UMA PRINCESA NA BERLINDA
Francisco José Ribeiro de Vasconcellos, Associado Emérito, ex-Titular da Cadeira n.º 37 – Patrono Sílvio Júlio de Albuquerque Lima
As coisas do trono têm nuances que engalanam o poder, tornando-o quase sobrenatural. A pompa dos rituais sacraliza os atos e cria uma aura muito especial ao redor do entronizado.
A lei de 26 de agosto de 1826, determinava no seu artigo 1º que o ato solene do reconhecimento dos Príncipes Imperiais, como sucessores do trono, seria celebrado pela Assembléia Geral reunida no Paço do Senado, nos dia e hora que fossem da conveniência de ambas as câmaras.
Ato contínuo a lei em exame prescrevia todas as medidas que haveriam de ser tomadas para a realização do ato solene, sem descurar da minuta ou fórmula do instrumento pelo qual se reconheceria o Príncipe ou Princesa Imperial.
Correu o tempo. Em 1831 Pedro I abdicava e partia para Portugal, onde haveria de lutar pelos direitos ao trono português de sua filha mais velha, D. Maria da Glória, que se tornaria D. Maria II daquele reino.
Em 30 de setembro de 1835, chegou ao Senado e foi logo aprovado nas duas primeiras discussões, o seguinte projeto:
“A Assembléia Geral Legislativa decreta:
1º – A Senhora D. Maria II, Rainha de Portugal, tem perdido o direito à sucessão da Corôa do Império do Brasil.
2º – A Senhora D. Januária, filha legítima do senhor D. Pedro I, será reconhecida Princesa Imperial, na forma do art. 15 § 3º da Constituição e da lei de 26 de agosto de 1826 como sucessora do trono do Brasil, depois de S. M. o Imperador, o senhor D. Pedro II, e de sua legítima descendência.
Paço da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1835. Pedro de Araújo Lima, Presidente; Bernardo Belisário Soares de Souza, 1º Secretário; Manoel Paranhos da Silva Vellozo, 2º Secretário”.
A terceira e última discussão do projeto de lei, deu-se a 3 de outubro de 1835 e como não houve reparos, coisa rara no legislativo brasileiro, a matéria foi aprovada e subiu à sanção da Regência.
A lei nº 91 de 30 de outubro de 1835, firmada pelo Regente Diogo Antonio Feijó sacramentou o projeto vindo do legislativo.
Urgia agora a convocação da Assembléia Geral, para que se lavrasse e se firmasse solenemente o instrumento que haveria de reconhecer a Princesa Januária como herdeira do trono brasileiro.
Reuniu-se a Assembléia Geral a 31 de maio de 1836. A 1 hora da tarde presentes 28 Senadores e 56 Deputados, o 2º Secretário, Visconde de Congonhas do Campo (Lucas Antonio Monteiro de Barros) leu o seguinte diploma:
“Saibam todos quantos este público instrumento virem, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1836, décimo quinto da Independência e do Império do Brasil, aos trinta e um dias do mês de maio, pelas onze horas da manhã, nesta mui leal e heróica cidade do Rio de Janeiro, no Paço do Senado, onde se reuniram as duas Câmaras de que se compõe a Assembléia Geral Legislativa do mesmo Império, estando presentes 28 Senadores e 56 Deputados sob a Presidência do Exmo. Bento Barroso Pereira, para se fazer o reconhecimento da Princesa Imperial na conformidade da Constituição, Tit. 4º, Cap. 1º, art. 15, § 3º e da lei de 30 de outubro de 1835, se procedeu ao ato solene do dito reconhecimento e a Senhora D. Januária Maria Joana Carlota Leopoldina Cândida Francisca Xavier de Paula Michaela Gabriela Rafaela Gonzaga, Princesa Imperial, filha legítima do falecido Senhor D. Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo que foi do Brasil e, da falecida Senhora D. Maria Leopoldina Josefa Carolina, Imperatriz, sua mulher, Arquiduquesa de Áustria, nascida em onze de março de mil oitocentos e vinte e dois, e, batizada aos 18 do dito mês e ano, na Capela Imperial desta Côrte, pelo Exmo e Rvdo. D. José Caetano da Silva Coutinho, Bispo Diocesano, Capelão Mor de S. M. I., pela Assembléia Geral Legislativa foi reconhecida por Sucessora de seu Augusto Irmão o Senhor D. Pedro II, no Trono e Corôa do Império do Brasil, segundo a ordem de sucessão estabelecida na Constituição, Tit. 5º, Cap. 4º, art. 117 e lei de 30 de outubro de 1835, com todos os direitos e prerrogativas que pela mesma Constituição competem ao Príncipe Imperial Sucessor do Trono.
E para perpétua memória se lavrou este auto na conformidade da lei para os fins nela declarados, o qual foi lido pelo Exmo. Visconde de Congonhas, 2º Secretário do Senado, em voz inteligível, perante a Assembléia Geral Legislativa, cujos membros abaixo vão assinados. E eu, Conde de Valença, primeiro Secretário do Senado o escrevi e subscrevo.”
Surgiu então o problema de quem deveria fazer a aceitação do que acima ficara lavrado, já que a Princesa Imperial tinha na altura apenas 14 anos de idade.
Depois de algumas discussões, em que foram levantadas questões de ordem, decidiu-se que era o Regente do Império quem deveria fazê-lo.
A deputação escolhida para o ato seria composta de 18 membros.
No dia 14 de junho de 1836 dirigiu-se a deputação ao Paço da Cidade e, na sala do dossel, onde se encontrava o Regente, foi-lhe entregue uma das vias do termo de reconhecimento da Princesa Januária como sucessora ao trono do Brasil, na falta de seu irmão D. Pedro II.
Na ocasião, foi orador pela Assembléia Geral, o Senador Nicolau de Campos Vergueiro.
O Padre Diogo Antonio Feijó disse apenas que aceitava o documento em nome da Princesa Imperial. Enfim, cerimônia simples e pouco palavrosa.
O próximo tema foi o ato do juramento da Princesa. Cerimonial requintado de acordo com o figurino pré-estabelecido.
O assunto transitou pela Câmara e chegou ao Senado em 7 de julho de 1836.
Pretendia-se executar o projeto de regulamento de 2 de junho de 1835, com certas alterações. Algumas vieram da Câmara, outras foram sugeridas pelos Senadores.
A questão mais polêmica versava sobre se o juramento deveria ser prestado de pé ou de joelhos. Venceu esta última alternativa.
Afinal às 11 horas da manhã de 4 de agosto de 1836, perante a Assembléia Geral presidida pelo Senhor Bento Barroso Pereira, deu-se a tão esperada sessão do juramento da Princesa Imperial D. Januária.
Estavam presentes 30 Senadores e 67 Deputados. Constituída a deputação, foi ela receber Sua Alteza Imperial à entrada do Paço do Senado. Esta adentrou o salão “trazendo um rico vestido de blonde sobre o qual se divisava a insígnia da Grã Cruz da Imperial Ordem do Cruzeiro”.
A Princesa retribuiu os cumprimentos dos presentes e tomou assento numa cadeira de espaldar que se achava colocada “um pouco abaixo do último degrau do trono”.
O Presidente da Assembléia convidou então Sua Alteza a prestar o juramento. Ela com a mão sobre o missal declarou solenemente com voz comovida:
“Juro manter a Religião Católica, Apostólica, Romana; observar a Constituição Política da Nação Brasileira e ser obediente às leis e ao Imperador”.
Seguiu-se a leitura do termo do juramento feita pelo 1º Secretário.
E Sua Alteza, finda a leitura, assinou o documento, juntamente com os membros da mesa.
Retirando-se a Princesa Imperial, com as formalidades de estilo, encerrou-se a sessão.
Em todo esse relato fica uma certeza inelutável: a preocupação dos então condutores dos destinos do Brasil de salvar o Império a qualquer preço, mesmo apesar da eventual fragilidade do regime, face à minoridade do Imperador e às enormes turbulências que caracterizaram o período regencial.
Na altura, pouca diferença fazia um menino de 10 ou uma menina de 14 anos, que títeres nas mãos de seus tutores, não tinham de direito e de fato a mínima condição de assumir as responsabilidades inerentes aos postos a que estavam fadados. Mas o regime monárquico tem lá os seus mistérios e a sua magia. E os homens da época sentiam e compreendiam a necessidade da mantença desse poder mágico. Ou quiçá, por serem pragmáticos, fossem absolutamente cronológicos. Olhando por este prisma explicar-se-ia em parte o movimento que derrubou D. Pedro II, instaurando a República no Brasil.