MAUÁ E D. PEDRO II

Joaquim Eloy Duarte dos Santos, Associado Titular, Cadeira n.º 14 – Patrono João Duarte da Silveira

Olhar firme, decidido, sem vacilações; postura altaneira, gigantesca presença recebida entre murmúrios de aprovação, encantamento, respeito, inveja…

Entra no salão o senhor Ireneo Evangelista de Souza, nobre cidadão empreendedor, provocando acenos de cabeça, cochichos, interjeições, esgares de repulsa, olhos brilhantes de admiração, o rastejar de víboras traiçoeiras…

É o Visconde de Mauá o centro dos olhares e das atenções enquanto passa pelo salão em caminho para o cumprimento formal e protocolar ao Imperador D. Pedro II, como ele, de porte altaneiro e luminosidade gerada pelo clima de raro espanto de quantos vivem a sedução das cores e da pompa do Império Brasileiro.

Uma pompa decerto modesta se comparada aos impérios do Velho Mundo, onde a soberba esconde a mediocridade de corações e cérebros sem o poder verdadeiro: o poder da visão de futuro.

Aqui, em nossa Monarquia, mesmo enriquecida de poucos notáveis extraordinários idealistas e luminares do saber e do conhecimento, habita o esforço pela conquista, onde tudo puxa o ideal para a ré do desenvolvimento; estes valentes idealistas, nessa contramão, rasgam os ares da indiferença, rompem os caminhos inóspitos, arrostam os perigos das escaladas mais íngremes das montanhas do saber e da superação dos problemas.

Eis que dois cidadãos, cada um de um lado dessa visão nobre da cidadania, rompem os cânones da fátua contemplação mediante a criatividade e a coragem, assustando aqueles que nada fazem porque nada têm para oferecer.

Dois cidadãos brasileiros ; um, vindo dos lençóis palacianos de ascendência nas velhas famílias aristocráticas há séculos no poder ; outro, apenas um visionário, de biografia modesta quanto a honrarias, de presença comum, cuja inteligência arrojada transforma qualquer idéia em realização, qualquer ação em conquista, qualquer sonho exeqüível em realidade.

O olhar desses dois personagens não é enegrecido pelas pálpebras cerradas, antes, abrem-se às maravilhas da Criação Divina para, em as compreendendo, utilizá-las no desenvolvimento do conhecimento e da reta ação humana.

D. Pedro II, o magnânimo Imperador, que habita aqui onde nos reunimos agora, mesmo que aparentemente indolente – no juízo de alguns – tem flama tão idealista que supera o ser imperador em favor da simplicidade de apenas ser criatura humana integral. Seus sonhos mais caros passam pelas cores de um arco-íris de sentimentos de realizador, de bom ouvinte como se fora eterno aprendiz, de efetivamente conquistar, pelo trabalho, o respeito de seus comandados. Um comando que ele próprio não deseja – o trono é-lhe pesado! – porque o alimento de seu espírito é a cultura em manifestação doce e pura, o saber ; e aquele segredo revelado e extravasado da alma:

– Gostaria de ser professor!

Mas, ali está, indiferente aos rapapés e melosias, suportando os beijas-mãos em nome da função e protocolo, sob desejo ímpio de romper as barreiras do poder com a realização de empreendimentos não fátuos, mas permanentes e geradores do desenvolvimento brasileiro.

Comum é que o fausto sufoca o ideal, os comandantes se envolvem nos lençóis do poder e não prestam atenção aos conluios dos corredores e as pesquisas científicas dos porões explosivos de destemor e conseqüente avanço tecnológico.

Governantes – muitos – cuidam de seus trajes e limpam seus espelhos diariamente, deixando que a hera tome conta das paredes externas do poder, sufocando o verde vivificador que serve melhor à vida porque é a diversidade que colore a esperança.

Em um dia qualquer Ireneo encontra-se com D. Pedro II.

Um, diante do outro, olhares nas pupilas e rápida análise da postura pessoal. Chegam às primeiras palavras de cumprimento e educação. Segue-se o terçar de idéias e conhecimentos. Um idealista diante de outro idealista. O primeiro com idéias; o segundo com o poder. Ou melhor: o primeiro com idéias e poder; o segundo com o poder das idéias.

Ireneo quer dotar a País de largo desenvolvimento material em todos os setores e diante dele está um curioso personagem, um cientista amador, uma criatura de espírito com o dom de ouvir e espanto simultâneo pela novidade; e, afinal, o Chefe de Estado do Império Brasileiro.

Conversam e o diálogo de idealistas ascende ao imponderável do sonho. Ireneo tem sonhos, sim, lastreados na realidade do acordar. D. Pedro II sonha mais etereamente enquanto detém o poder decisório e maneja os cordéis das marionetes políticas com sabedoria salomônica.

Um – “Quero já!” – que dissera aos 15 anos de idade, é repetido por D. Pedro diante do entusiasmado Ireneo:

– Quero já! senhor Ireneo Evangelista de Souza que o Vosso trabalho melhore o nosso Império e torne a ambos referência futura de boa administração, serena quanto ousada, capaz, uma estrada normal de progresso e desenvolvimento!

Ireneo responde com o trabalho e suas realizações têm o selo do pioneirismo edificador de uma fase evolutiva segura de nossa nacionalidade.

Bosquejo uma rápida biografia de Ireneo Evangelista de Souza para recordá-lo, admirá-lo mais e registrar sua passagem pelos caminhos de nossa história.

Gaúcho, nasceu em 28 de dezembro de 1813, na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Arroio Grande, na capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, filho do fazendeiro João Evangelista de Ávila e Souza e da senhora Mariana de Jesus Batista. Infância complicada, órfão de pai aos 5 anos de idade, criado pela mãe que ensinou-lhe as primeiras letras. Esta casou novamente e o marido não quis educar e nem tomar responsabilidades com o enteado. Aos 9 anos de idade estava com um tio no Rio de Janeiro, empregado no comércio como balconista de uma loja de tecidos.

Tornou-se, em seguida, empregado de João Rodrigues Pereira de Almeida e até os 14 anos esteve trabalhando com possibilidades de ascenção profissional, quando o seu patrão foi obrigado a encerrar as atividades. O comerciante falido, honrando o fio da barba, pagou a todos os credores e a um deles destinou a casa de sua moradia. Era o escocês Richard Carruthers, que não aceitou a casa em pagamento por entender que a casa de residência é sagrada. João Rodrigues disse que nada mais tinha para oferecer em pagamento, senão apenas e unicamente uma jóia: o empregado Ireneo.

O empresário aceitou o oferecimento e deu por quitada a dívida, empregando o jovem em sua firma importadora. Como se tornara o encanto do antigo patrão, Ireneo também conquistou o escocês, graças ao seu trabalho, sua capacidade, criatividade e excelente visão mercantil e industrial.

E tudo segue e a empresa vai tão bem que o proprietário retorna ao seu país e deixa Ireneo responsável pela gerência de toda a atividade da importadora no Brasil.

O jovem empreendedor aprendera inglês, contabilidade, comércio e gerência com Richard Carruthers, não tendo nenhuma dificuldade na gerência, expandindo os negócios e gerindo uma atividade industrial intensa, iniciando com a Companhia Ponta da Areia a indústria naval brasileira. Dali saíram os navios e canhões para as guerras travadas no cone sul da América envolvendo a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

Foi ao Reino Unido, no ano de 1840. Viu a existência de uma Inglaterra em plena Revolução Industrial e percebeu o quanto engatinhava o Brasil, com sua insipiente economia de exploração agrícola e extrativa. Exportava o país ferro e a Revolução calcada no ferro e no vidro não chegara por aqui.

O mundo de Ireneo ganhou contornos inimagináveis e ele sentiu que era do seu dever – na expansão de suas atividades – garantir para o nosso país um desenvolvimento moderno que servisse ao povo e equiparasse o país às nações da Terra.

Sumariando tanto trabalho em tão pequeno ciclo de sua vida, Ireneo, depois o nobre Mauá, realizou na área industrial, começando pela Fundição da Ponta da Areia, os empreendimentos: Companhia Fluminense de Transportes; Companhia de Rebocadores a vapor da barra do Rio Grande; Companhia de Iluminação a Gás do Rio de Janeiro; Estrada de Ferro Petrópolis (este nosso sesquicentenário); Botanic Garden´s Rail Road Company; Estradas de Ferro: de Antonina a Curitiba, no Paraná; Paraná a Mato Grosso; Santos a Jundiaí, D. Pedro II, Recife a São Francisco, do Rio Verde; Caminho de Ferro da Tijuca; Companhia de Navegação a Vapor do Amazonas; Companhia Diques Flutuantes; Companhia de Cortumes; Companhia Luz Esteárica; Montes Altos Brazilian Gold Mining Company; Abastecimento de Águas à Cidade do Rio de Janeiro; Telégrafo Submarino e outros empreendimentos de menor sucesso.

No setor financeiro, criou o Banco do Brasil, o Banco Mauá & Cia. no Rio de Janeiro, em Montevidéu (Uruguai) e Rosário (Argentina).

Pesquisador na área de Ciência Econômica, escreveu “Teoria do Meio Circulante do Brasil”, que publicou com grande sucesso. Também escreveu um substancioso trabalho “Autobiografia (Exposição aos Credores e ao Público)”.

Em outras frentes de atuação, financiou missões de guerra e paz em apoio aos paises da tríplice aliança firmada pelo Brasil com Uruguai e Argentina; fundou uma colônia agrícola no Amazonas com 600 açorianos e 600 algarvianos e explorou terras no Uruguai e no sul do País, com plantações de chá, alfafa e arroz com chineses e hindus. Explorou a lã e o gado tendo participado com seus produtos na Grande Exposição Internacional de Londres, no ano de 1861.

Pensar em um homem comandando tantos negócios, correndo pelas estradas, rompendo montanhas e planícies, sem descanso, pergunta-se se encontrou tempo para dedicação a uma família, o que lhe fora negado desde a infância : Ireneo desposou sua única sobrinha Maria Joaquina.

Uma história de amor, um conto incrível jamais pensado pela ficção romântica, dá-nos o fato ocorrido no ano de 1839 – Ireneo contava 26 anos de idade – quando traz do sul a mãe, que enviuvara novamente e sua irmã Guilhermina, também viúva, com a filha adolescente, Maria Joaquina. Instala a família no bairro de Santa Teresa e empreende a viagem a Londres, sua única à Europa. Ao retornar oferece à sobrinha uma aliança de ouro como proposta de casamento. Consorciam-se no ano de 1841. Da união nascem 19 filhos, sobrevivendo 12.

Mauá, sem dúvida, um homem de enormes e incríveis empreendimentos.

Faleceu em sua casa em Petrópolis, a 21 de outubro de 1889.

Não elaboro uma biografia de D. Pedro II porque a presença do Imperador está impressa no coração nosso de brasileiros e a cada dia cresce sua luminosidade na admiração e no respeito nacional. E todos nós conhecemos sua vida. Está aqui, nesta casa esplêndida, o Museu Imperial, na Capela Imperial em nossa Catedral gótica, nos livros didáticos, literários e históricos, no cinema e nas artes, nos escaninhos dourados da memória de cada um.

D.Pedro II e Mauá, Petrópolis e a ferrovia sesquicentenária, falam por ambos.

Para encerrar a homenagem a Mauá, ligeira observação sobre as divergências entre esses dois grandes brasileiros sonhadores e realizadores.

Cada pesquisador, analista ou simples contador de histórias, tem sua visão que deita à leitura e à meditação e à reflexão.

Na relação inamistosa entre D. Pedro II e Mauá, veiculada em obras e escritos vários, o que existiu, de fato, foi a intriga, como sempre, espicaçando as diatribes dos salões, corredores e alcovas íntimas, porque um e outro eram personalidades fortes e decididas. Eram ousados, o que não agradava os áulicos, os fracos e despreparados roedores das beiradas comensais do Trono, que temiam perder espaços.

Inveja? Quem teria inveja?

D. Pedro II de Mauá?

Mauá de D. Pedro II?

Coloquemos nessa procissão de ditos o andor da reflexão humana e desfilemos nas ruas da racionalidade.

D. Pedro II invejava Mauá, sim!

Mauá invejava D. Pedro II, sim!

Cada qual, em sua missão, queria intimamente ter o mesmo conhecimento, a mesma capacidade de realizar, a mesma coragem, o mesmo poder.

Se uníssemos um ao outro teríamos forjado um super-homem, um tão extraordinário indivíduo humano, que a ficção literária e artística teria alimento eterno para suas criações fantasiosas.

No entanto eram duas criaturas admiráveis que se respeitavam e alimentavam, não a inveja que corrói a alma, mas a “santa inveja”.

D. Pedro II, estadista e sábio e Mauá, empreendedor e sábio, completavam-se admiravelmente. Inevitavelmente discordaram em alguns projetos, porém não há como separar da mesma luta tão leais parceiros.

Aquele que vive o dia-a-dia da política, ou do intestino ranger das engrenagens econômico-financeiras, conhece os intrincados caminhos desses poderes e, sabendo acerca da fraqueza triste de certas mentalidades humanas, há-de compreender bem essa “santa inveja”.

Por fim, concluir que Mauá e D. Pedro II foram alvos prediletos da maledicência porque poderosos e íntegros. Eles divergiram em favor de projetos nacionais, nunca de forma pessoal, e toda a dificuldade encontrada por Mauá nos caminhos da burocracia ou na lerdeza da política não partiu de D. Pedro II. O Imperador estava acima de procedimentos menores, assim como Mauá.

Em verdade, aqueles que cumprem e vivem a seara da lei serão sempre alvos daqueles que, por não cumprirem o dever, entendem que o procedimento é extensivo. Cria-se um escândalo para encobrir outro. A História, como de seu dever, registra o fato, o lúdico, o mistério, a especulação.

Torna-se fácil, melhor que a verdade, estabelecer-se a dúvida para a existência da crítica.

O melhor é subirmos naquele trenzinho de cento e cinqüenta anos atrás e virmos rompendo as distâncias, acompanhando o Imperador e Mauá, na composição especial, tossindo com a fumaceira, recebendo fagulhas incandescentes no vestuário, com protetores de ouvidos engastados dentro das orelhas, boquiabertos com a novidade, sorrisos incrédulos e felizes, felizes pela conquista realizada através do trabalho e da coragem.

Porque é a luta sob divergência que constrói. Triste é a subserviência embotando o raciocínio!