O PASSADO, PARA NÃO PERDER O FUTURO
Arthur Leonardo de Sá Earp, Associado Titular, Cadeira n.º 25 – Patrono Hermogênio Pereira da Silva
Faz já algum tempo. Não muito. Mas somado ao período antecedente vai constituindo o valor que a permanência através dos anos acaba conferindo às pessoas, às coisas, aos fatos.
Foi a 9 de março de 1986 que o “Relógio da Estação” voltou a funcionar para o público, na fachada da Casa Comércio, na Rua Dr. Porciúncula. Apesar daqueles que, de visão tacanha, hoje lhe dão pouca importância, ele prossegue na marcha para a idade que consagra e que é dado objetivo incontestável.
Era um domingo. A cerimônia de reinstalação foi planejada para se resumir no próprio trabalho de levar o relógio do chão ao suporte fixado na parede e de pô-lo em movimento. A solenidade aí estava; era o assistir não a um ato simbólico e evocativo ou a um único gesto externo, como apertar um botão de partida, final de uma série de árduos labores vividos longe do conhecimento da maior parte, mas sim assistir à realidade, com todas as possibilidades de sucessos e de fracasso, da realização da última etapa da recuperação do tradicional relógio. O público acorreu ao local, participando, com suas opiniões, suas apreensões, suas palavras de advertência e incentivo, com o apoio de sua mão e do vigor de seu braço, dos esforços físicos da entrega a ele do aparelho que a ele em serviço sempre pertenceu. Não faltaram os descendentes de Otto Jerke e seus familiares, em cada instante presentes e colaboradores, especialmente Otto Jerke Filho. (1)
(1) Ver J. TEIXEIRA NETTO, Jornal de Petrópolis de 14.3.86, pág. 4 .
Os trabalhos duraram das 18h15min às 20h45min, momento em que, terminadas as ligações e iluminados os mostradores Norte e Sul (2), os mecanismos secundários se puseram a mover para o ajuste automático com o relógio-mestre às 20h59min.
(2) O mostrador Norte é o que está voltado para a Rua do Imperador e o Sul para a Rua Paulo Barbosa. (Com mais precisão, os mostradores visam respectivamente ao NNW e ao SSE). É interessante observar que a Rua do Imperador corre de Leste para Oeste, no alinhamento muito aproximado de 063 e 243 graus a partir do Norte verdadeiro. Os mapas da cidade em geral indicam orientação pelo Norte magnético.
O Sr. ALZINO PEREIRA DA SILVA, havia colocado a fiação elétrica para a alimentação do sistema inteiro. O Sr. PEDRO NICOLAI emprestou o andaime tubular que permitiu o acesso ao suporte, a partir da marquise, situado aquele cerca de 4,5m acima desta. O Sr. ALCY FILGUEIRAS possibilitou que o Sr. CABRAL efetuasse a operação de transportar o relógio com segurança do solo à marquise, nas proximidades da perigosa rede elétrica. O fotógrafo ROQUE, RICARDO FRANCISCO, CLÓVIS HERALDO THEES, RICARDO ANTONIO E ANDRÉ LEONARDO DE SÁ EARP ajudaram o relojoeiro FERNANDO SOARES RABELO na elevação da caixa à posição definitiva.
Desde então o Relógio da Estação voltou a fornecer à população petropolitana a sua específica notícia sobre o passar do tempo.
Antes deste acontecimento, realizou-se aquela etapa que continha em si os mais profundos e ambiciosos propósitos, síntese da inspiração maior de todo o empreendimento: criar amor à vida humana e ao seu aperfeiçoamento, às obras do saber e da energia do homem, aos meios físicos e de toda espécie que tornaram possíveis a elaboração da experiência dos antepassados e a sua transmissão, tudo isso resumido concretamente no amor à sua terra e ao que aí espiritual e materialmente se acumulou, base para a construção do existir feliz atual e futuro. Tal plasmação de amor era e é o ponto máximo almejado.
Tem-se certeza, contudo, de que a ele só se chega pelo conhecimento do caminho já percorrido pela humanidade, em cada um dos seus múltiplos aspectos. Nisto o valor da História.
Fez-se, como contribuição para o esforço de tornar este conhecimento o mais completo e acessível ao número de pessoas mais amplo possível, a exposição que, incluindo o conjunto integral do relógio, em funcionamento, ocupou o saguão do prédio do Correio de 14 de junho a 26 de agosto de 1985.
A mostra se compôs de quatro quadros de fotografias e de quatro cartazes cercando o relógio, posto no centro do salão em nível bem próximo da observação do público. D. HELENA DE SOUZA COELHO COSTA confeccionou a cobertura do pedestal do instrumento.
No primeiro quadro se reuniram, sob o título “O Relógio e Petrópolis Antiga”, nove fotografias que exibiam a presença do relógio na Rua Dr. Porciúncula ao longo dos anos, desde a instalação (3).
(3) Na Relojoaria Angelo atualmente se encontra, como decoração, uma grande reprodução de excelente postal de Stefan. O Bar e Restaurante Comércio, recentemente remodelado, passou a apresentar em suas paredes ampliação de várias fotografias de Petrópolis antiga, principalmente daquele logradouro.
Importa ressaltar que a pesquisa destas fotografias, e das muitas outras não expostas por limitação de espaço (4), foi o primeiro recurso utilizado para descobrir e confirmar a história do marcador de tempo.
(4) Foram encontradas mais algumas, posteriormente, no acervo fotográfico do Arquivo Histórico do Museu Imperial, por MARIA DE FÁTIMA MORAES ARGON.
O estado de deterioração a que chegou o relógio, por força de incontornáveis circunstâncias, depois de 62 anos, foi demonstrado pelas dezesseis fotos que estiveram no segundo quadro, denominada “As Avarias”.
“A Restauração” foi o terceiro quadro, tratando em quatorze fotografias do desenvolvimento dos magníficos trabalhos especializados de conserto e renovação de todos os componentes do aparelho.
Com o quarto quadro, “O Mecanismo”, revelou-se com ilustração em cinco fotografias o modo de operação do complexo do relógio-mestre e dos secundários, bem como das automáticas correções de atraso ou avanço dos últimos. (5)
(5) Mantém-se registro de todos os ajustes e demais ocorrências, como comparação semanal com a hora oficial fornecida pelo Observatório Nacional, modificações para o horário de verão, etc. … O relógio-mestre é um “relógio elétrico independente” da categoria dos que são “de corda com dispositivo elétrico de carga” (Dias de Mello Pimenta, O Relógio … Sua História). “Os relógios mestre-secundários compreendem sistemas compostos de um relógio central enviando, através de fios, sinais elétricos periódicos para o acionamento de relógios secundários, unificando a hora em todos os relógios ligados ao sistema. As máquinas dos relógios secundários nada mais são que relês eletromagnéticos, cuja função é transformar cada impulso elétrico recebido em avanço mecânico dos ponteiros” (Dias de Mello Pimenta, o Relógio … Sua História, pág. 131).
Dentre os cartazes, o primeiro e o terceiro consignaram o nome dos responsáveis pelos serviços de recuperação (6)
(6) Restauração do mecanismo e dos mostradores: Fernando Soares Rabelo, relojoeiro especialista em pêndula, Rua Bartolomeu Sudré, 21. Restauração da caixa: Francisco Motta e Jonei Jorge Rebello, Oficina Savana Veículos, Av. Albino Siqueira, 543. Corte e furação dos vidros externos e dos mostradores: Allyrio Azevedo Ramos, Comercial Vidrópolis Ltda., Rua Visconde de Bom Retiro, 363-371.
e o dos colaboradores de cada passo do plano e fornecedores (7).
(7) Colaboradores: Otto Jerke Filho, Alberto Moreira Pinto Soares, Lino Angelo Moreira Pinto Soares, José Kopke Fróes, Luiz Antonio Macedo Ewbank, Reinhold Haack, Luís Fernando de Mello Costa, Áurea Maria de Freitas Carvalho, Tânia Lúcia Rezende, Neibe Cristina Machado da Costa, Raul Lopes, Yedda Maria Lobo Xavier da Silva, Márcio Carneiro Garcia, Cirlei Meira Braga, Geraldo Teixeira, Bento Takeuchi, Eugênio Furstenau, Giorgio Zardin, Antonio Cesar Lagoeiro de Oliveira, Vera Maria Muller Taulois, Emanoel Luiz dos Santos Machado. Fornecedores: Metalúrgica União Ltda. (chapas galvanizadas), Rua 13 de Maio, 245. Comercial Vidrópolis Ltda. (vidros), Rua Visconde de Bom Retiro, 363-371.
O segundo apresentou cópia datilográfica do requerimento de instalação, protocolado na Prefeitura Municipal sob o nº 3.359 a 4.9.1922, e dos despachos nele lançados, e cópia de propaganda da Relojoaria e Ourivesaria Suissa publicada em almanaque de 1925 com o símbolo da águia segurando o relógio, tema do suporte e da caixa colocados ao alto da loja da Rua Dr. Porciúncula. No quarto cartaz se prestou uma homenagem a OTTO JERKE, proprietário da relojoaria desde sua fundação em 1912, que importou da Alemanha o relógio e o pôs a serviço do público. (8)
(8) Requereu à Prefeitura Municipal licença para mudar o seu negócio de ourives e relojoaria da rua Sousa Franco nº 35 para a rua Dr. Porciúncula nº 30, a 28 de agosto de 1920, processo nº 4.230, depois de haver requerido licença para pintura interna e externa deste prédio, a 11 do mesmo mês, processo nº 4.037.
Em um mural do saguão afixou-se cópia de escrito sobre dados históricos e os trabalhos de restauração do relógio. (9)
(9) Publicado com pequenas incorreções gráficas na Tribuna de Petrópolis de 23.6.85, segundo caderno, com reprodução de fotos. (Trabalho correlato acima indicado)
A repercussão foi grande e muitas foram as visitas à exposição, entre elas tendo especial valor as de alunos dos cursos iniciais, organizadas e acompanhadas por seus professores. (10)
(10) Tribuna de Petrópolis de 20.6.85, pág. 2. Jornal de Petrópolis de 22.6.85, pág. 3. Jornal de Petrópolis de 23.6.85, pág. 5. Diário de Petrópolis de 25.6.85, pág. 2 . V. também J. TEIXEIRA NETTO, Jornal de Petrópolis de 22.6.85, pág. 2.
Quem sabe não terá surgido naquela oportunidade alguma vocação para relojoeiro, para eletricista, para astrônomo, para fotógrafo, para programador visual, para historiador, para educador, para homem público, para tantas outras possibilidades de atividade humana? A resposta algum dia talvez seja conhecida. Certo é, no entanto, desde logo, que a ocasião obedeceu ao intuito de contribuir para a formação dos melhores homens.
O mistério de tudo o que aconteceu, produzindo o espetáculo renovado do aparecimento daqueles mostradores iluminados a ditar as horas em Petrópolis, reside na conjugação de tantas e tão belas causas que só o muito falar pode tentar explicitá-las. Por enquanto, basta exemplificar com o efeito que é capaz de gerar na alma das pessoas o aprendizado do bem e do belo e da dimensão social do viver humano.
A firme determinação de repor o relógio nas suas mais perfeitas condições foi fruto direto do espírito assim aprimorado de AIDA e EDI RABELO (11), proprietários dele a partir de 1971. E nasceu também na lembrança que se teve do tempo passado, quando, na corrente inesgotável dos passantes pela Rua Dr. Porciúncula, o relógio era alvo de multidão de olhares, uns apressados na iminência do encontro, uns angustiados na confirmação do retardo em que iam, uns esperançosos pelo que ainda sobrava na tentativa de alcançar, uns embevecidos no sonho do que vinha, uns calmos pela certeza do momento, uns conformados pela imutabilidade do instante ultrapassado, uns inseguros na lição de ver as horas, uns sobressaltados pela responsabilidade dos minutos seguintes, uns alegres pelo tanto a construir, uns pensativos pela duração do porvir … Depois, o contraste! A lembrança sofrida dos olhares frustrados, na negativa de resposta dos ponteiros parados. Aquele cultivado amor impeliu, então, irrefreadamente para a aventura de perseguir o milagre da recuperação, por sobre todas as dificuldades, e fez exclamar, em emocionada contemplação quando já retomadas as antigas virtudes de forma e movimento:
“Foram os olhares perdidos
que não deixaram
que te perdesses”. (12)
(11) Ver carta de AIDA RABELO publicada no Jornal de Petrópolis de 11.3.86, pág. 3. Merece por igual ser referida a correspondência dirigida ao Sr. EDI DA SILVA RABELO pela Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal, Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico, datada de 17.4.86, que tem o seguinte texto: “Venho por meio desta felicitá-lo e admirar o belo trabalho por S. Sa. realizado na recuperação e revitalização do “Relógio da Estação”. Contendo um valor comunitário incalculável, sua ação demonstra que as iniciativas dos cidadãos, levadas a cabo com sensibilidade e sentido coletivo, são essenciais para a preservação de nosso patrimônio cultural. Atenciosamente RICARDO FERREIRA VÁRZEA Chefe da Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico.”
(12) 18.3.86