PETRÓPOLIS: DE FAZENDA A NÚCLEO URBANO – A CIDADE IMPERIAL EM SUA FORMAÇÃO
Margarida Maria Mendes Pedroso
Arquiteta – Historiadora da Arte e da Arquitetura
Esta palestra baseia-se em um resumo da monografia que apresentei ao programa de pós-graduação em História da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil. Foi desenvolvido com o objetivo de estudar a formação da cidade de Petrópolis tanto sob o ponto de vista de seu traçado urbano, como através de alguns de seus principais símbolos arquitetônicos, escolhidos entre tantos outros, o Palácio Imperial, atual Museu Imperial, a catedral neogótica São Pedro de Alcântara e o Palácio de Cristal. Para isso, como se sabe ser fundamental, foram levados em conta aspectos do contexto histórico-cultural. Como traço catalisador deste momento, o pensamento neoclássico.
Petrópolis decorre, portanto, de um feliz encontro de três construções: a construção urbana, a das edificações propriamente ditas e a de um novo pensamento viabilizador de todo este processo.
O tema Petrópolis nos mostra que estamos habituados a ter uma visão às vezes simplista em relação àquilo que nos rodeia e nos é familiar, deixando de lado a instigante curiosidade de um primeiro olhar. Aquilo que faz parte de nós e de nossas raízes, apesar de amarmos intrinsecamente, nos está tão entranhado que nos parece óbvio, e não percebemos sua singularidade. Assim tem sido com a cidade de Petrópolis. Quando algum interesse há sobre ela, é mais em relação à história política do país do que à cidade em si, muitas vezes esquecida. Petrópolis tem sido pouco mais do que um nome entre tantos outros registrados no mapa do Brasil. E, não deveria ser assim. Dona de uma singularidade absoluta, a cidade reúne uma série de peculiaridades da mais alta importância na formação da história brasileira a partir do segundo império. Não fosse isso suficiente, é especialíssima também em sua formação urbana . Foi gestada por D.Pedro I, que comprou suas terras em 1830 já com a clara intenção de ali construir um Palácio de verão. Surgiu efetivamente através de um adolescente que, sob a inspiração de seu mordomo e indo contra a vontade de seus contemporâneos, resolveu abraçar o sonho do pai já falecido e viabilizá-lo: o jovem imperador Pedro II , então com 18 anos.
Petrópolis nasceu no século XIX com um traçado definido, que fugia da influência francesa da época, tornando-se singular também neste aspecto. Foi o local favorito da Corte Imperial, tendo aqui o imperador passado quarenta verões em estadias que se prolongavam, às vezes, durante seis meses. Foi capital federal de 1894 a 1903, e residência de verão de diversos presidentes da república. Sua importância política é inegável, no entanto, sua importância formal enquanto espaço urbano e arquitetônico tem sido invisível.
Foi somente no início dos anos 1700 que a subida para a Serra do Mar ao fundo da baía de Guanabara foi vencida através da criação do Caminho Novo. Já a ocupação das terras na atual região do entorno de Petrópolis, mais precisamente em Correias, se dá em janeiro de 1760, em carta que concede por sesmaria as terras a Manuel Antunes Goulão, avô do Padre Antônio Tomás de Aquino Correia.
Esta fazenda se tornaria famosa algumas décadas depois como modelo e referência de produção agrícola local. O inglês John Mawe , em sua obra Travels in the interior of Brazil , declara ” ter sido muito bem recebido pelo padre, percorrendo seu jardim cuidado com esmero, repleto de pessegueiros em flor ” [1]. De forma semelhante, o botânico francês Augusto de Saint-Hilaire, declarou-se impressionado por “lhe haverem assegurado que o padre auferia bom dinheiro com os cravos e outras flores que remetia para o mercado do Rio de Janeiro e, naquela quadra do ano, com os pêssegos que ele mandava todas as semanas para o Porto da Estrela” [2]. A residência do padre Correia era ponto de parada obrigatória de viajantes ilustres. Foi por esta razão que lá se hospedou D. Pedro I, em março de 1822, a caminho para Minas Gerais, onde iria tentar atuar como moderador do tenso momento político que então se formava.
[1] DUNLOP, Charles J. Petrópolis Antigamente . Rio de Janeiro, edição do autor, 1985. p.9
[2] Idem.
Alguns anos mais tarde, em 1830, a fazenda dos Correia é escolhida para abrigar a família real por completo. Desta vez a razão da visita foi a princesa Paula Mariana, filha do imperador, que por encontrar-se doente necessitava de uma mudança de ares a conselho médico. Desde esta época, portanto, a região de Correias já era conhecida pela excelência de seu clima. Encantado com o local, D. Pedro I tenta comprar esta fazenda, o que lhe foi negado pelos proprietários que alegaram não poder negociá-la por uma questão de promessa familiar. De volta ao Rio de Janeiro o imperador passa pela Fazenda do Córrego Seco, vizinha à dos Correia e resolve adquiri-la, já com a intenção de aqui construir um palácio de verão. As terras estendiam-se do alto da serra até o Quissamã.
Era uma região ainda selvagem onde “existia apenas uma casa ordinária de moradia, dois ranchos para pernoite das tropas, e duas pequenas oficinas de ferraria, principal indústria do seu então proprietário, o Major José Vieira Afonso. Esta fazenda que passou a pertencer ao domínio particular do Imperador D. Pedro I coube por herança a S. M. o Imperador o senhor D. Pedro II. Durante alguns anos ela foi arrendada a diversos.” [3]
[3] Tinoco, J. Guia de Viagem – 1885 .Rio de Janeiro. in: Cidade de Petrópolis : Reedição de Quatro Obras Raras – 1957 . Anuário do Museu Imperial 1995 – Edição Comemorativa, p.217.
Mas, anteriormente, desde a época da vinda de D. João VI para o Brasil uma série de mudanças vinha acontecendo, entre elas a tentativa de estabelecer por aqui os estrangeiros através da doação de sesmarias, na intenção tanto de proporcionar um aumento da população, e portanto da ocupação de nosso território, quanto na de introduzir uma qualidade diferenciada à mão-de-obra de nossa lavoura.
Como providências governamentais a serem destacadas, um decreto em 1818 autoriza a melhoria da estrada da Serra da Estrela, e em 1839 uma lei provincial orçamentária permite contratar os serviços de colonos alemães que já estavam estabelecidos no Brasil. Enfim, diversas iniciativas somam-se levando a surgir em maio de 1840 a Lei da Colonização, o que passa a oficializar a vinda de imigrantes. Estava consolidado o caminho para a colônia que se instalaria em Petrópolis poucos anos depois.
Após serem sanadas algumas importantes pendências financeiras em relação à fazenda do Córrego Seco, o mordomo da casa imperial, Paulo Barbosa, apresenta um plano para a ocupação destas terras.
A 16 de março de 1843 a fazenda do Córrego Seco é arrendada através de decreto ao major Julio Frederico Koeler. A idéia de se construir a cidade havia ganhado impulso.
No ano seguinte, em 1844, foram contratados através da casa Carlos Delrue, negociante em Dunquerque, 600 casais de colonos alemães que viriam para executar o projeto que o engenheiro havia feito para a estrada Normal da Estrela. Mas, o número de alemães que chega ao porto do Rio de Janeiro é de 2030, bem maior que o esperado. Diante do imprevisto, D. Pedro II oferece suas terras no Córrego Seco para que pudessem se estabelecer.
Em 29 de junho de 1845, data da chegada destes imigrantes ao local da futura cidade de Petrópolis, é fundada a colônia alemã. As antigas florestas que existiam na região foram divididas em lotes que através de contrato se tornaram patrimônio da população recém-chegada.
Em maio de 1846, a colônia é elevada à categoria de freguesia sob a invocação de São Pedro de Alcântara. Este fato é extremamente relevante: o curto período de tempo de somente onze meses como colônia, e sua rápida elevação à freguesia, dá a dimensão da importância que a localidade adquirira.
Em 1857 é elevada à categoria de cidade.
Para uma melhor compreensão deste fato, não se pode deixar de mencionar aqui características da formação urbana de Petrópolis em relação a outras localidades no Brasil.
A maior parte de nossas cidades resulta da implementação de fatores ligados aos ciclos econômicos, notadamente do açúcar, do ouro e mais tarde do café. Em menor número, existem aquelas provenientes de aldeamentos indígenas, ou ainda as que se formaram em função de questões político-estratégicas inerentes à Metrópole, como é o caso do Rio de Janeiro e de Salvador. Se voltarmos nosso olhar para a questão da população brasileira, observamos, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, que “toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos” [4]. Esta talvez tenha sido a razão das localidades no Brasil terem tido normalmente um ritmo lento de crescimento, iniciando-se como aldeia, e passando por sucessivas classificações até chegar à condição de vila, quando era o caso, o que distinguia o local como sendo de grande importância. Estas categorias eram estabelecidas pela Metrópole de acordo com seus próprios interesses e sempre, de uma forma direta ou não, atendendo à demanda dos países europeus por nossos produtos. Uma vez recebida a denominação de cidade, a mais alta destas classificações, a localidade passava a usufruir de toda uma série de privilégios, recursos e questões político-administrativas inerentes à sua elevada posição.
[4] HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil, Brasília, 1963, p.57.
A cidade de Pedro, singular desde sua formação, se faz de um momento para o outro revertendo assim e neste caso, a situação da formação da estrutura social do Brasil, que mais comumente se dava fora dos meios urbanos, na área rural. Além disso, sua criação não mais visava a atender à “uma acumulação de capital no espaço europeu” [5], característica quase unânime aos núcleos urbanos brasileiros. Sem estar atrelada economicamente às áreas rurais, Petrópolis vai iniciar por si um processo de implantação e desenvolvimento de suas indústrias, numa tentativa de criar e gerir capital.
[5] SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. Da Colonização à Europa Possível, as Dimensões da Contradição in: Uma cidade em questão. Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro, PUC-RJ, 1979. p.23.
Decorre daí que desde o início da cidade há a criação de uma variada gama de prestação de serviços, entre outros, o setor de hospedagem com a fundação dos hotéis Bragança (1848) e Suíço (1847) , e Inglez (1849) .
Quanto à questão agrícola, que era tradição brasileira, assim que mostrou-se incompatível com o solo do local, foram iniciadas alguns tipos de atividades industrias caseiras, como as ligadas ao fazer biscoitos e aos trabalhos com ferro. E foram tão acertadas que ambas persistem até hoje na cidade ajudando a caracterizá-la como ponto turístico.
As fábricas têxteis e as cervejarias destacavam-se tentando criar um mercado para a mão-de-obra assalariada num país ainda de forte tradição escravagista, reforçando a tentativa de se incrementar um novo momento econômico no Brasil.
Desta forma, ainda que não houvesse no país um mercado consumidor capaz de sustentar um forte processo industrial como o que ocorreu na Europa, criou-se uma relação econômica que tentava fugir da tradicional ligação entre campo e cidade brasileiros, deixando Petrópolis com uma função de destaque no início de nosso processo industrial.
Para ilustrar este momento que tanto nos influenciou, segue um panorama do contexto internacional.
Nesta época, na Europa, a Revolução Industrial já acontecia em estado avançado, o que trouxe a perda de poder por parte da nobreza, da Igreja e do Estado favorecendo a ascensão da burguesia. Era o Antigo Regime como um todo que havia entrado em crise, tendo sido sufocado pelo processo de passagem e de fortalecimento do capitalismo industrial.
Como conseqüência inicia-se uma nova articulação entre economia e sociedade, e dela decorrem desdobramentos. Em termos artísticos, há uma cisão nas antigas relações de demanda da Igreja, mesmo que ainda fosse ela a responsável por dar unidade às diversas tendências que se manifestavam. As artes passam a expressar-se também na vida civil, em diversas áreas, como na música e em especial na literatura e pintura. Na arquitetura aparece então, em meados do século XVIII, o neoclassicismo como uma primeira reação aos momentos imediatamente anteriores, o barroco e o rococó. O neoclassicismo baseava-se em novos conhecimentos técnicos, assim como em pesquisas históricas e arqueológicas e em raciocínios teóricos.
Uma nova relação entre campo e cidade aparece como conseqüência dos deslocamentos e transportes que faziam a ligação com os núcleos industriais, e exige, no final do século XIX, reformulações em centros urbanos da Europa. Surge a “idéia de que a cidade , não sendo mais patrimônio do clero e das grandes famílias, mas instrumento pelo qual uma sociedade se realiza e expressa seu ideal de progresso deve ter um asseio e um aspecto racionais” [6]. Atendendo a estas necessidades forma-se uma nova ciência, a urbanística, como uma tentativa de adequação do espaço urbano à sociedade em transformação.Os problemas provenientes das rápidas mudanças econômicas, sociais e tecnológicas exigem que se dê nova solução ao dia a dia das cidades. Em termos práticos, a vida mudara radicalmente.
[6] ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna. Companhia das Letras, São Paulo, 2001. p.22.
Era preciso então para o homem do século XIX encontrar um sustentáculo para aquele momento de crescimento, um suporte que lhe servisse de instrumento psicológico com o qual pudesse organizar sua compreensão do mundo que surgia. É ao tentar uma nova leitura para este momento que surge o elo de ligação com o Renascimento. O ponto em comum estava na busca das artes clássicas como referência, mas, sua necessidade mais urgente era a de se encontrar um novo paradigma de pensamento.
O homem renascentista, que neste momento serve de modelo para o homem neoclássico do século XIX, havia se colocado no centro do universo e passado a proporcionalizar o espaço à sua volta numa nova visão de mundo, que lhe permitia organizar tanto o espaço visível e físico, quanto aquele de seu pensamento. A matemática, os numerosos tratados que foram escritos e o desenho em perspectiva foram alguns dos instrumentos, abstratos, que viabilizaram sua forma de expressão. A busca da beleza e da perfeição foi seu objetivo, e a arte, a sua expressão maior.
A racionalidade aqui, portanto, não aparece como algo restritivo ou limitador, mas sim como o veículo que permitiu ao homem renascentista uma explosão cultural até então desconhecida.
Com vistas a resolver as questões dos anos 1800, ainda de alguma maneira influenciadas pelo pensamento barroco do momento anterior, aparece a harmonia e o equilíbrio do mundo greco-romano, ao qual tinha-se chegado pelo viés do Renascimento. Assim, a racionalidade do Mundo Antigo retorna como uma referência civilizadora capaz de superar os impasses daquele processo de crescimento.
Talvez possamos olhar para estes anos de passagem e de mudança de vida do século XVIII para o século XIX, e que em termos artísticos só se finaliza com a chegada da arquitetura moderna no século XX, como um único sistema [7]. A meu ver, existe uma forma de pensamento que agrega em seu conjunto as diversas janelas que foram abertas na passagem do século XVIII para XIX , quais sejam, tendências e estilos que surgem de modo pulverizado, começando pelo neoclássico, seguido do neogótico, romântico, e outros. O sistema foi criado às custas da enorme pressão proveniente das mudanças técnicas e econômicas ocorridas, que por sua vez, como num ponto de virada, encerraram um ciclo de cerca de 19 séculos onde a Igreja e a nobreza eram o epicentro e a única referência.
[7] Sistema aqui no sentido de forma de pensamento.
Desta forma, a dificuldade para apreendermos estes diversos movimentos artísticos que se iniciam com a Revolução Industrial e a ultrapassam, ganham uma visão de conjunto, a de um sistema de expressão, cujas janelas de tendências podem ou não se comunicar em rede criando outros desdobramentos. Esta é uma leitura que faço para este momento, a ser mais tarde aprofundada em busca de seus embasamentos teóricos.
Quanto à arquitetura, ela aparece como resposta àquelas necessidades que se faziam urgentes. Suas formas vêm para atender a uma função. Na medida em que ela foi criada – ou buscada – nos mostra também toda sua racionalidade.
É este contexto que chega ao Brasil de Pedro II, e que foi manifestado ao longo de todo o seu governo, especialmente com a criação de sua cidade. O neoclassicismo, particularmente, foi de fundamental utilidade para o papel exercido pela arte a serviço do sistema monárquico e da própria nação, e como cita o escritor Mário Barata “indicava a vigência de uma nova organização do mundo, decorrente dos ideais democráticos da revolução francesa e ao mesmo tempo configurava-se na imagem de um novo Brasil “[8].
[8] BARATA, Mario. “ As artes plásticas de 1808 a 1889 ” in : Holanda, Sérgio Buarque de ( org. ) História Geral da Civilização Brasileira. S. Paulo, Difel , 1982. Tomo II p.409.
Se na Europa o neoclassicismo surge abrindo uma resposta para novos valores de uma classe burguesa emergente, no Brasil a monarquia apropria-se dele para sua representação.
Este era o momento do império no Brasil onde a arquitetura e a arte se mesclavam na intenção de criar novos códigos de valores. E, este novo código é sustentado por um espaço sempre presente, tanto na Europa quanto aqui, que indicava subliminarmente o caminho a seguir, num novo sistema de pensamento que acabava de ser aberto, livre agora do jugo da Igreja e da nobreza.
Assim, torna-se de fundamental importância para qualquer arte neoclássica o pensar a priori, a ideação e o projeto, como nos ensina Argan.
A criação da cidade de Petrópolis, assim como o plano do major Koeler, são partes integrantes deste processo.
Foi neste contexto de pensamento, chamado de racionalidade, que nasceu Pedro II, e com ele geriu nosso país. Podemos encontrar diversas expressões deste processo ao longo da criação de Petrópolis, e entre as que mais se destacam está a criação de seu plano. O major Julio Frederico Koeler era um engenheiro experiente quando formulou suas idéias para a nova cidade a convite do imperador. Sua fé de ofício mostra uma grande capacidade de trabalho, não nos deixando dúvidas quanto a ser um homem de ação.
O plano para a cidade é claramente uma conseqüência direta do minucioso levantamento topográfico que o engenheiro fez para a região. Aqui os rios ainda que pequenos, são muito numerosos, tendo sido a cidade traçada acompanhando o curso de três dos principais deles: Piabanha, Quitandinha e Palatino (anteriormente denominado Córrego Seco) [9]. Decorre daí o traçado orgânico-tentacular que a personaliza.
[9] Os rios Quitandinha e Palatino encontram-se no centro da cidade, sob o atual Obelisco situado na Praça D. Pedro, seguem com a denominação de Quitandinha e deságuam no Piabanha próximo ao Palácio de Cristal.
Numa feliz união entre racionalidade e sensibilidade o engenheiro implanta a cidade nos vales com ruas e avenidas margeando os rios, situação inovadora para uma época em que, como consenso geral advindo de nossa colonização portuguesa, os rios limitavam os fundos dos quintais das residências. Ao inovar colocando-os na sua frente, o major Koeler os introduz como um complemento determinante da arquitetura urbana. O primeiro plano da cidade portanto, datado ainda da primeira metade do século XIX, já levava em conta a questão do meio ambiente, e a solucionava através do aspecto formal de implantação da cidade.
Ao mesmo tempo em que se abriam suas primeiras ruas, acontecia a canalização de rios, como a do Córrego da Garganta que supria a Vila Imperial . Como não se poderia atender a todos “com abastecimento de água e esgoto, Koeler limitou a construção de fundo de terreno, significando que, quando o esgoto de água servida atingisse por infiltração os fundos dos lotes onde se situavam os poços, a água já se encontrava em situação potável [10]”.
[10] Cascatinha : Recuperação, Revitalização. SECDREM / FUNDREM, R.J. 1986. p.21.
O plano por si só demonstra também a importância que a urbanística como nova ciência adquirira. O projeto de Koeler se faz na intenção de ser um sistema capaz de agregar qualidade de vida à cidade, seja por seu saneamento e pela canalização de suas águas, seja pelo zoneamento implantado pelo engenheiro. Foi desenhado numa única planta geral, onde estão representados os rios e seus afluentes, ruas, praças, estradas, quarteirões [11] com seus lotes de terra destinados aos colonos, e áreas reservadas aos edifícios públicos e religiosos, onde existem claras indicações de zoneamento e hierarquização do sistema viário.
[11] Quarteirão no plano Koeler aproxima-se da idéia de bairro.
Hierarquias, setores, questões de abastecimento e saneamento, enfim, o plano Koeler parece deixar explícito sua preocupação em levar em conta também o contexto social e econômico daquele momento. O engenheiro define três classes de prazos para a implantação da cidade. A terceira seria composta pelos mais periféricos e afastados do núcleo da povoação. A segunda classe seria formada por prazos organizados em quarteirões, destinados essencialmente aos colonos germânicos, e que, junto com a primeira classe, a da Vila Imperial, formariam o núcleo urbano propriamente dito.
A cidade desde seu início foi regulada por um planejamento que tinha como móvel ideológico hierarquizar e organizar o espaço de modo tanto a viabilizar a cidade, quanto a de representar simbolicamente a monarquia.
Seu eixo inicial se dá a partir da residência do monarca, de onde se lançam suas duas primeiras ruas, a do Imperador e a da Imperatriz. Tendo o Palácio como ponto irradiador, Petrópolis é desenvolvida do centro para a periferia, estando neste aspecto em concordância com a maior parte das cidades brasileiras que normalmente têm este tipo de expansão. A diferença aqui é que isto parte do plano inicial do engenheiro.
Numa leitura feita por Edna Morley (2001) [12], esta irradiação do centro para a periferia fica mais clara quando a escritora demarca três círculos concêntricos sobre o espaço urbano da cidade, em que o primeiro corresponde ao Palácio Imperial e suas dependências, o segundo seria a própria Vila Imperial cujos lotes eram concedidos somente a foreiros escolhidos entre aqueles que tinham alguma ligação com o ambiente do imperador. Para garantir a qualidade de moradia neste segundo círculo, era admitido comércio e serviços de alto padrão, como teatros, cassinos, lojas de produtos importados, e hotéis de luxo. No terceiro e último círculo de Morley, estão situados os quarteirões dos colonos alemães, todo tipo de serviço e algumas indústrias domésticas.
[12] Citada no INB / SU Formulário Geral do Sítio Urbano – Petrópolis.2005 / IPHAN – RJ .
Ao se comparar a classificação feita pelo major com a análise da referida escritora, percebe-se suas semelhanças e diferenças. O plano de Koeler define três classes “concêntricas” de acordo com as dimensões dos prazos, localizações, e o pagamento de foro. Suas duas classes periféricas pertenciam aos colonos e a classe interna, à Vila Imperial. O palácio não consta da classificação do engenheiro por não recolher foro perpétuo. Já os círculos de Edna, que mantém as classificações em número de três, as organiza de acordo com a implantação física dos lotes na cidade. Desta forma, o palácio torna-se o epicentro de sua classificação.
O engenheiro não pode acompanhar a implantação de seu plano devido à sua morte prematura ocorrida em 1847. Eram anos em que o crescimento da cidade começava a ganhar vigor. A rua do Imperador que desde seu início tornou-se a principal da cidade caracterizava-se cada vez mais pela implantação de diversas edificações, tanto comerciais e de serviços quanto político-administrativas.
O fato do monarca passar quase a metade do ano em Petrópolis garantia um movimento turístico diferenciado à cidade dando-lhe prestígio, e a certeza por parte daqueles que a utilizavam, de uma proximidade senão com o próprio monarca, ao menos com as pessoas que o cercavam.
Atendendo ao rápido crescimento urbano da cidade, em 1854 Otto Reimarus faz uma série de modificações na planta inicial de Koeler. Todo o partido adotado pelo major foi respeitado mas, abriram-se novas ruas e travessas. Como exemplo destas modificações a atual avenida Koeler, à época denominada D. Afonso, que no plano inicial atravessava a praça da Liberdade, teve seu tamanho encurtado.
Ao longo do desenvolvimento desta monografia encontramos diferentes opiniões e críticas em relação ao plano de Koeler. Entre elas, algumas o consideram muito rígido e rigoroso, principalmente por ter o tamanho de seus lotes padronizados. Esta rigidez teria sido a razão das modificações ocorridas poucos anos depois de sua criação, com Reimarus, em 1854. Posturas críticas incidem também sobre a questão da produção agrícola que foi prevista e que logo de início mostrou-se inviável. Alguns vêem nisso um equívoco do plano.
Em nossa opinião, a agricultura era uma tentativa que não poderia ser descartada, já que figurava de qualquer hipótese de cidade naquele momento e, corroborava com a tradição rural brasileira. O que, ao contrário, talvez possa ser exaltado é a versatilidade e a rápida adaptação tanto por parte dos colonos quanto da cidade àquela realidade inesperada, qual seja a de quando o solo mostrou-se difícil para o plantio, voltaram-se quase que de imediato para a indústria, inclusive a caseira, numa atitude de desenvoltura no mínimo criativa para o padrão brasileiro, ainda que o fizessem por necessidade.
Se observarmos a facilidade com que o plano de Koeler absorveu as alterações feitas por Otto Reimarus sem desfigurar seu partido, talvez possamos levar em conta que ele teve sua flexibilidade, e que estas modificações foram na realidade, adaptações provenientes da própria natureza de um projeto urbanístico.
Duas grandes discussões podem ser abertas em torno do plano de Koeler. A primeira delas busca saber se ele corresponde a um traçado urbano ou a um plano urbanístico. Esta é uma questão conceitual de importância, uma vez que dela podem derivar-se classificações que só ocorreriam academicamente algumas décadas mais tarde, com a criação do urbanismo como ciência.
A segunda questão tenta perceber os vínculos e influências que o plano recebe através de sua ligação com teorias do planejamento.
Petrópolis foi criada, como já dito, num período correspondente ao nascimento do planejamento urbano na Europa. Segundo o escritor Leonardo Benévolo isto se dá entre 1830 e 1850, e surge da necessidade de se resolver os problemas mais imediatos da cidade, sendo o principal deles a higiene. Este período corresponde também àquele em que as experiências técnicas são estimuladas pelo novo momento político que era vivido na Europa.
Ainda em termos cronológicos e em relação à primeira questão, encontramos nos estudos Argan que:
“A disciplina que estuda a cidade e planeja seu desenvolvimento, o urbanismo, formou-se nos séculos XIX e XX ; como ciência moderna, resultante da convergência entre diversas disciplinas (sociologia, economia, arquitetura), não deve ser confundida com a antiga arquitetura urbana. Ela nasceu da necessidade de enfrentar metodicamente os graves problemas determinados pela modificação do fenômeno urbano, devido à Revolução Industrial, e pela conseqüente transformação da estrutura social, da economia e do modo de vida” [13].
[13] ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna. Companhia das Letras, São Paulo, 2001, p.185.
A data inicial do planejamento como ciência, portanto, não encontra um consenso entre estes dois escritores. O que é certo é que tentando adaptar a cidade às exigências da nova sociedade, a urbanística aparece como a “racionalização dos espaços urbanos, a especialização dos setores urbanos e o processo crescente de suburbanização” [14]. Ela nasce então, como algo implantado sobre um espaço já construído, o que acarreta dificuldades em sua execução em função da grande velocidade do aumento populacional que transformava o centro urbano rapidamente criando um ritmo de crescimento difícil de ser acompanhado.
[14] Citada no INB / SU Formulário Geral do Sítio Urbano – Petrópolis.2005 / IPHAN – RJ .
Neste aspecto, o caso de Petrópolis se dá de uma maneira inversa já que a cidade é criada a partir de um raciocínio abstrato onde nada há a ser corrigido.
Destacamos a seguir algumas das principais características do plano no intuito de levantar questões quanto a classificá-lo ou não como um verdadeiro plano urbanístico. São elas :
1. O plano Koeler previa a forma de ocupação e de uso do solo urbano.
2. Locais como o da catedral e o do cemitério, além do palácio, evidentemente, já estavam pré-definidos.
3. Há a intenção de organizar setores de atividades econômicas e de serviços como maneira de viabilizar a cidade.
4. Existe uma divisão em prazos hieraquizados onde a importância dos lotes diminui à medida que se afastam do centro.
5. As três classes de prazos tinham características determinadas quanto ao tamanho, a existência ou não de afastamentos, detalhes construtivos em relação à fachada,ajardinamento frontal, entre outras determinações.
6. A organização dos prazos pode estar associada a uma análise feita através da representação de círculos concêntricos, não se tratando exatamente de círculos geométricos, mas de círculos “orgânicos” .
7. Havia regras quanto à implantação das construções nos terrenos à semelhança de um atual código de obras.
8. A preocupação com abastecimento e saneamento que a caracterizou desde seu início.
9. O plano já nasce acompanhado de regulamentos quanto a seus foros, enfiteuse e laudêmio.
Parece ser claro que seu produto final enquanto plano apresentado não se restringe a um traçado urbano. Certamente é por estas questões que o projeto de Koeler é apontado por alguns escritores como sendo o primeiro plano urbanístico a ser implantado em seu conjunto no Brasil, sobre uma área ainda não construída.
Quanto às influências que o plano recebe através de sua ligação com teorias do planejamento, algumas podem ser destacadas.
Na obra de Françoise Choay, Urbanismo, a autora faz uma classificação de modelos pré-urbanistas, denominados culturalista e progressista para analisar a formação das cidades. O modelo progressista, baseado na filosofia iluminista de onde deriva o neoclassicismo, tem seu espaço racionalizado, determinando zonas e funções de forma a conseguir o máximo de seu desempenho urbano. Já o culturalista possui concepção ideológica, e, como bem expressa sua denominação, é ligado à cultura, tendo traçado irregular e assimétrico.
Para o arquiteto Luis Antônio de Souza, do IHP [15], em seu estudo “Considerações sobre o plano Koeler”, Petrópolis estaria mais próxima do modelo culturalista, “orgânico”.
[15] SOUZA, Luiz Antônio Alves de. Considerações sobre o Plano Koeler, in :150 Anos da Colonização Alemã em Petrópolis. UCP / Instituto Histórico de Petrópolis. 1995.
Outras análises podem ser feitas na tentativa de encontrar o modelo de planejamento que pode estar associado à cidade e entre elas há a clássica distinção entre o semeador e o ladrilhador, de Sérgio Buarque de Holanda [16]. O autor, assim como Max Weber, vê as cidades como instrumento de dominação, e as diferencia entre as de colonização espanhola e as de colonização portuguesa. As primeiras possuem um traçado geométrico, em tabuleiro de xadrez, e as segundas representam uma certa frouxidão demonstrando um crescimento orgânico.
[16] O Semeador e o Ladrilhador in: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo. Companhia das Letras, 1995, p.93.
A nosso ver, o tipo de urbanismo que foi implantado por Koeler talvez seja melhor interpretado como não tendo seguido à risca nenhuma das principais classificações de planejamento. Não se enquadra no tradicional modelo português para as nossas cidades; não tendo traçado regular nem informalidade, corresponderia a uma terceira classificação – hipotética – em relação ao semeador e ao ladrilhador de Sérgio Buarque de Holanda. Da mesma forma, ainda que se aproxime do modelo culturalista, não o representa plenamente. Não se parece também com o planejamento franco-americano de Washington nos Estados Unidos, com o urbanismo neoclássico de Ledoux e nem mesmo com as realizações urbanas da época de Napoleão, como nos lembra Gustavo Rocha-Peixoto [17].
[17] ROCHA-PEIXOTO, Gustavo.Arquitetos do Brasil Imperial. Tese de Doutorado em História Social, UFRJ. 2004.
O plano parece aproximar-se do conceito de arcadismo arquitetônico com o qual o autor acima citado procura caracterizar, em sua tese de doutorado, as residências imperiais. Segundo ele, “uma conciliação romântica de vida na fronteira de dois universos” (…), “na divisa ideal entre dois mundos em oposição : a cidade e o campo.” Assim, de um lado estaria “a civilização urbana, dinâmica e progressista ( … ) da Europa Industrial e de outro, aquilo que nos remete à natureza sublime dos sonhos arcádicos (…) haurida da natureza “[18]. “É da tentativa de união de dois pólos opostos que Rocha-Peixoto tece seu conceito, num tipo de olhar que talvez possa ser transposto para o plano da cidade de Petrópolis, na medida em que aqui também há a intenção de unir dois aspectos diferentes, um racional e um orgânico.
[18] Idem.
Para finalizar esta síntese da análise do plano, ainda que as idéias do major Koeler fossem certamente produto de diversas influências da época, há nelas uma singularidade, ou algo de híbrido em seu projeto enquanto produto final. Ele implanta uma forma racional de organização espacial sobre um aspecto orgânico adaptado à topografia local de onde brotam seus traços iniciais. Esta união pode ser considerada diferenciada se observada a realidade daquela primeira metade do século XIX. Partindo de premissas e concepções as mais modernas de seu tempo, o engenheiro cria uma adaptação que talvez seja inovadora. Parece que Koeler construiu algo próprio: uma nova forma de pensar a construção de uma cidade.
Quanto às edificações inseridas neste contexto, apresentamos as principais características de três delas – os dois Palácios e a Catedral. Estas edificações, apesar de possuírem estilos diferentes, tiveram uma mesma função ao representar a monarquia.
Nas palavras de Alcindo Sodré “Petrópolis nasceu com a construção do Palácio Imperial”. Como já foi dito, como polo irradiador, este era símbolo de hierarquia do monarca, sua representação mais clara, tendo sido também a primeira construção projetada especificamente para a residência de um chefe de estado no Brasil, assim permanecendo até a construção de Brasília.
Em suas vizinhanças, ficavam as residências nobres, os edifícios públicos e os comerciais de alto padrão. É também da época da criação da cidade além do Palácio Imperial e de sua primeira igreja, Igreja da Matriz [19], a Estrada Normal da Serra da Estrela que foi construída paralelamente pelos colonos alemães, como já citado. A catedral São Pedro de Alcântara que pertence ao plano Koeler enquanto implantação no tecido urbano, só teve seu projeto definitivo bem mais tarde, em 1883, com construção iniciada em 1884, mesmo ano em que foi levantado o Palácio de Cristal.
[19] Localizava-se em uma região próxima ao palácio, e foi demolida em 1924.
Note-se que os dois palácios da cidade têm funções absolutamente distintas. Enquanto o Palácio Imperial visava atender à corte, como tradicionalmente são utilizados estes tipos de construções, o Palácio de Cristal destinava-se exclusivamente a exposições hortículas tendo, talvez, na arquitetura sua função maior, aquela de representar a modernidade na serra brasileira ainda durante século XIX.
Estas três edificações são hoje as de presença mais forte na cidade, seja como marcos simbólicos do império, seja como referências arquitetônicas ou artísticas na rica representação iconográfica de Petrópolis, por isso foram aqui selecionados.
O Palácio Imperial tem sua entrada principal localizada ao centro do primeiro plano possuindo um pórtico em granito que divide o corpo do edifício entre duas alas. Neste plano de acesso o estilo de sua arquitetura é jônico. O pavimento superior, menor em área construída e centralizado em relação ao plano inferior, tem seu estilo arquitetônico coríntio. O projeto da fachada é de Koeler, mas a frontaria é do arquiteto italiano Bonini.
Os arquitetos responsáveis pela construção do palácio, assim como de outras obras da cidade tratavam-se em sua maioria de uma geração que estudou na Academia Imperial entre 1826 e 1855 [20]. Corresponde a uma fase acadêmica de nossa arquitetura, predominantemente neoclássica.
[20] ROCHA-PEIXOTO, Gustavo. Arquitetos do Brasil Imperial. Tese de Doutorado em História Social UFRJ. 2004. p.339.
A construção do Palácio foi iniciada em 18 de julho de 1845, e teve como mestre de obras o português Manoel de Almeida. Koeler só executou a ala direita da edificação. Sua morte prematura fez com que os trabalhos fossem continuados por outros arquitetos, entre eles José Alexandre Ribeiro Cirne, Joaquim Cândido Guillobel, José Maria Jacinto Rebello e Manuel de Araújo Porto-Alegre, o barão de Santo Ângelo. Quanto à sua execução, houve também a participação de diversos colonos germânicos recém-chegados ao Brasil e que eram artífices em construção. Os jardins do palácio só seriam executados nove anos depois por Jean Baptiste Binot [21].
[21]SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. Companhia das Letras , SP. 1998. p. 236.
Segue interessante descrição da residência do imperador :
“Sólida construção, esteios de madeira de lei; o saguão de entrada impressionava com seu piso preto e branco em mármore belga e de Carrara, tendo ao fundo duas colunas gregas. Madeiras, as melhores da terra, nos assoalhos desenhados, portas, esquadrias, janelas: cedro, jacarandá, peroba, pau-cetim e pequiá-rosa. Ferragens de qualidade.Tetos de estuque elaborados, ricos em motivos e símbolos (…) “[22].
[22] Idem.
A edificação traz diretamente as marcas do gosto e principalmente do temperamento do monarca: a ele coube sua localização atual na várzea, próxima à confluência dos rios Quitandinha e Palatino e inserido no tecido urbano. O local escolhido primeiramente por Koeler, como nos diz Rocha-Peixoto, situava-se sobre uma colina denominada monte de Santa Cruz, era mais nobre no sentido europeu de sua implantação, afastado do centro, e resguardado em relação ao crescimento do futuro núcleo urbano. Talvez por isto, o Palácio nem sempre tenha sido compreendido pelos viajantes europeus que pela cidade circulavam, sendo considerado simples demais para um monarca, parecendo expressar-se mais como uma residência burguesa, mesmo que tivesse uma nobreza arquitetônica. Sua localização no tecido urbano pode ter contribuído para isto. Em contrapartida, é importante ressaltarmos a existência de inúmeros relatos que o descrevem de maneira positiva, como gracioso e interessante.
No conceito de arcadismo arquitetônico, a concepção das casas das classes dominantes teriam a intenção de absorver da natureza o que há de sublime, e mesclá-la à racionalidade iluminista das leis naturais. Ainda segundo Rocha-Peixoto, o palacete do conde Itamaraty, localizado no Alto da Boavista, pequena jóia construída por José Maria Jacintho Rebello seria o melhor exemplo deste tipo de manifestação, que engloba também o Palácio Imperial de Petrópolis. Fazendo um paralelo entre as duas construções, observa-se, de maneira concisa, no Itamaraty um partido de construção em forma de “T”, observada sua planta baixa, que distingue uma separação entre público e privado. Já o Palácio está localizado de maneira a dividir seu terreno entre frente e fundos numa alusão tênue do limite entre público e privado, já que tênue também o era na vida monárquica. Possui a forma de “T” invertido, ao observarmos em sua fachada um segundo pavimento de área bem menor que o primeiro.
Ainda que se assemelhe à uma residência burguesa, o Palácio não deixa de ser uma apologia à ordem monárquica [23]. O fato de estar inserido no centro do tecido urbano explicita o espaço racional de um código de valores coincidente com a forma física da cidade, reforçando uma vez mais as questões do neoclassicismo.
[23] INB / SU Formulário Geral do Sítio Urbano – Petrópolis. 2005/ IPHAN – RJ. p. 11
Na Catedral São Pedro de Alcântara o estilo neogótico deriva de um contexto europeu que aparece na Inglaterra, especificamente com os românticos. Surge criando um contraponto em relação aos neoclássicos, defendendo a idéia de que o passado não estaria na Grécia, e sim na Idade Média. Vem daí o sentido e a valorização da espiritualidade que marca o neogótico.
O início das reformas sociais e urbanísticas, que como já citado ocorrem a partir de 1830, marca também o auge do neogótico na arquitetura. O estilo surge com argumentos precisos, tanto ideológicos quanto técnicos, e consegue se afirmar sem substituir o neoclassicismo ou se fundir a ele. Desta forma instaura um novo fundamento para a cultura arquitetônica: pela primeira vez dois estilos acontecem lado a lado criando alternativas, ainda que parciais, de formas de expressão. É como se os ciclos estilísticos, que através da história haviam acontecido de uma maneira mais ou menos seqüencial ou linear, a partir deste momento surgissem de forma paralela criando um novo contexto. Este fato se dá, como já neste texto mencionado, através da perda de poder da monarquia e da Igreja, e pelo surgimento, a meu ver, talvez, de um novo sistema de expressão, opinião a ser aprofundada. Rapidamente estas hipóteses tornam-se múltiplas, e se desdobram numa série de opções estilísticas, todas elas correspondendo a estilos do passado. A volta ao estilo medieval está associada ao espírito romântico, e é vista não como um sistema de regras que substituam as clássicas, mas ao contrário, que derivem do predomínio do sentimento sobre a razão. Esta interpretação pode estar associada ao sentido espiritual do gótico, já que durante toda a Idade Média o homem tinha uma busca transcendente e diretamente ligada a Deus.
A primeira igreja de Petrópolis foi a da Matriz, que se situava em região próxima ao Palácio Imperial. Mais tarde foi substituída pela Catedral de São Pedro de Alcântara, que teve sua pedra fundamental lançada em março de 1876. Em fevereiro de 1877 ocorre seu primeiro projeto, que não foi executado. Em maio 1884 foi lançada uma segunda pedra fundamental sobre a primeira, marcando assim a data de sua fundação. Este segundo projeto, definitivo, teve autoria de Francisco Monteiro Caminhoá.
A Catedral São Pedro de Alcântara sequer existia nos primeiros anos da cidade, mas fez parte do planejamento de Koeler. A força tanto de sua implantação privilegiada no tecido urbano, quanto a de sua requintada arquitetura tornaram-na um dos marcos simbólicos e turísticos importantes de Petrópolis. Além disto a catedral se coaduna com este momento de busca ao passado, reforçando em Petrópolis a principal caracterização de uma cidade implantada durante o século XIX.
Foi num dos locais mais antigos da ocupação urbana de Petrópolis, quarteirão Nassau, na antiga Praça da Confluência, que foi erguido o Palácio de Cristal em 1884, mesmo local onde havia sido rezada oficialmente a primeira missa da cidade [24], quando a colônia, que contava então um ano de existência, adquiria importância e passava à categoria de freguesia. Os primeiros habitantes da cidade ali se reuniam desde 1845 para cerimônias civis e religiosas [25]. A praça, que já constava do plano urbanístico do major Koeler sob a denominação de Coblens, era então densamente arborizada, e mais tarde, serviu de local para exposições hortículas, antes mesmo da construção de seu Palácio.
[24] Contraditoriamente, o major Koeler declarava que os primeiros cultos, católicos e protestantes, foram realizados em sua casa.
[25] CARAZZONI, Maria Elisa, coordenadora. Guia dos Bens Tombados. 1980. p.369
Este foi construído na França, nas oficinas Saint Sauveur, a pedido do conde D’Eu, que presidia as oficinas agrícolas de Petrópolis. Possui planta em formato de cruz, com uma área central quadrada e duas laterais retangulares. Ligam-se ao corpo principal duas meias luas, cada uma com a superfície de 56 metros quadrados [26]. O pé direito é mais alto em sua área central. Sua estrutura metálica com fechamentos em vidro, identificam-no com o início da Revolução Industrial e com o célebre Crystal Palace da Exposição de Londres de 1851.
[26] Idem. p. 234.
A historiadora Patrícia Lima descreve o material de que foi feito, ferro e metal, como tendo características que sempre o particularizaram no cenário da serra. Ainda segundo a autora, “seus efeitos de deslumbramento da arquitetura, transparentes, remetem as novas relações entre técnica e sociedade, que mudaram os referenciais óticos na passagem do século XIX para o XX (…), a sensação de irrealidade e infinitude torna-se praticável com o uso inovador do vidro, permitindo efeitos de luz inusitados e acentuando as linhas ambíguas de passagem do interior para o exterior” [27].
[27] LIMA, Patrícia Ferreira de Souza. Petrópolis: Progresso e Tradição nos Trabalhos da Memória. Dissertação de mestrado. Departamento de História. PUC RJ. 2000. p.85 in: INB / SU Formulário Geral do Sítio Urbano – Petrópolis 2005/ IPHAN – RJ p.43.
Foi inaugurado com um grande baile organizado pela princesa Isabel. A partir de então serviu à exposição de flores e de outros importantes eventos do tempo do império.
O Palácio era um símbolo da modernidade que se implantava no Brasil. Sua função era bem distinta daquela de exibir a sofisticação da corte. Como era próprio do período, a uma função diferente correspondia um desenho arquitetônico diferente. “Enquanto os palácios neoclássicos representavam a tradição de uma sociedade de corte, o Palácio de Cristal remetia ao progresso satisfazendo às aspirações modernizadoras da cidade “[28].
[28] INB / SU Formulário Geral do Sítio Urbano – Petrópolis. 2005/ IPHAN – RJ
Sabemos que Petrópolis pode ter muitas leituras. A primeira delas corresponde a uma feição de construção, conseqüência da cidade ter sido desejada, gestada, planejada. Surge representando um pensamento construído na Europa e materializado na Serra da Estrella, que teve em D. Pedro II seu elo de ligação civilizatória e seu maior artífice.
Mas, já anteriormente a família imperial se mesclava a uma idéia de nacionalidade que, através de D. Pedro I e da independência do país, foi associada à noção de progresso. O processo de desenvolvimento de um ideal nacional, pensamento que atravessou o século XIX, teve na literatura um de seus maiores, porém não único, aspecto. Não se pode deixar de destacar a importância de outra das grandes manifestações da época, a iconografia. D. Pedro II, um apreciador das artes inclusive das mais modernas técnicas como a fotográfica, contou com diversos artistas representando Petrópolis e seus arredores. Da mesma forma, os muitos relatos de estrangeiros sobre a cidade, são registros que, somados à questão artística, podem representar uma rica fonte de estudos.
Quanto à arquitetura, tanto seu plano como suas edificações merecem análise ainda mais profunda, na intenção de pesquisar a possibilidade, ou não, de uma linguagem capaz de articular os diversos estilos e momentos aqui presentes. Nossa proposta é considerar, para tanto, e como ponto de partida, o pensamento neoclássico e a racionalidade daquele momento europeu, conforme explicitado neste trabalho.
A transformação ocorrida no alto da Serra da Estrella, – de fazenda a núcleo urbano – nas terras da futura Petrópolis, sem dúvida dá um tom diferenciado à história brasileira do século XIX, sendo um vasto campo de estudos a ser explorado. Sua construção se dá de várias formas, com desdobramentos que vão de seu planejamento propriamente dito às suas articulações com as diversas questões nacionais. São pouco mais de 160 anos que nos separam de sua fundação, período de tão intensas transformações no Brasil e no mundo que nos coloca aparentemente mais longe do que realmente estamos da formação desta cidade, símbolo maior do reinado de Pedro II. Compreender seu contexto nos traz um novo olhar sobre este momento, mais apto a aceitar o imperador e seus empreendimentos como parte de um processo que, de uma maneira ou de outra, trouxe inúmeras contribuições positivas ao nosso país.
Reis, rainhas e monarcas fazem parte do imaginário coletivo como guardiões do bem, que pairam acima de tudo, e que por isto mesmo não só podem, como devem, levar a nação à sua plenitude. Lidar com uma realidade que é diferente disto é um dos grandes desafios ao apresentarmos um trabalho sobre o século XIX. Outro deles, é o de colocar em cena um período monárquico e portanto absolutista, nos dias atuais em que a descentralização e as escolhas democráticas ainda nos soam como novidades de conquistas adquiridas.
Petrópolis tem sido maior do que tudo isto. A força da cidade tem nos mostrado sua capacidade de resistir, ainda que em silêncio, a espera de um reconhecimento à altura de sua importância como local predileto de um imperador.
Este estudo sobre a cidade, implicitamente, tenta estimular este processo de reconhecimento.