OS ‘PISCINÕES’ DE KOELER
Flávio Menna Barreto Neves, Associado Titular, Cadeira n.º 24 – Patrono Henrique Pinto Ferreira
A origem singular de Petrópolis permanece como fonte de inquestionável interesse histórico. Um interesse que reside, sobretudo, nas soluções urbanísticas do plano de Julio Frederico Koeler. Nos últimos tempos, porém, outras ciências além da que estuda o passado também se debruçam com louvável curiosidade sobre o feito atribuído ao major de engenheiros a partir do Decreto 155, ato oficial de D. Pedro II que instituiu a criação da cidade, em 1843. Uma motivação que se justifica não apenas pelo ineditismo das providências contidas no Plano Koeler, mas principalmente por este envolver aspectos que transcendem estudos sobre urbanismo.
Tomem-se os exemplos das valiosas contribuições da cartografia. São oriundas dela revelações recentes do que Koeler realizou e pretendeu com a planta apresentada aos governos Imperial e da Província em 1846, quando a formação da colônia de Petrópolis já estava em pleno curso sob premissas que ele estabeleceu em seu plano inovador.
Mantida pelos descendentes do imperador na sede da Companhia Imobiliária de Petrópolis, a Planta de Koeler é objeto de pesquisa do Laboratório de Cartografia da UFRJ (GeoCart), conduzida pelo professor de Geografia Manoel do Couto Fernandes. Há quase uma década, Fernandes e equipe se dedicam a esquadrinhar o documento cartográfico histórico. E já acumulam descobertas importantes. A mais recente delas sugere que o engenheiro, morto em 1847, determinou a construção de dois tanques para acumular água no rio Quitandinha com o claro propósito de reduzir o risco de inundações na Vila Imperial, coração da então colônia e do atual Centro Histórico da cidade.
A solução de engenharia hidráulica de Koeler integrou as intervenções de retilinização do curso original dos rios Quitandinha e Palatino iniciada ainda em 1845, ano em que o palácio do imperador em Petrópolis também começou a ser erguido, sob suas ordens. Na planta, é possível observar um dos piscinões de Koeler posicionado na confluência dos dois rios, no meio da Rua do Imperador, dividindo ao meio a Praça do Imperador, primitiva denominação das atuais praças D. Pedro e dos Expedicionários, onde se encontra o Obelisco dos Colonizadores. O segundo piscinão ficava na Praça D. Afonso, que mais tarde deu lugar à Praça da Liberdade.
Especialista em cartografia histórica, Fernandes considera que o posicionamento dos tanques não foi por acaso, mas estratégico:
“O formato (dos tanques) em meio a uma obra de retilinização certamente tem um caráter de acúmulo de água, numa tentativa de reduzir a velocidade e volume do fluxo. Sua presença nas proximidades do palácio imperial aponta para uma engenharia de contenção de enchentes nesta área da planta”.
Ou seja, o intuito de Koeler era proteger o palácio de D. Pedro II, conclui o geógrafo.
A construção dos tanques é corroborada pela descrição minuciosa que o jornal “O Mercantil” fez da colônia de Petrópolis em seis longos artigos publicados a partir de abril de 1846, quando as obras de formação do povoado somavam pouco mais de um ano. Logo no texto de abertura, o redator enviado pelo periódico descreve a existência dos tanques, que apresentam certa equivalência com o conceito dos reservatórios de retenção de água que surgiram no Brasil 150 anos depois (o primeiro piscinão de São Paulo, por exemplo, foi inaugurado em 1999).
“As águas deste (Quitandinha) e d’aquele (Palatino), correndo em sentido contrário, vêm encontrar-se n’um tanque quadrado, situado defronte da rua de Maria II; d’ahi o canal atravessa pelo meio a praça do Imperador, corre toda a rua de Maria II, depois a rua toda de D. Affonso até o meio da praça de mesmo nome, onde forma outro tanque, e d’ali segue, em ângulo recto, pela rua de Bragança (…)”.1
1 – Trecho de artigo intitulado “Petrópolis I”, primeiro de uma série publicada pelo jornal ‘O Mercantil’, a partir de 16 de abril de 1846, descrevendo em detalhes os primórdios da colônia. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Os artigos em questão foram objetos de pesquisa deste autor por ocasião da produção do livro “Traços de Koeler” (2016, Globalmídia Comunicação), em coautoria com a museóloga Eliane Zanatta, em projeto cultural que permitiu a restauração da Planta de Petrópolis, no 170º aniversário de elaboração do documento cartográfico.
No plano de urbanização de Petrópolis, Koeler determinou a preservação das matas, restringindo a ocupação de morros, com duplo propósito de poupar a futura cidade de deslizamentos de terra e proteger nascentes. A constatação de Manoel do Couto Fernandes revela uma preocupação adicional com o risco de transbordamento dos rios. O primitivo sistema de piscinões proposto pelo engenheiro contava com um componente também representado na planta: pelo menos quatro grandes ilhas fluviais que existiam nos leitos do Quitandinha, Palatino e Piabanha onde os rios eram muito mais largos. As ilhas serviam para frear a velocidade da água, mas com o passar do tempo elas simplesmente desapareceram. Fernandes acredita que as ilhas eram afloramentos rochosos que acabaram sendo utilizados nos muros de retilinização ou de contenção das margens dos rios.
O interesse do GeoCart em analisar a Planta de Petrópolis por anos a fio se pauta principalmente na relação que o documento histórico tem com a chamada geoecologia contemporânea. A equipe de Fernandes busca nela respostas para problemas crônicos que a cidade enfrenta no presente como efeito das chuvas em rios e encostas, por exemplo. Daí o olhar aguçado sobre aspectos geográficos contidos na planta, que levou às descobertas recentes.
Mas ainda que inovadores para a época, os piscinões de Petrópolis foram revistos a partir de 1850 por recomendação do engenheiro Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld, alemão como Koeler, um dos incentivadores da fundação de Juiz de Fora (MG) e responsável pelo primeiro estudo sobre o Rio São Francisco, sob encomenda do Império. Fernandes descobriu no setor de Obras Raras da Biblioteca Nacional um estudo de Halfeld para alargar a área de vazão dos rios Palatino e Quitandinha entre as ruas do Imperador e Imperatriz. Feito a pedido de Luís Pedreira do Couto Ferraz, presidente da Província do Rio de Janeiro, o estudo de Halfeld praticamente eliminou o piscinão da Praça do Imperador ao propor o alargamento do Quitandinha por toda extensão da Rua da Imperatriz, como forma de se evitar transbordamentos. Fernandes acredita que a largura que se tem atualmente dessa seção do rio é resultante da proposição feita pelo conterrâneo de Koeler.
O documento preservado pela BN também revelou que as obras primitivas de retilinização dos rios não usaram blocos de rocha trabalhados em cantaria, mas um método conhecido como fachina (estrutura vegetal permeável colocada no sopé da margem e dentro do canal, construída essencialmente por estrutura de madeira e vegetação)2.
2 – Coelho, José Miguel Abrunhosa. “Desenvolvimento de indicadores de acompanhamento de obras de reabilitação fluvial”. Universidade do Porto, 2009. https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/58636/1/000136700.pdf
Os pesquisadores do GeoCart/UFRJ já haviam aferido que Koeler planejou minuciosamente a ocupação de uma área equivalente a 15,91 quilômetros quadrados de Petrópolis (ou 12% do atual território do 1º Distrito, onde se deu a origem da colônia). Elaborado pelo padrão de braças portuguesas, o trabalho cartográfico apresenta escala de 1:5.000. Isto significa que cada centímetro traçado na planta equivale a uma representação de 50 metros do território real da Petrópolis planejada pelo engenheiro, algo admirável para a época, já que o município só conseguiu fazer coisa parecida (em escalas 1:10.000 e 1:2.000) em 19993. Com ferramentas de georreferencimento, que utilizam cartas topográficas recentes, a equipe também identificou a localização exata de praças que Koeler propôs para todos os quarteirões da futura cidade. Muitas delas, infelizmente, nunca saíram do papel.
3 – As plantas foram elaboradas pela empresa Prospec.
Outras fontes consultadas:
Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais – IHGMG (https://www.ihgmg.org.br/WebModuleSme/itemMenuPaginaConteudoUsuarioAction.do?service=PaginaItemMenuConteudoDelegate&actionType=mostrar&idPaginaItemMenuConteudo=7661)
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (https://2017.cbhsaofrancisco.org.br/2017/os-viajantes/)