existência, em Petrópolis, de uma casa utilizada pelo aparato repressivo da ditadura, com o livro do delegado Cláudio Guerra, “Memórias de uma Guerra Suja”, e as matérias em O Globo, 24, 25, 26/06/2012, à volta do Tenente-coronel reformado Paulo Malhães e de sumiços de Arquivos, essas incertezas parecem que se extinguiram. A entrevista do militar, que estabelece o seu envolvimento direto com a casa da Artur Barbosa, confirma largamente as denúncias de Inês Etienne Romeu, que, fisicamente, sofreu os horrores da ditadura no período de sua inflexão repressiva; ditadura de 1964 nascida de golpe militar monitorado pelos EUA. Depois desse livro e das reportagens com esse tenente-coronel, dúvida alguma há em relação à casa petropolitana da violência ditatorial.

Eu não sei se o movimento para a criação do museu brasileiro da tortura ao redor dessa casa já alcançou setores determinantes de Brasília. Eu desconheço também se o CDDH, embora indicando o local em seu abaixoassinado, teria em vista mais a ideia do que o lugar. Afinal, outro sítio de mais fácil acesso e com abundância populacional, tal como a região do Museu de La Memória de Buenos Aires, talvez fosse mais favorável para os objetivos desse museu. Talvez a própria casa de Petrópolis interesse absolutamente, caso se eleve a reação dos militares e, ainda assim, o empenho pela constituição do museu seja afirmativo, necessitando-se, então, de eventual composição: fundar-se-ia o museu, porém em lugar ermo e em cidade menor e relativamente distante dos grandes núcleos populacionais. O desacerto de tudo é que o Brasil permanece como certa espécie de paquiderme que arrasta demasiadas questões para além do imaginável, exemplo disso é o tempo em que se dá este propriísmo embate, quando os principais responsáveis estão mortos.

Em relação a Petrópolis, curiosidade irônica, é que a proposta de se criar um espaço de memória permanente para as novas gerações acerca desse período repressivo, unir-se-ia a atividade turística que foi se fortalecendo aqui e em muitas outras cidades a partir da falência industrial e urbana ocorrida com os anos de 1970 e depois. Dizendo com franqueza, seria apreendido por esse setor como mais um museu, ou mais uma isca, na disputa interurbana pela deambulação turística. Trata-se de imaginar, paradoxalmente, que não é impossível uma simbiose ou amálgama entre aqueles petropolitanos politicamente preocupados com a criação de uma arquitetura memorialística contra a tortura, liderados pelo CDDH, e o setor turístico enxergado como absoluta e fundamental panaceia para a economia citadina.

Escrevo essas coisas porque, olhando de longe, tudo parece indicar que o empenho contra a tortura empreendida pelo golpe de 1964, em Petrópolis, vive circunscrito à luta pela edificação do referido museu. Sob esse ângulo, não é difícil deixar de notar que, existindo alguma espécie de punição nesse processo, ela desaba exatamente naquela família do Rio de Janeiro que, de boa fé, escolheu morar na Rua Artur Barbosa.

Será que, ao contrário do senso comum, Petrópolis não seria para amador?

A indagação porta alguns vieses. Uma direção lembraria que o vocábulo /petrópolis/, além de designar um município, também era – em dicção antiga e informal oriunda das notáveis bengalas de Carlos Spangenberg – bastão grosso usado pelas forças policiais.

Escolho outro viés: o velho interventor Fernando Ayres da Motta não pode mais expor esclarecimentos cruciais. Mas o seu nome, contudo, indicaria participação ou cooperação de civis. Quem, por exemplo, leu a tese de doutoramento, transformada em livro, da professora Beatriz Kushnir, atual Diretora-Geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, “Cães de Guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988”, ed. Boitempo, sabe da contribuição da Folha de São Paulo, que transportava em suas camionetes militantes de esquerda para pontos ou sessões de tortura ligados à OBAN, a ponto que recebera o jornal apelido de “Diário Oficial da Operação Bandeirantes”. O próprio livro do delegado Cláudio Guerra menciona a Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, como incineradora de presos políticos. Ora, o que procuro com este viés é compreender por que a tradução petropolitana deste empenho contra os horrores da ditadura de 1964, liderado pelo CDDH, aponta unicamente para o arquitetônico e memorialístico. Além de Ayres da Motta, apontado pelo Tenente-Coronel Paulo manhães em O Globo, não existiriam outros petropolitanos? Gente sabedora da casa; gente vinculada à repressão violenta por convicção ou conveniência. Se essas perguntas não receberem respostas, a punição ou o opróbrio, involuntário, fixar-se-á tão somente nos moradores da casa e, quem sabe, nos habitantes da própria Rua Artur Barbosa.

Escrevo essas coisas porque, provavelmente, não foi apenas uma parte do Arquivo de Polícia que desapareceu, O Globo, 26/06/2012; os vestígios do mestre da tortura e agente da Cia, Dan Mitrione, que teria circulado com desenvoltura em certas rodas petropolitanas, também foram apagados ou quase perdidos. Eu tenho dúvida se é necessário lembrar quem foi Mitrione. Qualquer computador faz isso rapidamente. O buscador Google, por exemplo, indicava duzentas e oitenta e duas mil referências no dia 26/06/2012, 00h:52min. Até mesmo a Wikipédia gera alguma informação sobre esse agente da Cia contemporâneo de Philip Agee na América Sul. Em todo caso, Dan Mitrione, como encarregado de negócios da embaixada americana, teria ministrado aulas de tortura para a Polícia Brasileira, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

O caso é que guardo em minhas mãos fotocópia que qualquer pessoa obtém na Câmara Municipal. Alguns anos atrás procurei a presença de Mitrione em Petrópolis. Nada sistemático. Busquei em três lugares rastros de sua passagem pela cidade: no Museu Imperial vasculhei os anuários, mas nada havia sobre as suas conferências realizadas nessa Instituição federal; fui ao Arquivo Municipal olhar jornais do período, nada encontrei, embora fosse necessária investigação bem mais zelosa e demorada. Foi, porém, na Câmara que recuperei o Requerimento, o Projeto de Deliberação e a sanção do prefeito, todos de 1970, denominando Rua Dan Mitrione logradouro circunvizinho à Rua Barão do Rio Branco.

O que interessa para nós petropolitanos e brasileiros é a sua estada serrana.

No Projeto de Deliberação, 14/08/1970, levado a cabo pelo falecido vereador Paulo Ribeiro, com todas as letras, lê-se que “Proferiu conferências no Museu Imperial, sob assuntos de sua especialidade, conforme noticiário de nossa imprensa.” Lê-se, igualmente, que “Dan Mitrione era um enamorado de Petrópolis, visitando nossa cidade com frequência, quando servia à Embaixada de seu país junto ao Governo Brasileiro.” Paulo Ribeiro ainda assina que “Recentemente, escrevendo para um seu amigo petropolitano, externou seu desejo de voltar a Petrópolis, antes de viajar para sua Pátria, em gozo de férias.” Interessante é notar a presteza com que o Projeto de Deliberação alcançou o protocolo e a sua aprovação, aparentemente, dispensado das formalidades e interstícios legais: Mitrione morreu pelas mãos dos Tupamaros uruguaios em 10 de agosto de 1970 e, quatro dias depois, 14 de agosto de 1970, Paulo Ribeiro fixava o seu Projeto na Câmara – n° 664/1970 – que, efetivado rapidamente, demorou bons anos para ser modificado pelo empenho de alguns, dentre esses, salvo engano, o político petropolitano Enivaldo Gonçalves.

Para além de pugnar por um museu – luta sem aparente diálogo ou confronto concreto com a cidade em que se vive –, o CDDH talvez pudesse também liderar a busca por esse trapo de memória ligado à interlocução petropolitana com a tortura; conversação, para dizer o mínimo, de alguns citadinos que – quem sabe – vivos ainda estão.

Quem, afinal, eram os amigos petropolitanos de Dan Mitrione? Quem aplaudiu as conferências de Mitrione no Museu Imperial? Quem foram os personagens que estimularam o Projeto assinado pelo vereador Paulo Ribeiro? Responder essas questões talvez significasse encontrar, porventura ainda vivos, os simpatizantes do velho interventor Fernando Ayres da Motta.

Indagações espinhosas, claro, mas viscerais para olharmos a ação repressiva na casa da Artur Barbosa como resultado de eventual articulação entre o movimento mais geral da ditadura, figurado no Estado brasileiro, e a singular contribuição, por convicção ou conveniência – insisto novamente –, de gente de Petrópolis escondida nos desvãos da memória.