ONDE ESTAVA O POVO QUANDO DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA ?
Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima
Pelo menos desde a antiguidade clássica, o povo tem sido examinado e definido das maneiras mais variadas possíveis.
Imagens originalíssimas foram construídas por espíritos superiores, na tentativa de desvendar os mistérios que animam, o que os gregos chamavam de demos e os latinos de vulgus.
Platão comparava o povo a um grande animal, do qual é preciso conhecer as manhas, para que se saiba como há de ser ele tratado. Se o animal não tiver quem o amanse, tornar-se-á furioso; se não encontrar quem o guie, não saberá por onde caminhar. Torna-se terrível se não tiver medo e, começando a temer, se perturba e foge. Não é capaz de separar as aparências das verdades. Quando se mete a falar em príncipes, confunde coroas e desfigura majestades. De poderoso freio necessita esse grande animal, porque cegamente corre atrás das novidades. Será uma sorte que ele tenha pouco juízo. Afinal, que seria do mundo se ele se governasse a si próprio?
Disse Scipião que o povo é como o mar imóvel por sua natureza, mas conforme os ventos, pode ficar quieto ou proceloso.
Catão afirmava que o povo é como a carneirada e que assim como nenhum carneiro obedece a pessoa alguma, se estão todos juntos, seguem o pastor. Do mesmo modo age o povo.
E houve quem tivesse alvitrado que a multidão das cabeças que compõe o povo é como canas ou espigas de trigo, que não têm outra inclinação que aquela que lhes dão os ventos, ora para um lado, ora para outro.
Há dois séculos e meio, tinha-se o povo de Portugal como insolente; o de Castela, como temerário; o da França, como furioso; o da Alemanha, como precipitado; o da Inglaterra, como atrevido. E o brasileiro?
Bem, este, em meados do século XVIII não passava de mera ficção, de uma nebulosa ignota, de contornos indefinidos e vazia de conteúdo.
Falava-se do pernambucano, tido como orgulhoso; do paulista, cantado em prosa e verso como devassador de sertões; do mineiro, cuja identidade estava no próprio nome.
Mas mesmo assim, esses povos, tomados de per si, não cultivavam uma unidade de pensamento, não tinham objetivos comuns, não pensavam cívica e comunitariamente. Não viam mais que os seus próprios interesses pessoais. Moviam-se por ambições imediatistas, cada um por si, no salve-se quem puder do permanente improviso, da diuturna capacidade de adaptação ao meio e às circunstâncias. Nada de espírito associativo; nenhuma politização; ausência total do pastor capaz de mover os sentimentos do rebanho e de provocar reações deste em face dos crescentes interesses metropolitanos e do sinecurismo burocrático da terra.
Se seguirmos a definição simplista de José Ferreira Landim, de que povo, no sentido político evidentemente, é u’a massa consciente, verificamos que, em pleno século XVIII brasileiro, essa consciência era inexistente.
Não houve povo no movimento mineiro de 1789 e até hoje ignora-se qual o tamanho do Brasil imaginado pelos chefes da conjuração e quais os conceitos geopolíticos que possuíam. Faltou povo em 17 e 24 em Pernambuco.
Em 1859, trinta anos antes da proclamação da república, dizia o redator d’O Parahyba em veemente artigo de fundo vindo a lume na edição de 10 de março do citado jornal:
“Não há vida pública em Petrópolis!
A concentração dos homens na vida individual e doméstica, que é ao mesmo tempo, conforme o dizer de Alexandre Herculano, causa e efeito da decadência dos povos, não merece nem há de ter nunca direito a esse nome.
As relações puramente pessoais que existem entre os homens de Petrópolis, fazem deles conhecidos e não associados.
Não há civismo aqui, há somente, com exceções raríssimas, ambições individuais, que subordinam o bem público ao seu triunfo”.
Mais adiante, frisava o articulista, que é na vida municipal que nasce o espírito cívico, que medra a consciência política dos munícipes, que a sociedade se solidariza em torno de princípios e de objetivos comuns.
É na vida municipal que se forja o cidadão, que se educa o homem para a verdadeira vida pública.
Mas como imaginar-se tudo isso no sistema unitarista do Império, em que os municípios eram sufocados pelo todo provincial e geral, joguetes nas mãos das assembléias de cada província, ao sabor dos interesses dos caciques da administração e da política?
Quem lê com a devida atenção a legislação da época, o que não é muito comum entre os pesquisadores brasileiros, vai ver ali como as assembléias abusavam da prática de suprimir municípios, transferir as suas sedes para outros sítios, desanexar freguesias de uns para incorporá-las a outros, sob os mais pueris pretextos, mas na verdade, por mesquinharias, torpes vinganças ou interesses eleitoreiros, já que as eleições eram eminentemente paroquiais.
Demais, o aplastamento municipal era de tal ordem, que até a heráldica dita geográfica, é da República e não da monarquia, como muita gente boa ainda supõe.
E assim chegou o Brasil ao 15 de novembro de 1889.
O movimento como se sabe foi deflagrado pelo Exército e pela Armada e, em nome destes, foram emitidos os primeiros atos do governo provisório e os decretos, antes que uma nova constituição fosse promulgada e o sistema representativo se instalasse no país.
Os que profunda ou superficialmente trataram do tema, e não são poucos, sempre aludiram ao fato da ausência do povo no instante da proclamação e no imediato desenrolar dos acontecimentos que se lhe seguiram.
Isto, na então capital do Império. Nas províncias, transformadas em estados, a apatia foi muito mais considerável, mesmo a despeito do apreço em que se tinha o velho monarca.
Enfim, o povo não esteve nem contra, nem a favor, muito ao contrário, conforme o chavão já desbotado pelo tempo e pelo uso.
Luis da Câmara Cascudo, em brilhante ensaio sobre o Conde D’Eu, examinando a questão da queda do Império, alvitrou que o Brasil não teve uma nobreza de sangue visceralmente ligada ao trono, ao ponto de sacrificar-se por ele, salvando-o.
O que houve foi uma falsa nobreza e uma outra de aparência, que sempre se moveram por interesses, não importando qual o regime a que se vinculassem.
E se não houve nobre, também não houve povo. É certo que este não trabalha com abstrações, daí por que tanto se lhe dava houvesse no Brasil monarquia ou república. Mas é inegável que a figura veneranda do Imperador era muito querida e respeitada, daí não se entender por que não houve vivalma que saísse às ruas para defender o papai grande, ainda que arriscando a própria vida.
Onde estavam, por exemplo, aqueles mal agradecidos que viviam das pensões que D. Pedro II lhes dava do próprio bolso, a fim de que fossem supridas as suas necessidades mais prementes?
Onde estavam aqueles quantos brasileiros que deviam sua educação ao Imperador?
Onde estavam artistas e intelectuais, muitos dos quais aprimorados na Europa por conta da magnanimidade do monarca?
Onde estavam os que alcançaram a liberdade pela mão do “velho”, da Princesa Imperial Regente e do regime que eles representavam?
Mais feliz foi Napoleão que encontrou quem gritasse “Vive L’Empereur” na sua volta apoteótica da ilha de Elba.
Se não houve quem defendesse o monarca a todo o transe, se não houve réquiem na sua partida para o exílio, também não houve quem sincera e apaixonadamente fizesse declarações de amor à República, cantando-lhe alvíssaras.
O povo, uma vez mais foi o grande ausente dessa memorável transição.
E os bobos de plantão ainda acharam que demos um exemplo ao mundo, por termos destroçado um trono, sem darmos um tiro, sem que se derramasse uma gota de sangue.
Glorificar essas ausências, tão presentes nas transições políticas do mundo, significa a contrario sensu fazer a apologia da inexistência do povo, porque se ele estivesse ali, algo teria acontecido.