De vida curta mas intensa, José Thomaz da Porciúncula, era do ponto de vista do ius sanguinis, filho de pai gaúcho e de mãe fluminense, ele de Jaguarão, na fronteira com a Republica Oriental do Uruguai, ela da região de Magé e Suruí.
Nasceu José Thomaz em Petrópolis a 25 de dezembro de 1854. Morreu no sábado 28 de setembro de 1901, a 1 hora da madrugada de angina pectoris. Tinha 47 anos incompletos.
Órfão de pai aos 7 anos, nem por isso deixou de cumprir o currículo normal de uma criança comum e corrente de sua idade e de seu status social. Cursou o Colégio Pedro II. Matriculou-se em 1872 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Aprovado com distinção, ao apresentar sua tese no último ano de estudos médicos, filiou-se ao Clube Republicano presidido na altura por Joaquim Saldanha Marinho.
Ainda na Corte, foi diretor e co-proprietário da Casa de Saúde São Sebastião na rua Bento Lisboa, Catete. Foi também membro fundador da Sociedade de Medicina e Cirurgia.
Casou-se, segundo os noticiários ( não confirmado ainda documentalmente ) em 1878 com D. Luiza de Melo Franco, filha do Dr. Manoel de Melo Franco, figura proeminente da Revolução Liberal de 1842.
Em 1882 transferiu-se para Petrópolis, onde criou o Clube Republicano da cidade, do qual nasceu o Partido do 9º Distrito que o elegeu para a Assembléia Provincial para cumprir o biênio 1884/1885. No ano seguinte, apresentou-se como candidato republicano à mesma assembléia, com circular firmada também pelo Dr. Santos Werneck, que assim terminava:
“Quem votar em nós, votará em nossas idéias. Somos republicanos”.
Nos estertores da monarquia nestas serras, Porciúncula era o homem do momento, o que representava as novas idéias. O político de impacto, corria paralelo ao médico humanitário e simples.
Proclamada a Republica, tudo fazia crer que o jovem militante fosse guindado ao governo de sua terra, a ex-província fluminense. Mas, Quintino Bocaiúva havia se antecipado aos acontecimentos levando a Deodoro no próprio dia 15 de novembro o nome de Francisco Portela, que assim foi o primeiro governador do Estado do Rio de Janeiro.
Mas, logo no princípio de janeiro, Porciúncula teria que aceitar desafio bem maior, quando foi nomeado para dirigir os destinos do complicadíssimo Maranhão.
O jornal Mercantil, que se editava aqui desde 1857, abriu espaço na edição de 4 de janeiro de 1890, para publicar matéria do republicaníssimo Thomaz Cameron sobre o momentoso tema.
Dizia o articulista:
“O dever do bom cidadão compreendido finalmente pelo nosso amigo Dr. José Thomaz da Porciúncula, fê-lo retirar-se desta cidade para ir prestar os seus serviços à pátria na qualidade de governador do Estado do Maranhão.
Acertada a escolha do governo provisório, recaiu ela sobre um homem que bem pode desempenhar o alto cargo; e embora sentida a sua ausência por anos, habituados a seguir-lhe os prudentes conselhos e louvar-lhe as acertadas determinações, resignamo-nos a ela, por vermos que o caráter que tanto temos apreciado, mais um título acrescenta aos que o recomendavam à nossa estima.
Apreciando em seu justo valor as qualidades desse cavalheiro, não podemos calar a nossa opinião na presente emergência; e considerando-o aqui, não como nosso amigo, mas como homem público, diremos que a cidade de Petrópolis vê com pesar a sua retirada – embora temporária.
Quando o Partido Republicano sustentava a luta de princípios e se achava em firme ofensiva contra os partidos do extinto regime, ao Dr. José Thomaz da Porciúncula coube a tarefa de dirigir o movimento partidário, tendo a seu lado leais amigos que, nele depositando inteira confiança, o seguiam sem restrições e sem que jamais se arrependessem de faze-lo.
Era ele o chefe estimado, elevado pela fé que nele depositavam os seus correligionários e sustentado pela inquebrantável firmeza dos que com ele pensavam.
Naquele combate, a arma manejada pelo batalhador, era a da sã razão, e, nunca para alcançar uma vitória, ele lançou mão de meios menos dignos, nem imitou as sutilezas de seus contrários; o seu interesse era o triunfo da causa pela qual pelejava e não o guiava o desejo de empolgar posições, ou à sombra de uma bandeira traiçoeiramente hasteada, buscar proveitos que diretamente o fossem favorecer.
Eleito deputado à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, ali revelou ele a pureza de suas intenções e o bom desejo de servir o distrito que o elegera e, toda a então província, erguendo sempre sua voz autorizada para a defesa da causa pública, esquecida por outros, que só consagravam os seus esforços a captar boas graças de eleitores, abrindo-lhes os cofres da nação.
Nessa posição foi ele ainda de uma correção absoluta, não se desviando em nada da trilha que se traçara.
Os seus correligionários assim o viram sempre e os seus adversários nunca lhe poderão contestar os méritos.
Um cidadão em tais condições merece a estima, merece o respeito de seus conterrâneos e, quando a causa do bem público o chama, a ponto diverso daquele em que tem posto em atividade o seu merecimento, a sua retirada deve ser motivo de pesar.
Sabemos que será ele substituído e que para felicidade nossa, na vereda por ele seguida, irão aqueles que o substituirão em sua ausência: não é porém isso o bastante para que nos abstenhamos de dar-lhe um testemunho de quanto o apreciamos.
Felicitamos o Estado do Maranhão pelo governador que vai ter e que só para a boa ordem do serviço nacional aceitou a missão que lhe foi confiada pelo governo da Republica.
E esperamos ver em breve restituído ao centro de seus velhos amigos o Dr. José Thomaz de Porciúncula, podendo dizer-lhe:
– Lá como aqui, fui fiel observador do meu dever. Nós terminamos, cônscios de podermos também afirmar, que dizendo o que acima fica dito, cumprimos o nosso”.
Com esse certificado de cidadão paradigma, de símbolo dos mais puros ideais republicanos, Porciúncula estava consagrado aos 35 anos de idade.
E ele deixou Petrópolis na sexta feira 10 de janeiro de 1890. Viajou para o Maranhão no vapor Alagoas, de certo o mesmo sinistro barco que levou o injustiçado Imperador para o exílio.
Acompanhava o governador do Maranhão o secretário Dr. Antonio José Vieira Leal.
A missão confiada a Porciúncula era realmente um total desafio. Prova de fogo para o impetuoso político que começava a desabrochar para os cargos executivos sob o regime republicano.
No Maranhão de fins de 1889 e princípios de 1890, a palavra República não passava de ficção, sem qualquer conteúdo, sem qualquer mensagem de ordem prática.
Os contemporâneos são unânimes em dizer que a terra de Gonçalves Dias desconhecia um Partido Republicano forte, bem estruturado e atuante.
Uns poucos entusiastas das novas idéias trabalhavam por elas, sem encontrar muito eco no meio onde atuavam.
As treitas e futricas dos partidos monárquicos tradicionais, estavam de tal sorte entranhadas no ânimo dos políticos maranhenses e do povo em geral, que seria difícil reverter o quadro calcado numa cultura já estratificada, de uma hora para outra.
O advento da República só fez portanto acirrar ainda mais os ânimos, reacender velhos ódios, desencadear a ferocidade das lutas pelo poder.
Aquilo era na verdade um caldeirão prestes a explodir.
Em menos de dois meses, desde que se proclamou o novo regime, o Maranhão teve três governos. Começou com uma junta governativa, formada por gente da terra, que segundo o “Diário do Maranhão” de 12 de março de 1890, cometeu uma série de erros “filhos de uma educação política falsa e errônea e, que infelizmente, permanece grudada como túnica de Nessius, aos ombros dos representantes dos ex partidos monárquicos, que ainda hoje se digladiam, uns por não terem o poder, outros por não quererem ceder a menor partícula do todo, que supõe só seu”.
Enfim foi a junta destituída e o Governo Provisório da República, não teve outro recurso senão nomear um estranho ao Estado para governá-lo.
Seguiu então para São Luiz, o Dr. Pedro Tavares, campista, republicano de carteirinha, que chegou ao seu destino já deitando falação e prometendo mundos e fundos.
Com a palavra mais uma vez o “Diário do Maranhão”:
“Moço, altivo por índole, entusiasta, senão fanático, pelas idéias republicanas, que aliás não conhecia senão pelas leituras vagas dos Girondinos, honesto e bem intencionado, mas, sem prática de administração, violento, incongruente e irrefletido nos atos e, de uma pirronice infantil, na sua vaidade de estadista, tal se manifestou o Dr. Pedro Tavares na administração deste Estado”.
Com esse perfil e com todos os desmandos que acabou cometendo, obviamente que o campista não permaneceria por muito tempo à testa dos destinos maranhense.
Apeado do cargo, foi Pedro Tavares substituído pelo Dr. Muniz Varella, então Chefe de Polícia, que assumiu a chefia do Estado sob a denominação de governador interino.
De fato, pouco tempo depois, desembarcava em São Luis, o Dr. José Thomaz da Porciúncula, que ali ficaria algo em torno de seis meses, na direção dos negócios públicos da terra de Raimundo Corrêa.
Informava o “Diário do Maranhão”.
“Desconhecido de todos, sem outro compromisso além dos que contraira há muito, com as idéias republicanas, das quais era na pitoresca Petrópolis o melhor adepto, desejoso de ser útil à nova pátria, que ajudara a conquistar, abandonando os caros penates, saltou aqui o novo governador, sem os acompanhamentos do estilo, quase só, indo recolher-se ao velho palácio, onde foi logo lavrada e assinada a quarta ata de posse”.
Na ótica do jornalista do “Diário”, Porciúncula se caracterizava por ser “correto, de proceder refletido, ameno no trato, atencioso e delicado, embora franco, sem rudeza na convivência…”.
Essa avaliação, praticamente empata com uma outra feita pelo redator d’ “A República”, órgão do partido republicano local, na edição de 7 de junho de 1890, que fazia um balanço da obra de Porciúncula no Maranhão, na oportunidade de suas despedidas do Estado. Dizia o jornalista:
“Correto, de proceder refletido, ameno no trato, atencioso e delicado, embora franco, mas sem rudeza na convivência que tornava íntima pela urbanidade; inteiro e intransigente na realização das idéias republicanas, de ilustração segura e feita nos variados ramos da administração, tal se nos apresentou no governo deste Estado, o Dr. José Thomaz da Porciúncula e dele hoje se retira, sem desmerecer um dia do conceito que dele formamos, ao colher as rédeas da administração”.
Confirmando sua qualidade de refletido, Porciúncula, antes de tomar qualquer iniciativa de governo, tratou de estudar o campo em que teria que atuar e as pessoas de proeminência no meio político maranhense.
Foi a partir dessa avaliação, que encetou o seu projeto administrativo.
Ao Dr. Paula Duarte, foi entregue a redação do Diário Oficial do Estado; o Dr. Vianna Vaz foi ocupar o cargo de procurador fiscal do Tesouro; a chefia da instrução pública coube ao Dr. Ribeiro da Cunha.
Estabeleceu Porciúncula como norma de administração, a responsabilidade direta dos chefes de repartições.
Falto de quadros no Partido Republicano Maranhense, não teve Porciúncula outra alternativa que não fosse recorrer à política da conciliação dos destroços dos viciados e anacrônicos partidos monárquicos. E, como não podia contentar a todos, acabou tendo que enfrentar algumas turbulências, máxime quando nomeou intendentes para os vários municípios do Estado.
O jornal “A República”, na sua aludida edição de 7 de junho de 1890, fez um balanço muito positivo da curta administração Porciúncula no Maranhão e dessa resenha de serviços prestados, podemos destacar o seguinte:
1º – reorganização das municipalidades, com base em criterioso trabalho por ele publicado;
2º – organização dos serviços públicos;
3º – formação de um corpo de polícia com adestramento militar;
4º – redirecionamento da instrução pública, escoimadas as aprovações escandalosas e exames calcados em interesses eleitoreiros;
5º – revitalização da Biblioteca Pública, entregue na altura à competência de um autêntico humanista;
6º – recuperação das finanças do Estado, com o restabelecimento do crédito, emitindo-se as apólices ao par, enquanto ao assumir, encontrara Porciúncula ditas apólices com uma depreciação de 40%;
7º – liquidação da dívida flutuante;
8º – regularização do orçamento estadual;
9º – priorização do incremento à industria e à agricultura, com base numa política de colonização bem estruturada.
Estava o governador a cogitar dessa grande arrancada para o progresso e a redenção de um Estado pauperizado, embora no esplendor de uma região, quando o Governo Provisório, depois de muita insistência, atendeu ao seu pedido de exoneração. E Porciúncula voltou ao Rio de Janeiro no mesmo Alagoas, que seis meses antes o levara ao Maranhão.
Faceta pouco conhecida no curriculum desse prócer republicano, qual a de Governador do Estado do Maranhão, escolhi-a de propósito para render as minhas homenagens ao eminente José Thomaz da Porciúncula, no transcurso do primeiro centenário de sua morte.